O nosso futuro é agora

BENTO DOMINGUES, O.P.


Já estamos no novo ano. É um ano para a nossa
conversão que tem muitas dimensões.

Em alguns ambientes, a espiritualidade está na moda. Quase se poderia dizer: espiritualidade sim, religião não. Quem assim se exprime pode ter muitas queixas das crenças, dos rituais e dos preceitos das instituições religiosas ou, apenas, preconceitos. Raramente é fruto de investigação, de estudo. A investigação e o estudo parecem reservados ao domínio das ciências. A espiritualidade apela à subjectividade de quem não se contenta com o mundo empírico e procura não só um sentido para a vida, mas formas de viver esse sentido. Existem sabedorias e espiritualidades sem qualquer afirmação explícita de Deus como acontece, por exemplo, no budismo, mas não só.

No campo católico, a espiritualidade sempre se conjugou no plural. Por exemplo, espiritualidade beneditina, franciscana, dominicana, carmelita, inaciana e as espiritualidades das congregações religiosas dos séculos XIX e XX. Se elas marcaram a história também a história as marcou a todas. Actualmente, devido à secularização do Ocidente, a grande moda são as importações das chamadas espiritualidades orientais, quase sempre bem destiladas.

O anti-intelectualismo, no campo religioso e espiritual, é, hoje, de regra entre os cristãos em geral e até entre seminaristas, padres e membros de congregações religiosas[i]. Parece que a razão cientifico-técnica esgotou todas as formas de razão. No entanto, a mística de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz nunca dispensou a companhia de grandes teólogos. A escola renana casou a mística com a teologia, como se pode observar no mestre Eckhart!

Fala-se facilmente de espiritualidade bíblica ou patrística, dispensando as exigências do conhecimento árduo dos mundos bíblicos ou patrísticos.

Dizer isto não significa desprezo pela dimensão mística da vida e dos seus caminhos. Mesmo os místicos são pouco estudados. As observações feitas referem-se, sobretudo, às espiritualidades género chá de tília e comércio de auto-ajuda, onde há de tudo.

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Pelo Natal e pela Páscoa, são frequentes as publicações sobre as fontes cristãs da cultura ocidental.Este ano, em parceria com a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, Le Figaro/Hors-Serie reuniu biblistas, arqueólogos, historiadores e teólogos para examinar o Caso Jesus no crivo da História. Narra as principais etapas da sua missão, decifrando os sete erros mais comuns sobre Jesus: analisa o seu julgamento, a revolução religiosa da qual ele foi o instigador, os retractos de Maria, João-Baptista, Maria Madalena, Pôncio Pilatos, etc..

Está sumptuosamente ilustrado por Giotto, Bosch, os mestres vidreiros de Chartres, escultores românicos e góticos, Ghirlandaio, Titoiano, Tintoretto, Tiepolo, Fra Angélico e muitos mais, para dar às narrativas do Novo Testamento as expressões mais célebres da vida de Jesus Cristo no esplendor da arte ocidental.

O conjunto é coroado por uma longa entrevista ao P. Olivier-Thomas Venard, O.P., sobre o colossal programa BEST (Bíblia E Suas Tradições), da Escola Bíblica de Jerusalém, que coordena dezenas de investigadores para uma edição comentada das diferentes versões da Bíblia. Renova totalmente a sua leitura, dando livre acesso às suas diferentes versões, comentadas versículo a versículo, do ponto de vista teológico, histórico, arqueológico, artístico, literário… A abordagem da Bíblia, nas suas tradições, é um programa lançado para ter em conta as grandes metamorfoses das ciências bíblicas nos últimos cinquenta ou sessenta anos. BEST propõe-se recolocar a Bíblia no coração das culturas e das civilizações de que se alimentou e que ela, por sua vez, influenciou.

Não se esqueça, porém, que, no dizer de Teixeira de Pascoaes, «A Bíblia é um Epitáfio, um livro escrito. Mas o Livro da Vida, citado por S. Paulo, existe na inspiração dos Poetas, eternamente irredutível a papel e tinta ou a qualquer substância morta»[ii]. De facto, na 2ª Carta aos Coríntios, está dito: é Deus «que nos torna aptos para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, enquanto o Espírito vivifica»[iii]. Tomás de Aquino sublinha que a própria letra dos textos do Novo Testamento mata se não for acolhida como voz do Espírito que o inspirou.

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Já estamos no novo ano. O Frei José Nunes, provincial dos dominicanos, na sua mensagem de votos de Bom Ano, recordou asabedoria da Mafalda Quino: as pessoas esperam que o ano que vem aí seja melhor que o anterior, mas não esqueçamos que o ano que vem aí também espera que as pessoas sejam melhores! É um ano para a nossa conversão que tem muitas dimensões.

Olafur Eliasson, no catálogo da exposição que fez em Serralves, no ano passado, escreveu: «não olhemos para o passado para definir o presente. O nosso agora passou a ser definido pelo futuro. As projecções sobre as consequências das nossas acções de hoje começaram a moldar e a orientar as nossas vidas. E isto é novo. A concepção do mundo da minha geração e das gerações anteriores foi definida por noções do passado, de consumismo, de crescimento, de acumulação de riqueza – e não posso fingir estar isento a essa perspectiva. Vimos o presente através da lente do que o tinha precedido. Esperávamos que o mundo fosse previsível e que o futuro se baseasse no passado. Hoje em dia, na era do Antropoceno, tornou-se claro que temos de mudar de atitude – o presente e o futuro estão a tornar-se cada vez mais imprevisíveis. A natureza já não nos pertence (nunca pertenceu) para a explorar livremente; somos parte dela. Agora é evidente que não podemos continuar a viver como vivemos no passado e que todos os aspectos da sociedade se terão de adaptar à crise climática. Muito do que hoje tomamos por garantido como uma actividade normal, como algo que fazemos diariamente, tornar-se-á obsoleto ou até ilegal daqui a dez anos. A geração mais jovem está ciente disso. Eles começaram a ver o presente à luz do futuro que eles próprios têm de moldar, aqui e agora. Não se trata apenas de viver de forma ecológica; trata-se também do nosso sentido de justiça»[iv].

Hoje, Domingo da Epifania, é dia da revelação de um Deus pobre, humanado e irmanado com os pobres. Desse Deus, os sacerdotes das religiões nunca ouviram falar, como conta Sophia de M. B. Andresen[v].

Tornemos bom 2020!


[i] Mariano Ruiz Campos, Por qué cuesta tanto apreciar la labor del teólogo hoy?, Teología Espiritual LXI (2017), 309-350

[ii] Teixeira de Pascoaes, Aforismos, Assírio & Alvim, 1998, p. 39

[iii] 2 Cor 3, 6

[iv] O v/nosso futuro é agora, pp.51-52

[v] Os três Reis do Oriente, in Contos exemplares.


Público: 12. 2020
https://www.publico.pt/2020/01/05/sociedade/opiniao/futuro-1899145