FREI BENTO DOMINGUES, O.P.
O Ocidente católico não pode ignorar que também existe um oriente católico com as suas riquezas eclesiais, espirituais, teológicas, artísticas e as suas tradições litúrgicas e canónicas.
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Seria ridículo discutir se o Papa Francisco deve ou não ir ao Iraque. Não basta dizer que é um desejo que ele gostaria de realizar já no próximo ano. Os desejos do Papa não costumam ser de ordem turística. O que será que o move?
O mais espantoso é que tenha sido o governo de Bagdad a convidá-lo. O Presidente iraquiano, Barham Saleh, não é católico e, no entanto, numa missiva dirigida ao Papa, declarou que tinha a honra de o convidar para visitar o Iraque, berço da civilização e local do nascimento de Abraão. A visita constituiria uma oportunidade para lembrar ao povo do Iraque e ao mundo que o Papa se deslocaria à terra que deu à humanidade as suas primeiras leis, a rega agrícola e um legado de cooperação entre os povos do mundo de tradições confessionais diversas. Se fosse apenas isto, seria uma viagem de ordem cultural, de memória religiosa e ecuménica. É uma memória extraordinária, que só a ignorância ou a barbárie jihadista podem desejar esquecer e destruir. No entanto, talvez não baste para justificar a deslocação do Papa.
Também não é suficiente dizer que o Papa vai mostrar que também há cristãos árabes. Pensar que os árabes são todos muçulmanos é uma ignorância e que os cristãos do Oriente são apenas os membros das Igrejas ortodoxas.
Como lembra Jean-Marie Mérigoux, O.P., os cristãos dos países árabes são os cristãos dos países da Bíblia: os do Iraque são da terra de Abraão; os do Egipto são do país de Moisés; os da Palestina e de Israel, a chamada “Terra Santa”, são da terra de Jesus. Foi de Antioquia, na Síria, que os apóstolos saíram para fazerdiscípulos de todas as nações, como diz S. Mateus.
Os cristãos do mundo árabe nasceram e vivem onde Jesus nasceu, falou aos seres humanos e realizou a Páscoa: os católicos, os ortodoxos e os protestantes estão em sua casa nos países da Bíblia e são, para os do mundo inteiro, osirmãos mais velhos na fé e que os ajudam a descobrir, por um carisma que lhes é próprio, a proximidade terrestre de Deus. Quanto a Jerusalém, no coração do Próximo Oriente, judeus, cristãos e muçulmanos amam-na apaixonadamente. Hoje, no Médio e Próximo Oriente, maioritariamente muçulmano, os cristãos são cerca de 15 milhões[i]. Pertencem, no entanto, à identidade do Médio Oriente.
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Os cristãos do Oriente são quase desconhecidos pelos cristãos do Ocidente. Muitas vezes, conhecem apenas o nome dos grandes patriarcas ortodoxos como os de Constantinopla e de Moscovo. Os católicos latinos do Ocidente quase desconhecem a sua Igreja na sua parte oriental. Maximos V, patriarca grego católico, lamentava que, entre eles, se ignorasse que tinham irmãos católicos orientais e a importância e o lugar dos seus patriarcas e das suas Igrejas particulares, no seio da Igreja católica.
É importante que os católicos ocidentais se esforcem por conhecer os seus irmãos católicos do Oriente. Não é aceitável ouvir dizer que “o Oriente cristão era o domínio próprio da ortodoxia” e que “o Ocidente cristão seria o domínio da catolicidade”. Isto é contrário à realidade e à verdade: latinidade não significa catolicidade e oriente não significa ortodoxia. Pouco antes do Vaticano II, do qual foi uma das figuras eminentes, o patriarca grego-melquita-católico, Maximos IV lamentava demasiadas vezes: o Ocidente católico ignorou-nos. Este patriarca manifestou que tanto a sua Igreja católica como as outras Igrejas orientais católicas tinham, como vocação, aproximar a catolicidade e a ortodoxia. Uma tal Igreja, simultaneamente católica e árabe, revelava-se muito próxima e capaz de compreender as Igrejas ortodoxas, também elas orientais e árabes. Na peregrinação de Paulo VI a Jerusalém, em 1964, o patriarca Athenágoras encontrou Maximos IV e declarou: segui as vossas intervenções no Concílio e agradeço-vos, pois representaste-nos a todos. Obrigado.
Estas referências que muitos julgarão bizantinas, ajudam-nos a perceber que a Igreja respira bem quando tem dois pulmões: o oriental e o ocidental. Como aliás lembrou João Paulo II.
O Ocidente católico não pode ignorar que também existe um oriente católico com as suas riquezas eclesiais, espirituais, teológicas, artísticas e as suas tradições litúrgicas e canónicas. Tem necessidade, para a sua vida espiritual de não absolutizar certas práticas que no contacto do oriente cristão podem descobrir como são relativas. Se a língua árabe é utilizada quotidianamente nestas Igrejas, o siríaco, o grego, o copta e o arménio são línguas litúrgicas e patrísticas.
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O Iraque, mas não só, tem sido cenário de uma sucessão de conflitos nos últimos 40 anos, tendo enfrentado um embargo internacional, uma invasão norte-americana e, mais recentemente, três anos de ocupação por parte do grupo Daesh. Finalmente, o país declarou vitória sobre o grupo islamista.
O clima de violência vivido no país provocou o êxodo de milhares de pessoas, especialmente entre as minorias. O número de cristãos, que era de 1,5 milhões antes da queda de Saddam Hussein, em 2003, passou para 500 mil. Não se pode consentir que o Próximo Oriente se transforme em cemitérios ou em museus cristãos.
A notícia do desejo do Papa ir ao Iraque e do seu Presidente o ter convidado oficialmente, suscitou um enorme entusiasmo na população. Como referiu o Patriarca Louis Sako Rafael I, ao ouvirem as palavras do Papa Francisco, aplaudiram à maneira iraquiana, dizendo aleluia, aleluia.
Que podem eles esperar do Papa? Ele próprio declarou: “desejo de ir no próximo ano, para que o Iraque possa seguir em frente, através da participação pacífica e partilhada na construção do bem comum de todos as componentes religiosas da sociedade, e não caia novamente em tensões que vêm dos conflitos intermináveis de potências regionais”.
Com esta declaração manifesta que não vai apenas para apoiar as muito sofridas comunidades católicas orientais, como lhe pertence. O que o preocupa é a participação pacífica e partilhada na construção do bem comum de todas as componentes religiosas da sociedade.
Francisco tem demonstrado nas viagens, onde os católicos são uma minoria, que consegue entusiasmar todas as correntes da sociedade, civil e religiosa.
Tem sido a voz de uma prática de acolhimento das pessoas em fuga, amontoadas dentro de navios, em busca de esperança, sem saberem em que portos poderão ser acolhidas.
Para embarcações, com armamentos sofisticados e caros capazes de produzir devastação que não poupam nem sequer as crianças, há sempre portos abertos. Francisco é a voz permanente daqueles a quem querem roubar a própria esperança.
[i] Cf. Jean-Marie Mérigoux, O.P., Chrétiens du monde arabe, La vie spirituelle, nº 805 p 169-176
in Público 07.07.2019
https://www.publico.pt/2019/07/07/sociedade/opiniao/papa-francisco-iraque-1878713