O ser do corpo

 

LUÍS COELHO
O Ser do Corpo. Da Ética (cristã) em Fisioterapia


 Resumo

O exercício terapêutico é, acima de tudo, uma actividade espiritual que concilia ética e “clínica”, moral e técnica, com vista à transformação do “ente”, com base numa relação que, ora, parte do Verbo, do dogma, pretendendo a sua consumação mais ou menos espontânea, ora desemboca na consubstanciação de uma nova moral, prelúdio de inúmeras mutações. Em ambos os casos, a terapia não se resume ao corpo “físico”, mas subsidia o “corpus” psicossocial, o Colectivo, bem como a Unidade transcendente, impassível, que extingue a dualidade terapeuta vs. paciente.

 Key-words: Ética, Espírito, Verbo, Cristo, Fisioterapia, Relação terapêutica


Para muitos profissionais de saúde, a Ética consigna uma “mathesis” esquiva ao objecto intrínseco da própria intervenção terapêutica, ela parece acrescer-se ao corpo “técnico”, como “Vénus de Milo” tragada por um “binómio de Newton” que inclui simultaneamente a arte e a ciência do que se pratica. Nem sempre se entende que a Ética é bem mais do que excrescência artística, epifenómeno filosófico considerado muitas vezes incompreensível ou intraduzível, abertura para questões tantas vezes insanáveis. A Ética é comummente separada do objecto especificamente “clínico”, atida como “práxis” inquietante que se intromete na necessidade de solvência imediata de um equilíbrio físico, quando, na verdade, toda a Clínica é feita de Ética, a Clínica é a própria Ética, na medida em que a Ética, bem como a filosofia em geral, visa a Saúde de um “corpus” bio-psico-social e espiritual, que não pode nem deve ser reduzido à “matéria”, no seu sentido estritamente elementarista.

Não seria, de todo, desconforme para o pensamento clássico, pré-científico, obtemperar nesta visão totalizadora. De facto, não se trata de ver o corpo para além da perspectiva estritamente “fisicalista”, incluindo, portanto, as dimensões dialéctica, psíquica e idealista. Este holismo que muitos estranham no mundo hodierno perspectiva a saúde nos seus termos globais, espirituais, transcendentes, e relativos a um “todo” inter-pessoal; pelo que a verdadeira Saúde não se resume ao estado de equilíbrio de um corpo-mente, passa, igualmente, pela harmonia do Colectivo, aquém e além da realidade “positivista”. E passa necessariamente por um equilíbrio que abarca a visão moral, porque, classicamente, a moral implica este equilíbrio “holístico”, a permanência do maior estado possível de insofrimento.

A visão especificamente clínica recolhe da modernidade positivista boa parte do seu combustível negligenciador da Consciência. A necessidade de separar, categorizar, faz as vezes do liberalismo científico-económico, à custa do esgotamento psicossocial do Sistema. Este visa, de facto, o bem-estar, mas reduzido microscopicamente à individualidade favorecida, em tom feérico e permutável, impermanente, glosando a possibilidade de requerer um paradigma mais envolvente. Este “materialismo” exultante e excessivo convida à transformação, à instabilidade, e, no limite, ao caos. É, na melhor das hipóteses, um portal de liberdade, mas que pode dirimir a liberdade de muitos outros.

É certo que a mesma ciência “liberal” poderá ajudar na solvência de diversos aspeitos psicossociais comprometidos, talvez ela tenha algo de robusto a dizer, mas isso é pôr o carro à frente dos bois. Por outro lado, a acção dessa ciência não se afasta, de todo, da consecução de uma Natureza, de uma “physis” moral, e, se o fizer, é à custa de uma variância empírica dificilmente discutível, porque ainda especular.

Perante a “clínica”, atemos o diferendo da “dialéctica”, do sempre transformável equilíbrio psicossocial, que, como já dissemos, não pode continuar a ser encarado nos termos do, meramente, “individual”. Ademais, subsiste a questão “ideal”, pós-moderna, que se resume na forma como o profissional constrói o paciente e vice-versa.

