O Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas no Lumiar

MANUEL RODRIGUES VAZ


Foi só apenas em 2017 que, embora resida em Telheiras há 35 anos, dei conta que nesta zona, mais propriamente nas imediações do que ainda agora é conhecido como Quinta do Frade, existia um mosteiro chamado Mosteiro de Santa Maria, ocupado desde 1986 por Monjas Dominicanas, e fundado na sequência do esforço da restauração do ramo feminino da Ordem por parte da Congregação de Santa Catarina de Sena. A propriedade tinha sido legada, nos inícios do século XVII aos padres irlandeses do Corpo Santo (foi utilizada como residência de férias, lugar de estudos e retiro).

Efectivamente, foi há dois anos que tomei contato com este Mosteiro situado na freguesia do Lumiar, em Lisboa, porque os penúltimos Encontros Triplov, organizados pela escritora Maria Estela Guedes, coadjuvada pelas esforçadas poetisas Maria Azenha. Maria José Camecelha e Elisa Scarpa, ali se realizaram no seu auditório, exceto o último que, por anomalias na instalação eléctrica, acabou por se fazer na capela, embora o tema tivesse sido O Erotismo. Ali fomos acolhidos com a maior hospitalidade, se bem que uma parte dos participantes fosse de orientação agnóstica, primando os espaços por uma limpeza impecável aliada a uma serenidade como se estivéssemos no campo, quase não se entrevendo as cercanias, bem no centro do espaço citadino.

Conforme nos conta António Marujo, em 19 de Março último, no Público, «O mosteiro de Santa Maria foi fundado nos inícios dos anos 80, num período em que a visão reformadora do Concílio Vaticano II estimulava as várias formas de vida religiosa (tanto as de linha apostólica como as de perfil contemplativo) a ousar novos caminhos. O repto foi aceite por um pequeno número de monjas de clausura que decidiu começar uma comunidade aberta, arriscando a transparência de uma vida simples, segundo o Evangelho. Procuravam guardar o essencial da tradição monástica dominicana, mas ensaiando uma nova proximidade ao laicado cristão e a todos os anónimos buscadores de Deus. Claro que quem transpunha os portões do mosteiro sabia que entrava em contacto com um claustro, e que aquelas mulheres viviam um distanciamento voluntário do mundo. Mas o seu contemptus mundi não pretendia denegrir ou acusar o mundo, nem instaurar uma relação dicotómica entre ação e contemplação, entre vida interior e exterior, entre sagrado e quotidiano. Pelo contrário: o silêncio do mosteiro tornou-se a possibilidade inesperada do encontro do uno e do diverso; tornou-se para tantos uma experiência de acolhimento integral da existência e da própria história; uma imersão numa liturgia cuidada, preocupada com a beleza dos símbolos e da linguagem; uma aprendizagem comum de esvaziamento, de relançamento e de plenitude.

Para a afirmação do projeto foi preciosa a colaboração dos frades dominicanos, de modo especial dois protagonistas a que o cristianismo do futuro há-de voltar: Frei Mateus Peres (um nome central da geração de “O tempo e o modo”, que optou pela vocação religiosa) e Frei José Augusto Mourão, que, depois do Padre Manuel Antunes, foi certamente o intelectual mais irrequieto e inventivo que o nosso catolicismo gerou. Eles foram os cúmplices certos das monjas para fazer do mosteiro um ativo laboratório de vida espiritual, implicado com as questões mais nodais (e também as mais de fronteira) que se colocam ao presente. No chamado “Salão do Quintal” realizaram-se as conferências dos segundos sábados, dirigidas a um público heterogéneo de crentes e não crentes, onde foi possível escutar teólogos e psiquiatras, sociólogos e vozes dos estudos literários, historiadores, como José Mattoso ou homens do teatro, como Luís Miguel Cintra».

A comunidade, até 4 de Março último, quando ali foi rezada a última missa, era constituída por quatro Irmãs. Contudo, sendo apenas quatro, representavam três nacionalidades, ricas na diferença das suas experiências. Sendo tão poucas é óbvio que certas práticas e estruturas das grandes comunidades do passado foram deixadas à responsabilidade e iniciativas individuais.

No site que ainda mantêm, afirmavam: «Somos uma pequena comunidade de Monjas da Ordem dos Pregadores ou “Monjas Pregadoras”. No seio da Ordem e da Igreja, a presença de Monjas, aponta para o essencial pela vivência do Evangelho – o seguimento de Cristo. Desejamos que nestes espaços possa “encontrar” o Invisível, o essencial para que eles apontam».

