O mundo fluido de Samuel Pimenta

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Foto: M Céu Costa


Samuel Pimenta é dos poetas das gerações mais novas que mais atenção merece. São poetas como ele que justificam a distinção entre escritor e poeta. É comum, nos currículos e notas de identificação, lermos que o sujeito é «escritor, poeta e dramaturgo». Em princípio, tal não seria necessário, todos os géneros pertencem à família «Escritor». Não é o caso de Samuel Pimenta, de tal modo a poesia nele flui como um regato, é fluente. Ser fluente, noutro contexto, é dominar uma língua quase tão bem como o nativo, ser nela, discursá-la como seu habitante contínuo. Aceita-se assim por merecidíssimo qualquer prémio que receba, em especial o que recaiu sobre o seu último livro, Ascensão da água – Prémio Literário Cidade de Almada 2019.

Por outra razão o último livro de Samuel Pimenta, Ascensão da água, é fluente: como o título indica, nasceu sob o signo da água. E então os «planos de água», como diriam alguns cientistas, ocorrem no fluir das páginas e não apenas os ribeiros e seus serpenteantes familiares, se bem que o rio domine a ponto de abrir o livro, com o poema «Foz». Vejamos a primeira estrofe:

Falo-te da condição dos rios
do gelo das montanhas
e dos peixes
dos seixos e escarpas
que ainda dobram as minhas águas.

Repare-se no sujeito do discurso, quem fala é o rio. Não se trata de uma personificação banal, tanto mais que podemos invertê-la e dizer que o poeta se investe das qualidades do mundo natural, o que não deixa de ser o fenómeno de base. Claro que o autor, o poeta, exprime o que sente, pondo-se na pele do rio. Isso é o que todos os poetas fazem. Samuel Pimenta cria, com o seu recurso mais invulgar, um palco onde diversos tipos de planos de água representam o seu drama, de modo que a fluência poética vai alastrando e decorrendo como peça de teatro. Que peça? Mais um ritual, um rito de passagem, a sublinhar a azul, como um link, o veio que leva ao lado de lá da vida, exigindo  barca e barqueiro talvez chamado Caronte, que manobre para a «Travessia»:

És barqueiro destas águas onde habito
e é contigo que farei a travessia.

Navegando com estes sujeitos múltiplos do discurso poético – foz, rio, peixes, terra, mar, etc. – vamos passando pelo que lembra o rio do esquecimento, Letes, e o Estige, ou Rio da Invulnerabilidade. Foi nele que Tétis mergulhou Aquiles, deixando de fora o calcanhar, porque era pelo calcanhar que o segurava. Não é um livro sobre nem de mitologia, as referências ocorrem no fluir do discurso por necessidade de estabelecer a liturgia de um ritual, no caso um rito de passagem, e porque tais elementos são verdadeiros mitos, ou seja, arquétipos com que a imaginação sempre se exprime.

Perguntei a Samuel Pimenta se era um iniciado, respondeu que não, e mais uma vez verifiquei que a poesia, em certos casos, não será em todos, proporciona um estado propício à descoberta dos segredos do espírito e equivale a uma iniciação. As palavras induzem, vão guiando e trazendo os seus segredos até à consciência. Com Samuel, as palavras vão buscar coisas muito antigas como elas próprias, as palavras “Hades”, “alquimia”, todas as que possibilitam sonhar com a mudança, a ressurreição, o renovo, a metamorfose, enfim, o sentir-se renascido.

A Poesia antiga não é fonte que se imita, é fonte de onde a linguagem brota, aquilo que nela existe de memória. A poesia sente saudades dela mesma num tempo remoto, sem rios poluídos com mercúrio, sem mares cheios de partículas de plástico, sem a terra recamada de lixo. Outro aspeto da fluência do livro: as águas são livres destes obstáculos, por isso podem beber-se, saciam; podem encaminhar-se para os canais de rega, podem lavar, e podem, nesses planos mais parados e espelhantes, devolver-nos a imagem do novo homem que somos, tal como declaram os livros ser o resultado do rito de passagem. E nessa altura é justo o poeta garantir que a água é luz, sobretudo tratando-se de uma Luz que ascende, como o título traduz.

Muito belo livro, fiquemos com outro poema,  completo desta vez, a falar do segredo iniciático das lagartas, quando saem do seu esquife, transmutadas em borboletas:

Casa

ao Luís, meu pai

Depois de descobrir
que as lagartas tecem túmulos
de onde nascem as borboletas
com os meus ossos ergui uma casa
e dentro dela me refiz.

 

SAMUEL PIMENTA
Ascensão da Água
Editora Labirinto
Fafe, 2020