Foto: Maria do Céu Costa
MARIA ESTELA GUEDES
Membro da Associação Portuguesa de Escritores e da
Associação Portuguesa dos Críticos Literários
A Guiné-Bissau é um país que saiu de um parto difícil e desde então anda à procura da mãe, de um rumo que a retire de todas as vicissitudes políticas por que tem passado, de maneira a constituir-se como um país livre, auto-suficiente, longe da sombra que sobre ela projeta o Sahel, essa faixa sub-saariana que vai da costa atlântica às margens do Mar Vermelho, conhecida como das mais pobres regiões do mundo.
É esta a história que reli, em termos simples e alegóricos, num livro para crianças assinado por Rosa Alice Dixe, com ilustrações de Manuel Júlio e Fernando Júlio, O pintainho Panti. O nome do pintainho lembra outras personagens, não por razões ligadas à narrativa, sim à etimologia da palavra: como Pantagruel, o grande comilão, a personagem da história para crianças, Panti, é um apelo holístico, no seu significar “tudo”.
O conto traz bem marcada a índole pedagógica, sugerindo aos professores, por exemplo, que as ilustrações de uma história devem referir espaços físicos e sociais da Guiné-Bissau, e, por extensão, diria eu, de qualquer outra zona que constitua o lugar da narrativa.
Antes de mostrar que O pintainho Panti, além de delicioso conto para crianças (do meu ponto de vista muito adulto), atravessa alguns dos mais endóticos espaços físicos e sociais da Guiné, queria recordar o pilar da Etologia, ciência do comportamento animal, Konrad Lorenz.
Konrad Lorenz criou o conceito de imprinting, na sequência das suas experiências com gansos. Os pintos eclodiam dos ovos e iam todos atrás do cientista, como se ele fosse a mãe. O conceito de imprinting diz respeito a esse momento em que o nascituro estabelece elos de ligação com o outro. Em relação aos seres humanos, fala-se de amor à primeira vista: o bebé cria laços com a mãe muito cedo.
Konrad Lorenz, seguido até pelas escadas interiores de casa pelos pintainhos, chegou à conclusão de que eles não criam laços com a mãe, isto é, criam-nos, mas só se a mãe estiver no local e no momento de eclosão. Na falta de gansa, eles criavam laços com o primeiro ser que os seus sentidos percebiam, com o primeiro que ouviam ou viam. Por isso comportavam-se como se Konrad Lorenz fosse a mãe deles.
A historinha de Rosa Alice Dixe é uma pequena maravilha, porque, na sua simplicidade, até estes assuntos convoca. Isso acontece porque a sua matriz é poética. A poesia pode, em muitos casos, ser tão densa do ponto de vista metafórico, que abarca um mundo de referências em meia dúzia de palavras. É panta como o Panti. O pintainho Panti, de diferente dos gansos de Konrad Lorenz, só tem a metáfora, visto que não é uma cobaia destinada à experiência científica, é uma criação literária, uma personagem. Como acontece na generalidade das histórias para crianças, em que as personagens falam, sejam coisas, plantas ou animais, o Panti também fala. E, como fala, e é inteligente, faz perguntas. Como faz perguntas, recebe respostas, e neste perguntar de aprendiz e responder de mestre, é claro que passa muito conhecimento.
O conto tira a sua maravilha da poesia, dos escassos recursos dependentes de um texto muito curto, o principal dos quais é a repetição, seja a do cumprimento – «Amanheceste bem?» – seja a do teor da conversa do pintainho com aqueles a que vai perguntando se são a sua mamã. De facto, a resposta negativa – não sou a tua mãe, sou… – com auto-descrição implica ensinar às crianças o ABC do meio social e ambiental. Seja exemplo o mangal ou tarrafe, ecossistema próprio das zonas húmidas de águas salobras, penetradas pelas marés, onde o pintainho Panti interpela um dos seus habitantes:
Junto ao rio, na tarrafa, o pintainho pergunta:
– Boa tarde! És tu a minha mãe?
– Não, eu não sou a tua mãe! Eu sou uma ostra, moro num mangal, gosto de me esconder e sou muito misteriosa!
Não confundir mangal com pomar de mangueiros (árvores que dão os mangos, noutros países chamados mangas). Os mangais são ecossistemas dotados de fauna e flora próprios: aquela ostra com que fala o pintaínho Panti não é uma ostra marinha, pertence a uma espécie diferente. E quem sabe se o Panti não estava a falar com uma ostra de algum tarrafe de Cacheu? Vejamos o que apanhei na Internet:
O Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu (também conhecido por Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu) é uma área protegida situado na República da Guiné Bissau.
Abrange uma superfície total de 88.615 ha, dos quais 68% apresentam uma cobertura de mangal (tarrafes) que faz parte daquele que é considerado como sendo o maior bloco de mangal contínuo da África Ocidental.
Os tarrafes guineenses estão protegidos porque são ecossistemas muito valiosos do ponto de vista da biodiversidade. E estão ameaçados, tal como toda a costa da Guiné, ou, em Portugal, regiões costeiras como a ria de Aveiro, porque são zonas planas que a maré vai erodindo. A pior ameaça, porém, vem do aquecimento global, que provoca o degelo nos pólos e com isso a subida do nível do mar. Tal ameaça diz respeito, aliás, ao planeta todo e à maior parte das mais antigas cidades, visto que, no passado, era junto de água que se construía: água como via e água para beber e regar.
O pintaínho vai tomando contacto com várias situações, entre elas as mais definidoras da Guiné, como sejam a arte da música, com os seus instrumentos e tocadores, e com a tecelagem e correspondente tinturaria.
Findo com uma nota sobre a ortografia. A questão da ortografia é como a do pintainho Panti, que acaba de eclodir e ainda nem penas tem. No caso de línguas orais como o crioulo (e na Guiné há dois crioulos, o leve e o escuro), que ainda não estão definitivamente fixadas como línguas escritas, a oscilação ortográfica é grande. Como antes de haver uma norma (dicionários e gramáticas, que só aparecem entre nós, portugueses, a partir do século XVIII), em que cada um escrevia à sua maneira. O livro de Rosa Alice Dixe dá conta dessa oscilação ortográfica no vocabulário relativo a objectos especificamente guineenses, oscilação essa que revela a fase de evolução do crioulo: nem todos os livros, nem todos os autores, ortografam os termos da mesma maneira, querendo isto dizer que as diversas grafias do léxico crioulo causam uma perturbação que os glossários, quando existem nos livros, como no de Rosa Alice Dixe, não eliminam.
A autora, portuguesa, viveu na Guiné tempo suficiente para se ter deixado enamorar pelas experiências que ali passou. Ignoro entretanto a sua qualidade estrangeira para nos incluir no voto de que a Guiné, tal como o Panti, encontre finalmente a sua mãe, já que ela, Guiné-Bissau, é indiscutivelmente a grande mamé – Magna Mater, a amada pátria – da generalidade dos escritores guineenses.
Rosa Alice Dixe
O pintainho Panti
Ilustrações e capa de Manuel Júlio e Fernando Júlio
Bissau, 2010