O optimismo possível de um cínico

 

ANTÍMIO DAMIÃO
Desenhador Gráfico e Ilustrador / Estudante de Filosofia na NOVA/FCSH


O cínico foi em tempos um tipo atraente, misterioso, provocador. Hoje em dia, pelo contrário, ninguém pára na rua para o ver passar. Pertence a uma sociedade acagaçada com a morte e pronta a delatar o vizinho para salvar a pele ao mínimo sinal de perigo. Seja como for, ele est.﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ estro sinal de desacordo,  dias, im scada, á sereno. Remói feridas de amores bêbados e perde-se de razões como um mendigo nas avenidas ricas. A vida, nos seus altos e baixos, tirou-o do poço para voltar a pô-lo lá. Lembra-se de estar sentado à porta de uma casa velha e alta, diante de uma fonte de pedra, num jardim de nome impróprio, à conversa e a rir, com uma mulher. No presente, rir é coisa de parvo. Basta olhar em volta para perceber porquê. A coragem tem os seus dias contados, tal como o toque, a liberdade, os modos humanos e coisas afins. Para lá da janela, tudo estagna num circo de imobilidade. Os espíritos corajosos remam contra a maré de dias incertos. Há um silêncio e uma ruptura atordoantes. A vida não é sujeição, quanto mais desistência. Neste mundo, muito se fala e escreve para esconder a verdade, e com esta vai-se a privacidade: antes tida em casa, defronte do espelho, mas actualmente exposta ante os ecrãs. Os homens mascararam-se e inverteram o sentido da socialização como se o medo lhes fosse injectado em jeito de droga letal e ao sabor de alertas e números que ninguém prova ou consegue explicar. O erro cabe a todos, embora normalmente o imputem a outros — o analfabetismo dos afectos. O hospício foi entregue aos loucos. Felizmente, querer ou não viver é ainda, que se saiba, uma escolha. E evitar a morte é adiar a sua inevitabilidade — expulsá-la do círculo social é banir a vida. O lamentável mundo novo estremece sob uma redoma invisível e sanitária, governado pelo jugo massivo de cores vivas que nos entretém como uma série televisiva a que assistimos enquanto vamos tirando do pacote e mastigando com agrado o punhado de amendoins já descascados. Para mais, há a cartilha publicitária: “Estimado consumidor, tudo está bem. Estamos juntos e consigo. Bem-vindo à nova normalidade. O mundo não acabará se comprar o novo (inserir aqui o produto a incluir).” Há quem tacteie o chão com o pé e olhe receosamente o céu, não vá este cair e aquele fugir de rompante. Tudo é possível. Basta acreditar.

Entrementes, a cidade está quase vazia. O ar, em compensação, nunca esteve melhor. No meio desta ridicularia draconiana, o cínico esquece-se de algo que, por mais que queira, não consegue lembrar-se. Gasta tempo e sapatos vendo montras e lojas fechadas — a inutilidade de tudo. Passam-se dias sem reconhecer um amigo. Telefona a este e àquele fulano, oferece-se para lá ir a casa, mas todos receiam um aperto de mão, um abraço ou dois dedos de conversa. (Porquê perder tempo com quem não quer perder tempo connosco?) Em vez disso, vai ao supermercado, onde os corpos se atrelam a sacos e as crianças a pais. A clientela já aviada alinha-se em fila indiana para pagar. Apesar da aconselhada distância de segurança, os olhares pendem abaixo como se oprimidos pela factualidade de serem o que são. As pessoas estranham-se. Há rupturas de estoque por suprir. Duas mulheres engalfinham-se na fila de pagamento por causa de um champô, obrigando o segurança a intervir. No corredor central está um homem nos seus cinquenta anos, de sorriso desconcertante, cesta vazia e olhar atento. A clientela passa por ele como se ele não existisse. Aparenta ser um desses homens-estátua que proliferam nas zonas turísticas das cidades ou aquele tio que costumava lá ir a casa e que, por qualquer razão, deixou de o fazer. O homem cumprimenta toda a gente sem que a cortesia lhe seja retribuída. Votam-lhe um desprezo vil. As costas das suas mãos estão esfoladas por causa da psoríase. Uma criança agarra-lhe no braço e a mãe surge de repente, puxando-a violentamente para ela e obrigando-a a pedir desculpa pelo embaraço que a própria mãe criou. Em seguida, uma velha de ar tresloucado sorri ao homem. Haja decência.