A moral é, precisamente, requerida à visão do Colectivo, de uma harmonia nimiamente demiúrgica que afecta um caudal de “individualidades”. Ela é a Saúde, porque esta não se limita a um corpo. E ela é, até, mais do que “matéria”, porque recruta um nível subtilíssimo da subjectividade. E é na medida desta, e na medida da liberdade, que a moral apela a um constructo “prévio”, “deôntico”, do agir. Se é “deôntico” é porque visa um “fim”, e para este concorre uma ética, na qual o profissional, o terapeuta, actua enquanto “demiurgo”.

É por amor e compaixão que um terapeuta age sobre um “paciente”. Ele é, também, o paciente do paciente. E ambos os “pacientes” se enamoram para que morra a necessidade. O terapeuta “perfeito” mata o seu paciente. Mata de amor, em nome de uma coisa maior. Já não se trata (só) de recuperar fisicamente o “indivíduo”, trata-se de criar um conluio que vise um determinado objecto “ético”. No limite, ele é a abnegação. Mas, à maneira da modernidade, ele é, no mínimo, o alcance da Natureza moral impassível.

Mas para que isto ocorra é fundamental que o terapeuta aja como extensão dessa natureza. Porque, se “usar” o “paciente” enquanto meio de compensação, arrisca neuroticizar e neuroticizar-se. O “paciente” não é um objecto, porque é o Objecto. Enquanto Sujeito absoluto. Mas, invertendo a questão, e aventurando a profissão do dogmatismo, podemos imaginar o “terapeuta” enquanto “Pai” e o “paciente” como “Filho”. O “Filho” não é inferior ao Pai, mas está na relação “queda” com o mundo. Ambos são divinos e se concretizam num Verbo prévio. Porque No Princípio Era o Verbo. E o Verbo estava com Deus. Mas tomar o “terapeuta” como Deus é, talvez, ir longe de mais. Não que o terapeuta não queira, frequentemente, fazer as vezes de um “deus”. Mas Deus é Liberdade, não é imposição. O intento de “transformar” deve ser espontaneamente aceite pelo paciente tornado Cristo. E já o “paciente” não é paciente, é, também, agente, preponderando a mudança de muitos outros.

O terapeuta é a figura da compassividade. Se se exalta, cai. O Verbo é a impassibilidade, mas ele quer tornar-se “Deus”. Quando o “paciente” passa a “agente” está a tornar-se “deus”. Esta é a função da liberdade. Porque a acção de Deus é movida pela Graça. E é esta que permite a transcendência, o vencimento de todas as carestias. Se “deus” se exaspera, temos queda certa. Cuidai que o “paciente”, para o ser, está aquém do Verbo. É um anjo caído, mas a “semelhança” com Deus poderá permitir anelar a “imagem”. Nisso, o terapeuta ajuda. Mas, se o terapeuta se procura harmonizar, como é bastas vezes comum, então, atemos dois pacientes em possível rota de colisão. Ao invés de termos um corpo “Uno”, densifica-se a “dualidade”, e isto é precipitar o naufrágio.

Em religião, a ortodoxia é uma emergência de salvaguarda do Colectivo. Uma cedência pode fazer perder muitos indivíduos aprioristicamente “salvos”. Mas o dogma, a imposição, particularmente em terapia, pode levar à resistência. Se o terapeuta exige muito, talvez porque exige demais de si, o paciente poderá cair em heresia. Pode ser que esta respeite o equilíbrio do paciente, mas a consequência tardia poderá desequilibrar muitos outros. Porque o heresiarca remete para o seu intrínseco Princípio, quiçá sublimando novel Verbo. Já falámos da pretensão liberal. A mudança pode ser a ponte para algo “melhor”, mas isto ninguém nos garante, e, se nos afastamos da Natureza moral, arrostamos, em demasia, desorganizar o futuro, e certamente a Estrutura prévia, maioritária.

