Você apanha o livro, folheia as páginas, observa o trabalho de edição, olha as fotografias que ilustram o texto, volta, lê o título, procura o nome do autor e descobre quem é. Jornalista, doutor em Letras, historiador com notável contribuição à historiografia brasileira e prêmios recebidos de diversas instituições, entre as quais a Academia Brasileira de Letras. Enfim, você abre o livro, começa a ler e se vê transportado ao século XVIII para participar de um pedaço da história da capitania de São Paulo.
O personagem central da história, que está no subtítulo, é d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena (1756-1818), ou simplesmente Lorena, que governou a capitania entre 1788 e 1797. Mas por quê preocupar-se com esse período da história de São Paulo e dedicar a ele as quatrocentas páginas de um livro bem documentado e bem escrito? O autor responde logo na Introdução, na primeira página. Porque não tínhamos ainda nenhuma pesquisa mais aprofundada sobre esses nove anos do governo Lorena, decisivos para o desenvolvimento da capitania. A curiosidade do leitor se aguça. Decisivos, como e por quê?
Ao chegar a São Paulo, Lorena se debruçou sobre os problemas que afetavam a capitania, detectou suas necessidades e traçou um programa de ação para enfrentá-los. Eram muitos os problemas. O primeiro envolvia o porto de Santos que então vivia em ruínas. Era necessário, pois, reconstrui-lo e equipá-lo. Mas isso não bastava. Era preciso abrir um caminho para ele. Do contrário, como escoar a produção de arroz, algodão, aguardente de cana, café, couro, madeira, açúcar?
Começa então a abertura do caminho para Santos. Era uma trilha difícil de ser percorrida: barrancos, árvores tombadas, terrenos alagados, escorregadios, buracos, em alguns lugares mata fechada. Só os índios conseguiam passar por ali, e nem sempre. As mulas, carregadas de mercadorias, escorregavam, caíam, despencavam em abismos.
O que faz Lorena? Junta recursos disponíveis nos cofres da Corte e dos comerciantes e começa o que mais tarde se chamaria a Calçada do Lorena. Teve êxito? O mineralogista inglês John Mawe (1764-1829), que, em 1807, fez uma viagem de Santos a São Paulo, resumiu assim o seu entusiasmo: “Poucas obras públicas, mesmo na Europa, lhe são superiores, e se considerarmos que a região por onde passa é quase desabitada, encarecendo, portanto, muito mais o trabalho, não encontraremos nenhuma, em país algum, tão perfeita”.
Não foi só essa, claro, a contribuição de Lorena para o desenvolvimento da capitania. Mais tarde, a lei do porto único seria outro fator importante. E o mais jovem capitão-general a governar São Paulo teve de empregar toda a sua habilidade política para contornar os problemas que poderiam ameaçar o êxito de seu plano de governo.
Um deles, o conflito entre os interesses econômicos de comerciantes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Outro, as disputas políticas envolvendo inclusive o clero sobre, por exemplo, o lugar que essa ou aquela autoridade podia ocupar nas procissões. Isso hoje nos diverte um pouco, mas era uma questão importante para a sociedade da época.
Por trás disso, outro problema, uma velha conhecida nossa, a corrupção e o consequente enriquecimento ilícito punham em risco o bom desempenho administrativo do governo. Se você mergulhar nessa história, vai encontrar os antepassados de gente que ainda hoje conhecemos bem: políticos desonestos, bajuladores, espertalhões, corruptos.
Por tudo isso, O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 é uma bela contribuição de Adelto Gonçalves para a historiografia brasileira. Digo isso sem receio de estar caindo em exagero ou no “afã louvaminheiro” dos partidários de Lorena. Essa afirmação tem o apoio de dois pesos-pesados dos estudos históricos, Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), e o britânico Kenneth Maxwell, professor aposentado da Universidade Harvard/EUA.
O Reino, a Colônia e o Poder:
o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves,
com prefácio de Kenneth Maxwell, apresentação de Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz Nascimento.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019.
Site: www.imprensaoficial.com.br
WALDECY TENÕRIO
Waldecy Tenório é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O amor do herege: resposta às ‘Confissões de Santo Agostinho’ (Editora Paulinas, 1986), A bailarina andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral (Ateliê Editorial, 1996), João Alexandre Barbosa: o leitor insone (Edusp, 2007), organizador em coautoria com Plínio Martins Filho, e Escritores, gatos e Teologia (Ateliê Editorial, 2014). E-mail: waldecytenorio@uol.com.br