Volta e meia, o cínico vai até à cafetaria, onde, a metros do balcão, perde dez minutos de vida com um café queimado e um bolo duro. Olha para o relógio: seis e meia. Por hoje chega. Já tem o que precisa. Na fila para a caixa está a velha de há pouco. Ao lado está uma mulher de máscara, luvas e fato-macaco brancos, à qual se descobrem apenas os olhos — astronauta ou lunática. Há separadores de acrílico nas caixas registadoras. A velha tira um punhado de moedas da carteira e, espalhando-as à toa na bandeja da caixa, conta-as uma a uma como se o tempo se reduzisse ao tilintar metálico das moedas. (Afinal, o uso quase obrigatório do cartão bancário tem o seu quê de vantajoso.) A funcionária da caixa olha para ela, apática. O cínico respira fundo. Por fim, chega a sua vez. Paga e sai o mais depressa possível, não vá a morte levá-lo a casa (escárnio). Cá fora, o homem do supermercado passa por ele a correr, impaciente nos seus sapatos gastos e sobretudo cinzento que lhe assenta como uma lápide. O homem detém-se à borda do passeio e põe-se a cambalear. Um carro surge a toda a velocidade e ele lança-se para cima do capô. O impacto brusco; a queda no asfalto; o silêncio geral. Os poucos transeuntes filmam o acidente com o telemóvel. Pouco depois, a polícia chega e a ordem é consolidada. O homem está morto. Logo a seguir, passa uma caravana de três carros. O último veículo, munido de altifalante, toca, em alto e bom som, o Aleluia, de Händel. No carro do meio vai um padre em pé, à janela do tejadilho, empunhando um ostensório enquanto benze a população em casa. “Eu vos bendigo e saúdo, irmãos! Protejam-se!”, clama ele, ao microfone.

À entrada do prédio, o cínico esbarra com o pastor-alemão do vizinho. O dono do cão olha-o de viés, ar taciturno e barriga imperial. Enquanto o cínico recolhe o correio, o vizinho e o cão esquivam-se para dentro do elevador e sobem sem esperar por ele. “Bem hajam”, agradece o cínico. Uma vez em casa, arruma as compras na cozinha, descalça as botas e atira-as para um canto enquanto um pé-de-vento se levanta lá fora. Cansado, deixa-se cair na poltrona da sala. Em vez do silêncio esperado, os miúdos do andar de cima desatam a gritar. Nesse acréscimo de solidão, o cínico esquece a sua própria voz. Os dias passam, indistinguíveis. A ladainha repete-se. Tudo se esborra na memória. Ao jantar, perde o apetite. Nada de novo. Nada serve. Nisso, o moer das térmitas no guarda-fatos. É meia-noite. Deita-se tarde para não ter de cismar com tudo. Ansiedade crónica de manhã à noite — não há mãe ou remédio para tão grande mal. De madrugada, levanta-se para ir urinar. Falha a sanita e atinge o tampo amarelado da mesma. Acorda de manhã, toma banho, o pequeno-almoço, sai de casa e, de caminho, lê os palavrões nos muros e paredes pichados da cidade. O ciclo recomeça e, por mais que custe, repete-o até que a vontade e o corpo se recusem a continuar. O homem do supermercado teve sorte, pensa ele indagando forma de se distrair.

Por sorte, a loja de discos da esquina reabriu em regime de liquidação total. Por entre discos de vinil e compactos, a modelo na capa de um disco recorda-lhe um amor antigo. Os olhos são os mesmos, tal como a estrutura do rosto, o vestido florido, os ombros esbeltos, o olhar distante, o perfil helénico, os cabelos de fogo. Mas não, não é ela — ou melhor, como podia ser? A música sensibiliza-o. Compra o disco e sai. Uma luz de prata cobre as ruas molhadas. Uma nesga de azul desponta por entre as nuvens. Os passantes, poucos e apressados, correm para o autocarro antes que a chuva volte. Para quê a correria se a vida é um fim adiado?