Se imaginássemos a possibilidade de criar um algoritmo de “in-sofrimento”, uma medição do efeito da “terapêutica”, isto seria tanger a moral em termos “consequenciais”. Mas o que medir de facto? E até quando? E que fazer relativamente ao futuro perpetuamente transmutável? Deveremos andar em viagem permanente, fazendo da “experiência” constante o busílis da salvação? Mas e o corpo? Não terá limites? Até que ponto pode a experiência modificar a expressão do corpo? A curto prazo, certo é que a agressão “liberal” compromete bastante o equilíbrio. Encurta as cadeias neuro-psico-mio-fasciais, reduzindo o grau de flexibilidade do “ser”. Quando a impassibilidade moral pede a plena flexibilidade “a priori”. À imagem do alongamento da cadeia muscular posterior, que estira o dogma e prepara a agência “espiritual”.

O trabalho de “força” evoca o liberalismo, a competitividade, a mudança, a imprevisibilidade. Já o de “flexibilidade” ajuda a construir um corpo pleno, sereno. Este é o trabalho mais propriamente “meditativo”, que subsiste à ideia de morte e recebe de braços abertos a Graça. Obviamente, o corpo, a sua determinação, resiste à morte. Mas é o Superior, a liberdade, que permite a passagem para o Reino de Deus. Parece isto “loucura” para o mundo moderno. Este é afecto à “materialidade” determinista, não entendendo o porquê de transcender. Para ele, a moral também é determinada, pelo que a “deôntica” deixa de fazer qualquer sentido. Aliás, se “Deus está morto”, só o efeito, a resultante, conta. O Princípio é a resultante do efeito. E a “queda” é a porta de entrada para um novo mundo, novel Verbo, valendo este tanto como outro qualquer. Este é o ímpeto do Adversário, da “razão neurótica”. Esta representa o “livre-arbítrio” herético que reage ao “pathos”, no sentido de evitar a “dor”, a “doença”. Um paciente “neurótico” pede, muitas vezes, um terapeuta tal-qualmente neurótico. Em dualidade, permanecem em diálogo no eterno retorno. Mas esta relação tende para a dinâmica Senhor vs. escravo. O domínio do primeiro cria a pertinácia do segundo. Daqui sai um novo Princípio, na continuidade de muitos outros. O “domínio” que prevalece passa por falso Deus. Entretanto, para o materialista, trata-se de um “deus” tão aceitável como qualquer outro. Esta é a liberdade de “mater”, sentida enquanto tal em plena queda mefistofélica. É uma liberdade determinada, como existe sempre à distância da Natureza moral. Porque a outra, provida pela Graça, abandona o caminho eternal da terra.

Daí a importância de respeitar a liberdade do paciente. Só assim ele deixa de ser paciente. Se o caminho é completamente autónomo, atemos, aqui, uma espécie de Gnose. Mas esta faz, frequentemente, concessões, à já referida liberalidade “fáustica”. Então, resta o terapeuta estar pronto para ser um Cristo. Mas, se é Cristo, tem de se sacrificar. A recompensa será o regresso à deidade.

