Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- A teologia não pode ser estranha ou indiferente a nenhum mundo. Nenhum mundo, sob o ponto de vista cristão, pode ser indiferente à teologia, ao mistério da Incarnação de Deus. A procura da inteligência da fé, isto é, teologia, não pode ser indiferente ao avanço das ciências e das expressões da experiência humana. A razão humana é plural e vai descobrindo o mundo com todos os recursos das ciências, das técnicas e da imaginação cultural que não está reservada às ciências e às técnicas. Desde o começo destas crónicas, no Público, tive sempre por guia um diagnóstico, dos anos 30 do século XX, sobre a incredulidade do mundo moderno: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião.
O espiritual supõe um mundo sensível. Sem este, desaparece a possibilidade das expressões simbólicas da fé. «Os sacramentos pedem matéria (água no baptismo, óleo da unção no crisma, pão e vinho na eucaristia, etc.). O religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo. A poética de Adélia Prado é, por isso, escandalosamente erótica, porque é, talvez mais ainda, escandalosamente sacramental»[1].
A este respeito, Frei Betto pergunta e responde: «o que é a mesa eucarística? A eucaristia é o mais socialista dos sacramentos da Igreja, porque celebra a partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho humano. Só assim, nos podemos chamar, uns aos outros, irmãos e, a Deus, Pai. Cada vez que celebramos a eucaristia deviam chamar a polícia porque estamos questionando a ordem social, que não partilha a comida e a bebida do mesmo modo. Nesse sentido, acredito que a humanidade não terá futuro sem a socialização dos bens e a socialização do bem maior – a vida –, sem a solidariedade entre as pessoas»[2].
A Sabedoria é um espírito amigo dos seres humanos… é o reflexo da Luz Eterna, espelho nítido da actividade de Deus e imagem da sua bondade (Livro da Sabedoria 1, 6; 7, 26). Como observou o jesuíta, José I. González Faus, um dos ensinamentos mais globais e mais admiráveis do Antigo Testamento é a do Salmo 85, 11: a misericórdia e a fidelidade encontram-se, a justiça e a paz beijam-se. Esta frase do Salmo anuncia o abraço e a harmonia entre duas dimensões que experimentamos como contrapostas e que, generalizando, podemos descrever como exterioridade e interioridade: a justiça (sedeq) designa uma actividde exterior, uma luta a favor dos outros. Por isso, nunca se separa do direito (mispat). Por outro lado, a paz (shalom) descreve uma atitude interior de pleno bem-estar. Além disso, seguindo o paralelismo típico da poesia hebraica, na frase citada, deparamos também com outro encontro similar (hesed e emeth), donde a misericórdia (hesed) designa outra vez uma actitude em relação aos outros, enquanto que o segundo termo deve traduzir-se, aqui, como veracidade ou autenticidade, que qualificam uma atitude interior: a misericórdia e a fidelidade encontram-se. A grande notícia da mensagem bíblica é que essas duas dimensões que nós podemos experimentar, como contrapostas, na realidade não o são e, portanto, estão chamadas a encontrarem-se e a beijarem-se[3].
- Não sei porquê, mas a liturgia do Domingo, a seguir ao chamadoPacto de Assis, reflecte o desencontro entre a justiça e a paz. A passagem escolhida do Antigo Testamento é de Amós, que não se considerava profeta, mas profetizou a incompatibilidade entre a ostentação de uns poucos em face da miséria de muitos: «Ai dos que vivem comodamente em Sião e dos que vivem tranquilos no monte da Samaria. Deitados em leitos de marfim, estendidos indolentemente nos seus divãs, comem os melhores cordeiros do rebanho e os novilhos mais gordos do estábulo. Folgam ao som da harpa e inventam, como David, instrumentos de música. Bebem vinho por grandes copos, perfumam-se com óleos preciosos, sem se compadecerem da ruína de José».
- Lucas, no mesmo Domingo, põe na boca de Jesus uma parábola dirigida aos fariseus,amigos do dinheiro, que se riam das suas ingenuidades económicas. A parábola não podia ser mais dura: «Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas eram os cães que vinham lamber-lhe as chagas». Este contraste, se não for resolvido neste mundo, não há outro em que possa ser reconciliado[4].
- O Papa Francisco luta por uma economia que, em vez de descartar e matar, ajuda a vida digna de todos, a começar pelos desprezados. Empenhou-se em reunir jovens e peritos para encontrar esse caminho novo porque o outro já tem muito de velho. Como já tentei mostrar noutra crónica, ele prefere, na sua acção pastoral, envolver pessoas, sobretudo jovens, que não se devem acomodar a um mundo que não é de todos. Chamou-lheEconomia de Francisco de Assis, um homem que ficará sempre na história como exemplo do seguimento de Jesus de Nazaré e que, agora, no encontro de 22 a 24 de Setembro, ficou designada como Economia do Evangelho, quer dizer, a verdadeira economia cristã.
As questões económicas e sociais tiveram uma grande importância nas descobertas do chamado Novo Mundo, no século XVI, sobretudo a partir da teologia e da prática dos dominicanos Francisco de Vitória, Montesinos, Pedro de Córdoba e Bartolomeu de Las Casas. No século XX, mais precisamente em 1941, o padre dominicano Louis-Joseph Lebret fundou a associação Économie et Humanisme[5], que suscitou e publicou investigações sobre o desenvolvimento, as políticas e práticas sociais, o emprego, a cooperação e a solidariedade internacionais. Esta associação editava uma revista com o mesmo nome acompanhada por uma grande actividade editorial de publicações, formação e animação de debates. Esta associação terminou em 2007.
Factos e dados actuais manifestam a imensa desigualdade de rendimentos e concentração de riqueza: 1% dos mais ricos da população global possuem 43,4% da riqueza mundial líquida; 56,6% das pessoas no mundo está abaixo dos 10.000 USD em termos de riqueza e detêm menos de 2% da riqueza global[6].
O mundo da Economia Solidária, nas suas diversas experiências e tendências, não se resigna a essa realidade escandalosa.
[1] Adélia Prado, Tudo que existe louvará (Antologia organizada por José Tolentino Mendonça / Miguel Cabedo e Vasconcelos), Assírio & Alvim, 2016, pág. 7
[2] Cf. Leonardo Boff / Frei Betto, Mística e Espiritualidade, Rocco, Rio de Janeiro, 1996, pág. 41
[3] Cf. Sabedoria divina. Os pobres nos Livros sapienciais da Bíblia, pág. 3
[4] Amós 6, 1.4-7; Lc 16, 14.19-31
[5] Cf. Manuela Silva, O Padre Lebret – um profeta e um homem de acção, in ISTA 23 – 2010, pp.145-156
[6] Policy Paper, Desenvolvimento, Comércio e Finanças. Desigualdades e incongruências, Março 2021, pág. 45
Público, 02 Outubro 2022