Segundo o Cardeal D. José Tolentino Mendonça, na crónica semanal que assina no semanário Expresso, «isto assegura uma grande liberdade e leva-nos a acreditar, mais e mais, que a essência da nossa vida reside numa combinação de pobreza e simplicidade aberta à visão de Deus e à verdadeira contemplação. A contemplação é uma atitude fundamental face ao mundo e à vida, um modo de olhar as pessoas e as coisas, uma atitude de encantamento. Para nós, a fonte e o fundamento da vida como Monjas é a compreensão e o acolhimento desse dom absolutamente gratuito de Deus».

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José Tolentino Mendonça, que nos últimos anos foi o responsável pela programação dos ciclos de conferências organizados pelas religiosas, ensaiou ali «uma nova proximidade ao laicado cristão e a todos os anónimos buscadores de Deus».

Alfredo Teixeira, Alfredo Bruto da Costa, Alice Vieira, Clara Meneres, José Augusto Mourão, José Mattoso, Leonor Xavier, Manuela Silva, Paulo Pires do Vale e o próprio D. Tolentino, com o maior número de intervenções, foram alguns dos convidados.

«Dirigidas a um público heterogéneo de crentes e não crentes», as sessões, com entrada livre, começavam com uma conferência; seguia-se um espaço de debate entre o público e os intervenientes, antes do tempo para o convívio, saboreado por chá e bolo, culminando com a celebração da missa.

Na dinâmica do Evangelho e sobretudo na Ordem dos Pregadores, uma comunidade monástica não pode viver fechada sobre sim mesma. Ela tem que se construir em microcosmos. O pequeno núcleo dos seus membros deve ser o centro de uma imensa irradiação de círculos ligados e atraídos pela mesma dinâmica fundadora — o seguimento de Cristo. Quanto mais forte for a vivência comunitária, mais forte será a sua irradiação e maior será o número dos que partilham e participam da sua dinâmica.

Logo desde a fundação a comunidade ficou marcada pela colaboração como projecto de pregação dos Frades estabelecidos também aqui em Lisboa. A vocação própria da comunidade de Monjas e a necessidade de um espaço de pregação para o apostolado dos Frades, fizeram surgir aqui um pólo de pregação dominicana no verdadeiro sentido do projecto de S. Domingos englobando os múltiplos elementos da Família Dominicana.

À volta desta comunidade nasceu um grupo de leigos, homens e mulheres, que pertence às ‘Novas Associações de Leigos Dominicanos’ que surgiram também no pós-Concílio como uma alternativa de renovação das antigas comunidades Leigas da Ordem de S. Domingos.

No mesmo espaço do Salão do Quintal, e sem que isso alterasse a vida regular da comunidade, acolhiam, sobretudo nos fins de semana, encontros de grupos autónomos de reflexão e oração num ambiente de interioridade e de silêncio.

Também a confecção e difusão do ícone, de que foram pioneiras em Portugal, foi um elo forte de ligação e motivo de comunicação espiritual com muitos dos que vinham até elas. Difundir o ícone era, na verdade, uma forma de pregação, pois a sua divulgação podia abrir caminho a uma nova descoberta do sagrado e da beleza.

As quatro décadas do mosteiro, escreve D. Tolentino Mendonça, vividas no «escondimento» por parte das religiosas, caracterizaram-se por uma «irreverente experiência de fé e de liberdade», que «inspirou uma estação do catolicismo português, e inclusive das suas margens».

Para quem, na cultura contemporânea, considera que o monaquismo é hoje «uma opção de vida anacrónica e inadequada, com um caráter feudal, um modelo ilegível e pouco operativo no confronto com a realidade», a «vitalidade» do mosteiro do Lumiar, nestes últimos anos, «testemunha bem a importância de que se pode revestir a vida monástica e como ela profeticamente se inscreve no tempo».

E finaliza: «Mas o desejo de contemplação de Deus no seu mistério revelado em Jesus Cristo é um horizonte que exige de nós, acima de tudo, uma grande verdade de vida — conivência com tudo o que é simples, justo e gratuito. E é esse horizonte que quisemos tentar abrir e partilhar com todos quantos se puderam sentir acolhidos no espaço do nosso Mosteiro».

Uma das ideias fortes da renovação da vida religiosa no Concílio era a formação de pequenas comunidades abertas à transparência da vida simples segundo o Evangelho, prioridade dada a uma verdade de vida conducente a um autêntico amadurecimento humano e espiritual dos seus membros. Ao estruturar a vida desta comunidade, tiveram sempre em conta essa ideia do pequeno número de irmãs — nunca mais de 7 ou 8 elementos.