A óptica “materialista” visa na recompensa o conjunto desdeificante das actividades terapêuticas, que, de certa maneira, têm por mote a ressalva do paradigma intrínseco do profissional. Assim, fica a laboração clínica a depender de uma escolha “neurótica”, afim à tónica inconsciente, que efectiva um modelo apresentado como objectivo. A Objectividade terapêutica é afecta a um “exterior” livre das influências psíquicas, imaginosas e afeccionais. Sem ela, a “clínica” passa por agressão perpetuável, na qual o terapeuta/Senhor age enquanto “Pai” luciferino e o “paciente” como “filho” que se sujeita ao trauma. Esta é, apesar de tudo, a oportunidade do “passivo” passar a “activo”, agente “espiritual”, demiurgo de uma novel consumação dialéctica. A actividade interna é dilemática, o modelo sujeita-se ao “ideal”. O último transforma o terapeuta num “Senhor” partícipe, observador “interferitivo”, do qual resulta uma compensação dogmática, um aval genuinamente terapêutico ou uma sublimação “ideal”. Os extremos são o do anelar de um “ideal” prévio ou a criação de novel Verbo. O “Princípio” que se obtém pode fazer as vezes de real Verbo, pronto a desenhar novas compensações, adaptações e/ou traumas. Se Ele é demasiado brutal e exigente, pode ser desencadeada a destruição, ou, pelo menos, a “doença”. Mas mesmo esta pode passar por “pathos” mais ou menos adaptativo. Todo o “pathos” envolve sobrevivência perante um mundo encarado como intrusivo. O terapeuta compreensivo será capaz de apreender o “pathos”, o intrusivo poderá fazer brotar a “doença”. O primeiro cria a possibilidade de aquisição de um “princípio” adequado, o segundo pode fazer sublimar um “princípio” diferencial. O terapeuta que se compensa pode, apesar de tudo, fazer sobressair um “princípio” primevo, mas há uma maior garantia de objectividade por parte do terapeuta impassível. E, no entanto, pode ser que este não seja, jamais, um terapeuta, ser “terapeuta” é, sempre, uma necessidade de auto-salvação. Obrigação que nutre o manancial empírico adstrito ao falso “princípio”.

Um “ideal” implica, concomitantemente, um ressalto empirista, o alimento do “senso comum”, que, para o materialista, está presente no dogma “espiritual”, afrontado como falso e projectivo. E isto inclui o “princípio” no sentido “psicanalítico”, que poderá bastar-se numa mera construção experiencial. Mas mesmo esta parte dum “antes” que conforma, mormente, o devir. Um trabalho terapêutico futurável visa, constantemente, modificar o pretérito. Numa perspectiva “demiúrgica”, e apelando à analogia da fisioterapia de reeducação postural, o equilíbrio “moral” depende do alongamento do dogma que ladeia a tensão da musculatura posterior e da fortificação da musculatura agónica, anterior, feita para a acção. O agonismo de uns é o antagonismo de outros, que, por sua vez, é uma oportunidade de agonismo. Mas a acção “moral” é, igualmente, um modo contratual de simbiose evolutiva, em que vários agentes ganham. E se isso causa prazer, ou felicidade, não tem de ser menos moral.

O equilíbrio referente à moral impassível é, tal-qualmente, sereno no dogma, bem como na acção, livre do último. Quando já não existe “paciente”, mas somente “agente”, capaz de ser Cristo e de não se importar com isso. Uma “moral” sã implica mansidão. Se existe demasiada consciência de um sacrifício, essa moral pode fazer as vezes de uma compensação, de um “pathos”, que, ainda assim, pode levar à solvência de muitos outros. Por outro lado, a moral “sacrificial” leva frequentemente à ruptura, bem como ao relativismo. Quando o indivíduo está prestes a questionar a moral, prontifica-se a criar uma nova. Nem sempre a postura corpórea aparentemente “anormal” é inaceitável. Comummente, nem causa dores, mas daí a ser encarada como a melhor para a sustentação a longo prazo vai um grande passo. Uma postura/moral “anormal” gera o mote de muitas outras posturas “anormais”. Entretanto, quando o “anormal” já é “normal”, os antigos adaptados podem perder o chão, isso fica a depender da força da estrutura “originária”.

Nenhuma acção terapêutica é indiferente relativamente ao Colectivo. De algum modo, qualquer interferência representa um “pecado”, porque afasta o “ser” do seu trajecto. Um movimento num sentido reforma o eixo de normalidade, transtornando o equilíbrio global. Pode ser que, no todo, não haja qualquer diferença, porque existe compensação permanente. Os níveis relativos de dor/sofrimento e prazer/felicidade serão constantemente os mesmos, o que, de mais a mais, torna toda a vida inútil, um verbo de encher, convidando, ainda mais, à transcendência. Um terapeuta pode ajudar na concorrência para a nadificação, mas mais provavelmente apascenta o “eterno retorno” que o processo da vida convoca. Daí que o mesmo processo seja de aprendizagem incessante, se bem que nunca aprendemos nada de novo, somente desvelamos sucessivamente o que sempre lá esteve. O jogo terapêutico é um saltar constante entre escalas de “visão”, mas o Todo é inamovível, Deus não conhece transformação ou perspectivas. O “terapeuta” não é um “deus”, e, no entanto, todos constituímos “deuses sendo”, e “deuses” por desvelar. O trajecto de um perturba o trajecto de outros, eventualmente pode, até, complicá-lo. Não há um modo absoluto de prever todos os dados, havê-lo, controlar todas as variáveis, é ser, já, Deus.