Após o passeio, o cínico chega a casa. Uma vez no quarto, a luz do dia morre por entre as gelosias da janela. Olha novamente para a mulher do disco, para a sua cabeça gentilmente tombada, os seus olhos selvagens, verdes, imensos, e teme rever uma peça já acabada no palco do passado. (Haverá um abraço que dure a vida toda? E como acamar de novo o rosto em cabelos flamejantes?) Sela em mente o elo do amor ido e recorda os dias e noites com ela: a mordidela rábica no lábio; a aventura incontida da paixão; a mensagem de batom no espelho; um vestido branco ao vento; os passeios no jardim das oliveiras; a nudez à beira-mar; a eternidade de um gesto doce; a vida em dias de mel. Por fim, o soltar de mãos na última tarde e a separação dos amantes no tumulto indiferente da cidade. O cínico imaginou-a a voltar-se e a vê-lo entrar na livraria, onde procurou afogar o desgosto nas páginas de um livro. Porém, ficou sem saber se assim foi, embora goste de pensar que sim. À meia-luz, ouve a sábia melodia do disco e do tempo. Por pior que tudo seja, há o sonho e a lembrança de algo bom e distante. Espreme a saudade como um limão amargo. A vaidade cede à vergonha da velhice. O cinismo é-lhe inato, podendo assim mortificar-se com estilo. De resto, os lamentos nunca ajudaram ninguém. Sob os lençóis, conclui que tudo muda, excepto o que não quer e o que não consegue mudar. A noite adumbra-se no quarto, prisão onde ilusoriamente se acha livre, onde o corpo se quebranta, onde se relega ao olimpo onírico do sono. Apesar de tudo, a mulher persiste, imaginada. Ele sonha com um lar onde as mãos de ambos se unem e a família que poderiam ter tido nunca o será se de facto fosse. “Idiota ou sábio”, pensa ele. Fita o escuro e estende-lhe a mão. Olha-a no fundo da mente. “Aonde vais? A vida espera-nos. Ou já não me ouves?”, pergunta ele a vivalma. A agulha do gira-discos fixa a estática repetitiva da faixa final, enquanto o disco, obstinado, continua a girar, a girar, a girar…

Mas, chega de nostalgia! A nostalgia é uma arma apontada ao coração de uma realidade indesejada. Para além disso, tem a particularidade de instigar nos homens, sobretudo aqueles que se conformaram com as adversidades da vida, a ideia de que tudo era melhor no passado. Ademais, a resignação atrela-se à nostalgia, tal como a vontade de reviver a infância e os sonhos que o tempo, esse fiel carrasco, teima em apagar à revelia da vontade humana. Não obstante, para o cínico sobram problemas de elevada monta. Para se acalmar, imagina-se velho, por entre milhões de verbetes e arquivos, às voltas com as memórias da humanidade. Cansado de fuçar gavetas e alfarrábios, larga o que faz e, apesar de meio cego, olha saudoso pela janela. No horizonte árido à sua frente, as construções dos homens jazem em ruínas na grandeza perene do mundo. Está preso à herança de um passado que ninguém soube cuidar. É, como muitos, um sobrevivente, filho de uma geração obscenamente egoísta e fecunda em milagres tecnológicos. Apesar da decadência civilizacional, gosta de crianças e animais, do nascer e do pôr-do-sol, da chuva e da maresia nos prados ao raiar da manhã, de pão quente com manteiga, de casais de mão dada, de passeios pelo campo, do silvo dos comboios ao longe, de feiras populares, dos pássaros rumo ao poente, do rumorejar subterrâneo das águas, do riso das crianças, de viagens solitárias estrada afora, da dança do vento nas copas das árvores, do plano divino das coisas.