A comunidade devia, também, permanecer atenta ao espírito do Concílio, na renovação da Liturgia e da Observância tradicionalmente concebida para grandes comunidades.

No concreto, era importante manter um esforço de abertura procurando, ao mesmo tempo, guardar o essencial dos valores tradicionais da vida monástica dominicana: oração e contemplação, vida fraterna, estudo da Palavra de Deus.

O tecido da vida comunitária neste mosteiro dava prioridade:

– à Liturgia com  Eucaristia diária (aos Domingos às 11,30 H., durante a semana a hora depende da possibilidade dos Sacerdotes)

– à leitura da Palavra de Deus – a Lectio Divina e o Estudo

– ao Silêncio que torna possível o aprofundamento humano e a busca de Deus na contemplação.

– à Oração Silenciosa sem especificar tempos nem métodos – o verdadeiro monge deve orar sempre.

– à Vida Fraterna autêntica, baseada na amizade – “ser um só coração e uma só alma em Deus” na tradição de Santo Agostinho de quem recebemos a Regra.

– à Pobreza que exige o trabalho pela própria subsistência, a moderação das necessidades, a opção pelo mais simples, a partilha, o despojamento que diz a presença de Deus e a beleza.

– à Pureza de Coração que é amar como Deus ama.

– à Obediência aberta ao diálogo na exigência da responsabilidade pessoal.

Dimensão também fundamental da vida monástica é o “distanciamento do mundo” que deu origem à ‘instituição’ da clausura.

Os Mosteiros das Monjas Dominicanas são regidos pela clausura papal consignada no Direito Canónico para todas as grandes Ordens fundadas na Idade Média — as Ordens Contemplativas.

Nesta comunidade, como em muitas comunidades de monjas dominicanas, essa concepção rigorosa de clausura foi posta em causa e relativizada. “O distanciamento do mundo” inerente à vivência monástica, não é entendido apenas, nem principalmente, como separação física, clausura rigorosa, “reclusão”, mas como afirmação e manifestação dos valores do Evangelho face aos valores do mundo – o dinheiro, o poder e o prazer. Daí que a vida das monjas, totalmente dedicada ao Evangelho, devia testemunhar uma grande generosidade no acolhimento, na escuta, na partilha, na disponibilidade e solidariedade para como todos — os de dentro da Igreja e, como filhas de S. Domingos, especialmente os de fora.

A renovação da oração e o pedido de pessoas que ultimamente vêm em número cada vez maior partilhar a oração dos Mosteiros, o acolhimento orientado para a partilha espiritual e o desejo de um certo diálogo com a Comunidade que reza, confrontam a Comunidade com uma dupla exigência: por um lado oferecer um espaço de silêncio, de recolhimento e de oração e por outro, ficar disponível só na medida das suas possibilidades e limitações de número e de espaço. Assim nesta Comunidade não havia hospedaria nem se recebiam “hóspedes”.

O distanciamento que a vida monacal compreende face à sociedade não pretendeu, no caso destas monjas dominicanas, «denegrir ou acusar o mundo, nem instaurar uma relação dicotómica entre ação e contemplação, entre vida interior e exterior, entre sagrado e quotidiano».

«Pelo contrário: o silêncio do mosteiro tornou-se a possibilidade inesperada do encontro do uno e do diverso; tornou-se para tantos uma experiência de acolhimento integral da existência e da própria história; uma imersão numa liturgia cuidada, preocupada com a beleza dos símbolos e da linguagem; uma aprendizagem comum de esvaziamento, de relançamento e de plenitude», afirmava D. Tolentino Mendonça, ao presidir ali à última missa dominical.

Ser dominicana — resumia a Irmã Maria Domingos entre as laranjeiras, os limoeiros, o perfume do alecrim e o som embalador dos automóveis na Avenida Padre Cruz, em declarações a António Marujo — é “pôr-se em causa permanentemente, rever as necessidades do tempo e da Igreja”. É estar no meio da vida, como o cântico gregoriano deste tempo da Quaresma: “No meio da vida estamos, que auxílio procuraremos senão tu, Senhor?”

«Trabalham apenas o suficiente para viver: colagem de ícones, bolachas, compotas, bordados. São mãos de gestos de amor e invenção permanente. Mas o essencial é a contemplação e a oração. Deus, esse mistério. Estão em Lisboa, no meio da cidade, e às vezes têm que esperar o toque de alvorada do quartel vizinho para começar a rezar. Vivem em clausura, mas esta é apenas para se darem um sítio, nunca para se separarem das pessoas. Ficou para trás esse tempo, quando as grades não permitiam sequer beijar pais e irmãos.