Perante a figurada inutilidade de todo o processo, o “ser” não deixa, jamais, o seu caminho. O “terapeuta” que há em cada um de nós não pode, simplesmente, desistir. O “Nada” criado pela suposta equipotencialidade céptica não passa de mais uma “escolha”. A “morte” também é uma escolha, no fundo de uma subjectividade canhota. Ao vivermos, escolhemos, continuamente, morrer, porque o esforço de vida é um acto de morte. Defrontando o aparente “absurdo” do caminho, resta o “absurdo” da vivência que contagia. A vivência é multiplicidade, e esta é a matriz da Unidade. Num tempo em que todos querem ser terapeutas, convém firmar que não há momento mais feliz para o terapeuta do que aquele em que este deixa de o ser.

A multiplicação de terapeutas é, irmãmente, uma manifestação de muitas almas perdidas. Tentam agarrar-se na relação de poder com o “paciente”. “Terapeuta” passou a ser marca, sinal de notoriedade social. E isto é paralelo à nova obsessão pelo “new age”. Espiritualidade egóica, desprovida da razão que ascende e da fé que descende. Vazio filosófico, por um lado, espiritual e religioso, por outro. Há uma crença, é certo, mas não se trata de uma partilha da deidade. A moral e a prática “religiosa” passam por compensações, virtude falsa, distância cruel a Deus. Estes “espirituais” são, por sua vez, adversados pelos “positivistas” radicais, ignaros na relação com a razão, a inventividade e a fé. Afectos aos resultados numéricos, nem são capazes de compreender que “o todo é maior do que a soma das partes”, desvirtuando o aspecto holístico, e isentando a “clínica” de uma moral geradora de sentido. Não se limitam a perder-se, deitam a perder muitos outros, que ficam, entrementes, vulneráveis aos “falsos deuses”. Se existir um placebo, é um resultado, ainda assim, mas há, mais uma vez, um apartar da realidade primeva. E esta não se limita ao Espírito, é, igualmente, fisicalista. A cisão dos aspectos é coisa da modernidade, às tantas, fica a “Ética” a derivar da liberdade e a “moral” a consubstanciar um modo de multiplicidade profana. Mas mesmo o “materialismo” provê uma medida de “verdade” invariante, coisa que certa fraqueza epistemológica sustenta, na ignorância de que a “verdade” suprema é já não existir “agente”/sujeito, medida ou ciência.

Ora, recuperando a noção de equilíbrio “terapêutico”, podemos imaginar que a posterioridade muscular dogmática conforma o “espírito”, e, até, a razão, sustentáculo da anterioridade “científica”. Ser “terapeuta” é afirmar, constantemente, o equilíbrio entre “espírito” e “ciência”, “razão” e “empirismo”. O terapeuta tem de saber conciliar os dois pilares epistémicos, só assim pode ser “filósofo”, aquém do estado de Cristo Primogénito, Sabedoria de Deus, que é já a Ordem primaveril, por sua vez aquém de Deus. O “terapeuta”, enquanto “deus sendo”, desempenha um papel de dialectização durável entre o “subjectivo” e o “objectivo”, entre ele mesmo enquanto sustento “posterior” e o “paciente”/objecto, “corpus” de acção ciente, que funde a razão e a realidade. Obviamente, se o terapeuta se está a compensar, também ele é paciente, objecto de um trajecto, em que o Objecto final elimina todos os canais. O terapeuta/filósofo nutre um mecanismo dual que não é concomitante com a pura mística, porque esta é de tal modo “nadificadora” que não pode sequer provar que já Lá está. Nem tem de o fazer, se, de facto, Lá está. Porque “provar” algo é ceder à pressão da matéria, do mesmo modo que achamos ser a “moral” inteiramente “carnal”. O “terapeuta” tem, certamente, algo da mística, algo de Deus, e, sobretudo, algo de “devir”. Quando o terapeuta/paciente está salvo plenamente sai da equação, é eliminado enquanto “agente”. Bom para ele, mas mau para os que poderiam usufruir da sua prática. Porque o “terapeuta” cria as condições de uma continuidade. Outros se salvarão, ele tem de manter-se na via, prolificando as hipóteses de comunhão.

