O que foi preciso para aqui chegar

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Joseph Ratzinger não é o teólogo das minhas preferências, mas confesso que a suaIntrodução ao Cristianismo (1968), que teve várias edições em diversas línguas, continua, para mim, um livro de referência. Mas não é esse livro o assunto desta crónica.

Em 1970, publicou, em Munique, uma série de conferências que tinham sido transmitidas pela rádio. Em 1971 já estava traduzido pela Editora Vozes (Petrópolis). Foi esta a primeira versão que li. Desde 2008, dispomos, em Portugal, de uma nova versão, da Editora Principia[1]. Diz, no Prefácio, que todas as conferências gravitavam em torno do mesmo tema: a interrogação sobre a fé e o futuro.

Se esse problema, dizia, aparece hoje em todo o lado, isso é indício quer do abalo da fé que a crise contemporânea causou, quer do fascínio que o futuro exerce no momento em que vemos, mais do que nunca, a história em movimento e as possibilidades do ser humano desenvolverem-se positiva e negativamente de modo imprevisível.

As reflexões expostas não pretendem afirmar algo de «definitivo», mas abrir perspectivas e indicar que é a própria fé o elemento portador de futuro, quando a fé se mantém fiel a si mesma.

Eu tenho pena que, depois, nunca mais se tenha lembrado de que o ser humano não pode pretender afirmar nada de definitivo. Como Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, foi acusado de ter esquecido esse princípio fundamental. Definitivo era só o que ele defendia ou condenava.

Dos temas apresentados, retenho apenas, de forma abreviada, os dois últimos:  O futuro do mundo e a esperança do ser humano; Como será a Igreja no Ano 2000?.

No processo cada vez mais rápido da evolução histórica, colocam-se ao ser humano possibilidades extremas, mas também perigos extremos. O futuro tornou-se tão esperançoso como inquietante. E é então que surge a pergunta incontornável: em que medida pode a fé tomar parte na construção do mundo futuro? Que papel desempenharão a fé e a Igreja no futuro?

Como sublinhou Ratzinger, importa ter em conta que o ser humano de hoje tem os olhos postos no futuro. A sua divisa é «progresso», não tradição; é «esperança», não fé. O reinado do ser humano de hoje é justamente o amanhã, o mundo que ele próprio constrói. Ao contrário do que acontecia na Igreja primitiva, não se está à espera do Reino de Deus, mas do reino do ser humano; não se espera o regresso do Filho do Homem, mas o aparecimento definitivo de uma ordem racional, livre e fraterna que os seres humanos estabelecerão para si mesmos e por si mesmos.

A evolução que vivemos não é entendida como um dom do alto, mas como uma realização fruto de um trabalho árduo, de uma acção planificadora, calculada e engenhosa. Para o ser humano contemporâneo, esperar já não consiste em olhar para o que não se pode alcançar, mas em agir pelos próprios meios. O ser humano espera salvar-se sozinho e parecia que tinha condições para isso.

  1. Hoje, podemos observar que não estamos, apenas, perante um futuro radioso para todos os seres humanos, mas ameaçados com uma terceira guerra mundial. Os europeus, depois de 75 anos de paz, estão a dar-se conta, de forma dramática, que a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin mostra que o ser humano continua a ser capaz do melhor e do pior e que as lideranças religiosas não apontam todas os caminhos da paz.

No último capítulo do livro, Fé e Futuro, pergunta-se: que aspecto será o da Igreja no ano 2000? Quando Ratzinger fez esta pergunta era um jovem teólogo que já tinha sido escolhido pelo Cardeal Frings de Colónia para seu perito pessoal. Durante o Concílio Vaticano II, deu a imagem de um teólogo reformador.

Observa que o teólogo não é um adivinho nem um futurólogo que possa fazer um cálculo sobre o futuro, a partir dos factores calculáveis do presente. Ao estabelecer o que é calculável, tem de deixar em aberto o que não é objecto de cálculo.

Dado que a fé e a Igreja vão até às profundezas dos seres humanos, donde brota o criativamente novo, o inesperado e não-planeado, o seu futuro permanece também oculto para nós, na era da futurologia. Quem poderia ter previsto a morte de Pio XII, o Vaticano II e os desenvolvimentos pós-conciliares?

Sejamos, portanto, cautelosos com os prognósticos, pois continuam válidas as palavras de Santo Agostinho, segundo as quais, o ser humano é um abismo; o que daí emerge ninguém pode abarcar de antemão. Quem acredita que a Igreja não é só determinada pelo abismo que é o ser humano, mas também pelo abismo mais profundo e infinito que é Deus, ainda terá mais razões para se abster de fazer previsões, cujo ingénuo querer só poderia ser a total ausência de noção histórica. Será que o nosso tema possa ter algum sentido? Pode, desde que tenha consciência dos seus limites.

  1. Ratzinger sustenta que a reflexão sobre a história, quando é bem compreendida, comporta um olhar retrospectivo sobre o que aconteceu e, a partir daí, uma reflexão sobre as possibilidades e as tarefas do que há de vir.

Nota-se, na conclusão, que há uma Igreja que vai desaparecer, mas a Igreja de Jesus Cristo permanecerá. Tornar-se-á pobre e será uma Igreja dos pequeninos. O processo será longo e penoso, mas depois dessa provação, uma força pujante brotará de uma Igreja interiorizada e simplificada. Deus o ouça!

Tenha-se em conta que estas conferências sobre a Fé e o Futuro, ainda respiravam a experiência do Vaticano II (1962-1965), a Igreja serva e pobre de Yves Congar (1963) e o Pacto das Catacumbas assinado por quatro dezenas de bispos e cardeais (1965). Que propunham eles?

Propunham a revolução da simplicidade. Deixar os palácios episcopais e viver em casas iguais às das suas populações. Renunciar aos sinais exteriores de riqueza e à riqueza em si. Não possuir imóveis, nem contas bancárias em seu nome. Confiar a gestão financeira e material das dioceses a comissões de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico; recusar-se a ser chamado, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder, preferindo ser chamado com o nome evangélico de Padre; evitar aquilo que pode parecer um privilégio ou uma preferência pelos ricos e poderosos; oferecer todo o tempo, reflexão, coração e meios ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos economicamente mais débeis; transformar as obras de beneficência em obras sociais baseadas na caridade e na justiça; lutar para que os responsáveis pela governação decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento; requerer dos organismos internacionais a adoção de estruturas económicas e culturais que permitam às massas pobres saírem da sua miséria; tudo fazer para que o ministério episcopal constitua um verdadeiro serviço.

Ratzinger cansou-se antes de experimentar este futuro. O Papa Francisco, durante os nove anos do seu pontificado, provou que o futuro se constrói a partir das contradições do presente. Quanto caminho foi preciso fazer para que reforma da Igreja já não seja uma miragem!

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(1) Altero sistematicamente a palavra homem por ser humano.


  • Público .Abril. 2022