A Ordem dos Pregadores (latim: Ordo Prædicatorum, O. P.), também conhecida por Ordem de São Domingos ou Ordem Dominicana, é uma ordem religiosa católica que tem como objectivo a pregação da palavra e mensagem de Jesus Cristo e a conversão ao cristianismo.

Fundada em Toulouse, França, em 22 de Dezembro de 1216 por São Domingos de Gusmão, um sacerdote castelhano (atual Espanha), o qual era originário de Caleruega, e confirmada pelo Papa Honório III.

Os dominicanos não são monges, mas sim frades: Professam voto de obediência (a Deus, à Bem-Aventurada Virgem Maria, a São Domingos, ao Mestre Geral e às leis dos irmãos pregadores). Neste voto, estão incluídas a pobreza e a castidade. Vivem em comunidade, em conventos, que são implantados tradicionalmente nas cidades. Para além dos frades-padres, existem também os frades cooperadores, que embora não sendo ordenados, comungam inteiramente da missão da ordem. A pregação da palavra, o estudo, a oração e a vida comunitária são elementos fundamentais nesta Ordem, que é contemplativa e apostólica. Do carisma dominicano fazem também parte a verdade, a abertura, a compaixão, a penitência e a itinerância. Têm especial devoção à Santíssima Virgem Maria. A padroeira da Ordem é Santa Maria Madalena, uma das primeiras pessoas a anunciar a ressurreição de Jesus Cristo.

Em Portugal, Frei Soeiro Gomes foi um dos primeiros 16 companheiros de São Domingos de Gusmão, tendo, aquando da dispersão de 1217 vindo para a Península Ibérica, como seu primeiro Provincial. Tendo sido criada a primeira comunidade em Montejunto, depressa se mudaram para Santarém onde foi fundando o primeiro convento em Portugal, o Convento de São Domingos de Santarém (1238).

A Província de Espanha (assim se chamava por albergar as várias nações e Estados ibéricos) permaneceu unida até ao ano de 1418, quando pela Bula Sacrae Religionis do Papa Martinho V se reconheceu a autonomia de uma nova Província, a de Portugal, que no entanto já gozava, na prática de ampla liberdade há várias dezenas de anos.

Em Portugal, precisamente em Lisboa, as Monjas instalaram-se logo no princípio da Fundação da Ordem. Foi o Mosteiro de S. Felix de Lisboa, em Chelas, fundado em 1224.

A Província de Portugal desapareceu em consequência da extinção das ordens religiosas, em 1834.

Em 1893, Manuel Rosa Frutuoso tornava-se o primeiro sacerdote português, em quase 60 anos, a tornar-se dominicano, assumindo o nome de Frei Domingos Maria Frutuoso, futuro bispo de Portalegre.

Durante os primeiros anos do século XX foram feitas várias tentativas para restaurar a Ordem Dominicana em Portugal, mas foi só em 11 de Março de 1962 que, com a ajuda de um grupo de padres dominicanos do Canadá, a Província Portuguesa como tal foi oficialmente restaurada.

Eram os tempos do pós-Concílio e o impulso, a abertura e a exigência dos Canadianos, marcaram profundamente o ressurgimento da vida dominicana em Portugal.

Existem actualmente quatro conventos de frades dominicanos:

Convento de Cristo-Rei, na cidade do Porto (1953);

Convento de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima (1952);

Convento de São Domingos, em Lisboa (1994);

Convento do Corpo Santo, em Lisboa (1994).

Existe também um convento (de clausura) de monjas dominicanas, que é o Mosteiro Pio XII, na Cova da Iria, em Fátima (1954), para onde foram as monjas que estavam no convento do Lumiar.

A Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores Dominicanos foi agraciada com o grau de Membro-Honorário da Ordem do Infante D. Henrique a 9 de novembro de 2018.

Como nota final, quero fazer uma declaração. Esta súmula foi feita na minha qualidade de jornalista, não de proselitismo, porque tal está sempre fora das características dos meus relatos como profissional. Até porque não sou crente religioso. Mas não podia tratar de outro modo a minha muito positiva impressão de oásis de paz e serenidade que aquela comunidade me deixou nos momentos em que lá participei nos Encontros Triplov.

Lido aos 7 de Dezembro de 2019 no âmbito das XIV Jornadas Histórico-Culturais do Lumiar, no Auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras, Lisboa

As quatro irmãs que compunham a comunidade; da esquerda para a direita, Maria João, Luísa Maria, Teresa e Maria Domingos

RODRIGUES VAZ