É-lhe costume sentar-se à secretária do escritório, à luz do candeeiro. Dos pensamentos faz frases que regista com agrado; esforça-se para dar sentido às coisas; contenta-se com pouco. Aprendeu a estar só e a preservar o essencial. No fim de contas, o ódio e o amor são frívolos, pois o propósito das coisas, boas ou más, ultrapassa em muito a vontade e a compreensão. O cínico é um anacronismo à mercê dos elementos; é o remorso e o choque causados pelo desaparecimento gradual da beleza do mundo. Embora tudo passe, a humanidade parece ter atingido o seu zénite. Porém, são males da história a repetir-se. Amanhã: o motim; depois disso: a mudança; doravante: a realidade venal do devir humano. Cada dia é uma marcha lenta que carrega consigo os erros dos homens através das eras. A possibilidade do fim da espécie assusta menos que um cruzar de braços universal ou o ficar à espera de um maná caído do céu. No fim de contas, é melhor fantasiar o impossível que ter de encarar os factos.

A rua vazia instiga a desolação. Mais surpreendente ainda é o silêncio dos acagaçados, dia e noite, por toda a parte. Os cães ladram, aqui e ali, como políticos inebriados de poder. E, como que a propósito, as reformas discutem-se em plenários levados a cabo por agentes da ignorância. Há charlatanismo a mais, corrupção sem freio, paz podre e idolatrias que levam ao declínio. De qualquer das formas, o cínico murmura para si mesmo, em surdina, todos os dias, palavras de consolo: “Apesar dos males, tudo tem um propósito.” Isto é, no fundo, uma prática de fé. E o que é a fé, visto não oferecer gratificação evidente? O cínico não responde nem sabe responder. Em vez disso, tenta adir esperança à sua escrita, mas, de tanto observar os homens, de tanto ler as suas histórias, de tanto atestar as suas falhas, já nada espera deles senão a perversão e a mentira. Regra geral, os homens, sem comida, ordem, arte, amor e justiça, são bestas irracionais. Com efeito, os homens são crianças brincando à beira do precipício, a um passo do fim. De qualquer das formas, as palavras existem, são o abrigo da alma. O optimismo conforta, amansa, fica bem, mas, verdade seja dita, o homem moderno precisa é de murros no estômago, de bofetões na cara, de insónias constantes! A satisfação e o conforto amoleceram-no ao ponto de chafurdar num bem-estar aparente, fruto do poder incómodo da verdade. E que lástima a desses escritores românticos que, em cada linha de dor e lágrimas, nada explicam ou ensinam sobre o amor e a vida, pois, ao fim e ao cabo, não falam de outra coisa senão de si mesmos — tal como o cínico.

Na Quinta dos Animais do senhor Orwell, o cínico seria decerto o gato, já que nada impõe, não venera ninguém e tampouco quer mais do que os outros. Em suma, quer da vida o quinhão que lhe cabe e um poucochinho de paz. (Como censurá-lo por isso?) Dentro e fora do buraco negro da sua pupila está tudo o que tem a saber. A rede da memória estende-se entre os pilares do tempo e, ainda que resista, tende a vergar-se sob o peso da vida, que abrange um sem-número de ligações e coincidências que apontam a sendas pejadas de mistérios e conluios que não lembram ao Diabo.

Passados uns dias, o cínico sai de casa. Há mais pessoas na rua. Os taxistas reúnem-se à porta do centro comercial, em animada cavaqueira. Com ou sem males, a vida é feita de conversas, de experiências, de presenças, de abraços, de riscos. Ninguém vive para sempre. É triste ver uma sociedade dócil e manipulada por uma facção mínima de indivíduos boçais e perigosos. Seria de lamentar que um dia os laços humanos se fixassem à distância, apagados como velas na noite, como se do tempo e da experiência ficasse a imagem final do homem solitário, fechado no quarto, confinado às paredes desinfectadas da sua casa, amedrontado com o ar que respira, com o que toca e sente, sem um festejo colectivo — o exemplo perfeito da morte em vida. Em todo o caso, que sabem os homens? Ou melhor, o que podem saber? Na verdade, nada. A bem dizer, continuam na caverna platónica, onde, ao invés de outras sombras na parede, vêm apenas as suas, tomando-as como verdade absoluta.

Num pequeno texto de Baudelaire, um estrangeiro, confrontado com diversas questões, acaba a confessar o seu amor maior pelas maravilhosas nuvens que passam. Eis, de facto, um paradigma de amor único e incontornável.


Antímio Damião