O poeta Rainer Maria Rilke na Rússia

 

JOANA RUAS


Rilke em Moscovo. Tela de L.Pasternak

Rainer Maria Rilke (Praga 1875-Valmont,Suiça 1926) fez uma primeira viagem à Rússia em 1899 na companhia do marido de Lou-Andreas Salomé, o iranista Dr Friedrich Carl Andreas (Batavia,a atual Jacarta1846-Gottingen1930), que tentava a partir dali concretizar o seu projeto de viagem à Transcaucásia e à Pérsia. Rilke vivia então mergulhado no estudo da língua, da literatura e da civilização russas. A viagem dos três realizou-se de 24 de abril a 18 de junho. A 28 de abril, Sexta-feira santa , passam-na com Tolstoi na sua residência de inverno em Moscovo. Rilke sente-se na Rússia como em sua casa pois teve na Rússia a revelação de uma pátria espiritual que exprimiu nestas palavras: «Quando cheguei pela primeira vez a Moscovo tudo era para mim já conhecido e havia muito que me era também familiar. Foi na Páscoa. E foi como uma Páscoa para mim, minha primavera, sinos meus. Era a cidade das minhas mais antigas e mais profundas recordações, revejo sem cessar os sinos que me saudavam: estava no meu país.»

Recordando a noite de 29 para 30 de Abril de 1899, em Moscovo, Rilke evoca com extrema fidelidade a experiência vivida entre ele e a mulher que durante toda a sua vida foi não só sua testemunha mas leal amiga e guia nas dificuldades, Lou-Andreas Salomé (S.Petersburgo1861-Gottingen 1937).Nessa evocação, com a nostalgia de algo de que necessitamos mas que sabemos que se não repetirá, para criar a distância entre dois tempos e dois lugares distintos, Rainer Maria Rilke usa a neutralidade da 3ª pessoa do singular para falar de si e do outro de si mesmo no seu Testamento, legando-nos a sua confissão sobre a sua necessidade imperiosa de amar para poder criar e, paradoxalmente, a sua impossibilidade de que uma tal experiência se pudesse voltar a repetir:« …se a amada existisse ele estaria salvo tal como outrora, jovem, o ajudaram de outra maneira quando foi à Rússia. As atribulações da sua infância haviam provocado que até final da sua segunda década vivesse na suposição de que enfrentava, só e isolado, um mundo hostil e que se sublevava cada dia contra a prepotência de todos. Do injusto de tal atitude ainda que com emoções autênticas, só podiam desprender-se aspetos deformados e mórbidos. Na Rússia, uma persuasão lenta, durante a noite até de manhã — literalmente: durante a primeira noite moscovita, libertou-o docemente do envolvimento maligno de tal confusão.»

A segunda viagem de Rilke à Rússia fá-la na companhia de Lou-Andreas Salomé e realizou-se de 7 de maio a 22 de agosto de 1900.

Lou_e_Rilke, à esq., na Rússia, em 1900, com o poeta Drozin_

Filha do general russo Gustave Salomé, conselheiro do czar, Lou Andreas-Salomé , dotada de uma grande inteligência e de uma sólida cultura, teve a possibilidade de orientar o jovem poeta pelas estradas da Rússia profunda.Com ela Rilke aprende a ter um contacto com a terra, a andar descalço pelos bosques colhendo cogumelos e flores misturando-se aos camponeses. Trabalha depois em S. Petersburgo numa biblioteca durante algumas semanas e ali conhece personalidades da vida artística. Leitor e tradutor de Dostoievski e de Tchékhov, Rilke, como Puchkine, considerava S. Petersburgo uma janela aberta sobre o Ocidente, acalentando no entanto o projeto de reencontrar a Rússia nas raízes eslavas da sua civilização. Ali continuou a aprender o russo e a estudar o país. Rilke procurava escapar ao aspeto excessivamente elaborado da cultura europeia centrada exclusivamente sobre si própria e aproximar-se mais do Oriente, interesse a que não era alheio o convívio com Carl Frederich Andreas, filho de um antigo membro da família real arménia. O avô materno de Carl Frederich Andreas, o Dr.Waitz, era um médico alemão especialista no tratamento de doenças tropicais infantis que se estabeleceu em Java onde casou com uma javanesa. A filha do casal que viria a ser a mãe de Carl Frederich Andreas casou em Batávia com um médico militar que era arménio Isfaã,  da linhagem principesca dos Bagratidas do Irão que deram à Rússia um famoso estratega na luta contra Napoleão. Carl Frederich Andreas, tendo  permanecido largos anos de estudo no Irão, a sua pesquisa na Europa concentrava-se nas línguas da Ossétia e nas das fronteiras indo-afegãs. De 1903 até à sua morte foi professor de filologia asiática ocidental e iraniana na Universidade de Göttingen.As sucessivas investidas de que sofria a Rússia por parte de países do Ocidente, sobretudo da Polónia , da Suécia e da Lituânia e o seu isolamento  no contexto europeu, inspirou a Rilke o que escreveu na carta de 15 de agosto de 1903 a Lou Andreas-Salomé: «Talvez o Russo esteja destinado a deixar passar à sua frente a história da humanidade antes de se desempenhar  da sua parte na harmonia das coisas e com o seu coração cantando. Apenas tem que subsistir, permanecer e, como o violinista ao qual ainda não foi feito sinal, ficar sentado na orquestra mantendo o seu instrumento com precaução para que nada lhe aconteça.»


Biblio:

Correspondance Rainer Maria Rilke –Lou Andreas-Salomé,Gallimard

Lou Andreas- Salomé, A Minha Vida,Edição «Livros do Brasil»

Joseph-François Angelloz- Rilke,L’évolution Spirituelle du poète,P.Hartman,1936