Esta é uma cruz para os mansos que permanecem caminhando. Mas sem os milagres que testificam o perfeito valor do terapeuta. Pelo que toda a acção “clínica” se exerce na dúvida. E esta cria a humildade. Aquém da magia dos “falsos profetas”, o terapeuta será acusado de o ser. Quando a sua intervenção é estacionar entrosado entre a “razão neurótica” que quer a salvação e a “razão serena” que se projecta na Luz. Muitas vezes, sem poder ter a certeza de quanto deve ser “paternalista” e de quanto deve ser “libertário”.

Escusado será dizer que uma visão Superior » inferior afecta a um dualismo Espírito » corpo e uma visão inferior – Superior afecta a um monismo corpo-mente têm em comum um corpo como estrutura globalmente representacional, palco da vivência “subjectiva”, e enquanto estrutura “inteligível” só redutível na abstracção. A “physis” é considerada nos termos do psicossocial e como Consciência, elemento de uma Consciência maior e eternamente crescível. Se o corpo é a base da consciência ou o seu receptáculo “redutor” e sensível é coisa que, comummente, não preocupa o profissional de saúde, quase sempre “estrangeiro” relativamente à ciência “humana”. Esta abdicação teorética conforma, identicamente, uma relação artificial com a ética, em que a vivência de uma moral alternativa é, essencialmente, o corolário de um desinvestimento na Consciência maior e perdurável enquanto Substância. Por outro lado, se o “amor” pelo paciente extrapola o domínio do “aceitável”, convém que se veja nisto o reduto de uma ligação sincera que enquadra a dimensão “sexual” de todas as relações. Porque todas elas são simultaneamente agressivas e incestuosas, conflituais e eróticas, fantasmáticas e libidinosas. Se existe uma moral coerciva no respeitante à limitada definição da relação “terapêutica”, é porque há áreas que convém deixar em branco, não devendo flexibilizar-se excessivamente um território indefinido por natureza, definível numa continuidade inconsciente vs. consciente aparentemente maturadora.

Há, decerto, morais diversas, mas um só elemento divino, a convergência de vozes exige certo isomorfismo, até porque nem todos se podem gabar de dominar convenientemente os instrumentos racionais, aspecto, por si só, dado à relativização; certo é que, de alguma forma, todos têm as suas razões, e, como tal, a sua justificação, e, todavia, é a culpa que conforma a linha do equilíbrio demiúrgico, constituindo a “coisa” aquém da Unidade. O terreno maleável da demiurgia convoca uma linha de equilíbrio já por si flexível, moldável, cujo movimento determina, similarmente, as escolhas aparentes. Já estas originam sofrimento e este serve o desígnio da subjectividade, é preciso haver Sujeito para que se transtorne o destino de “escolhas”, somente no indivíduo impassível o sofrimento é inútil, porque ele já se encontra à porta da Natureza da moral mortificadora. Com obviedade, se o sofrimento é incomensurável, pode corromper a escolha, mas esta é já uma corrupção da Natureza impassível, oportunidade de alcance do Paraíso “perdido” insofrível. O sofrimento deve ser tolerado na medida do crescimento “sustentável”, para além dele, existe, apenas, maldade e corrupção saturniana, na qual a maior subjectividade é de mote a demonizar o conjunto “humano” da perfectibilidade. Demasiado humano, o misantropismo!


Luís Coelho
Fisioterapeuta e escritor