R. LEONTINO FILHO
R. Leontino Filho (Aracati-Ce,1961) Poeta e Ensaísta. Publicou os livros de poemas Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999); Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993) e A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008). Autor do ensaio de crítica literária, inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (Natal: UFRN/Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005).
O miolo das variações, sem licença
E antes, fabular!
Sabe, então, o que vê.
Aliás, às cegas.
Faz tanto tempo
tudo isso, faz.
Melhor não revelar
as marés
que no vício veloz da desordem
extraviam apetites
desafiando
em zigue-zague
por querer
a intumescida vestimenta dos privilégios.
Isso faz tudo
tanto tempo, faz.
Melhor não desenrolar
as falas
que na cisma oclusa do sorriso
desamarram afrontas
estourando
em câmera lenta
por recato
a curta anatomia dos domicílios.
Tempo faz tanto
isso tudo, faz.
Melhor não esvaziar
as margens
que na carência esganiçada do repúdio
engordam retratos
escamando
em entreveros
por misericórdia
a vigília madura dos repentes.
Tanto faz isso
faz tempo, tudo.
Melhor não testemunhar
os naufrágios
que na barca insana da demora
recolhem licenças
desfolhando
em vária lacuna
por exemplo
a matéria póstuma das astúcias.
Tudo faz tempo
faz, tanto isso.
Melhor não investigar
os sortilégios
que no hábito circunflexo do alívio
empurram conversas
destilando
em contido nunca
por muito além
a persona calcinada das monções.
Faz tudo, tanto
tempo, isso faz.
Melhor não apalpar
os remorsos
que no capricho soberano da contenda
banalizam graças
homologando
em meias-verdades
por extravio
a bem-aventurada turbulência dos altares.
Faz isso, faz
tanto tempo, tudo.
Melhor não interromper
as fiandeiras
que na confabulação insular do erro
disparam acertos
hospedando
em palavras-chaves
por hectares
a mínima mímica das fábulas.
Tudo faz tanto
tempo faz, isso.
Melhor não fustigar
as deslembranças
que na soberba alumbrada da lonjura
varrem feudos
sangrando
em corredores
por afoiteza
a desídia histérica das cercanias.
Tanto melhor
isso não faz.
Tudo no tempo, cravar
as mensagens
que na lassidão falível dos argumentos
entreabrem cartas
sibilando
em pantomimas por zelo
a dicção imprevista das algaravias.
Já por nada rendido
tudo! tudo!
Assegurar melhor
as biografias
que no alheamento cáustico do meio-dia
domam epitáfios
embalando
em diárias
por discórdia
a litania infante das sentenças.
De longe, simplesmente isso.
Sob as bênçãos do caminhante
faz, agora, aqui, nas arestas
do desatino
o que é preciso, ainda resistir
antes que venha só
a rija cronologia
que o tempo perfaz
no tanto de tudo
que nunca chega,
melhor assim, se esvai.
Exercícios
1
o vento agreste
brisa longínqua deste ser
em incerta viagem
2
viajante de outros mares
eu, perdido grão
na infinita tarde das estações
3
pousado no ombro da infância
o poema se instala
(sopro ferido de deus)
tinge de cinzas
os lençóis do tempo
4
a cólera sombreada
por desolada piedade
está alhures
depositada sobre os astros
um tufo de recusas
5
o pecado se agarra
às turbulências do sexo
brasas ancoradas
em prontidão
o frágil viver das lendas
6
engolfados enganos
respiram em nós
numa lágrima envoltos
trajes atados ao dorso
nu dos lamentos
7
o sangue entorna
o espelho das palavras
letras sumindo no chão
o perfume do teu púbis
8
lá fora, a cobiça
submerge enfastiada
a espuma nos lábios
berrando o meu retorno
9
flores e pedras
o acaso atravessa a geografia
rumor na água
silêncio, apenas isso
10
três rebentos desembrulhados
na periferia do voo
um dengo mais ligeiro
em par, tudo eriça
Murmúrio
habitante das distâncias
o homem preconiza
o amanhecer de outras margens
lento, caminha além dos oceanos
saboreia histórias, salmos e reza
em novas manhãs
senhor de sua sina
vai, com o deus inscrito na pedra
de todas as esperas
este homem cumpre a insana
profecia do destino:
cozinhar sonhos numa caverna
onde as páginas de luz
(uma a uma borradas pela solidão)
são lágrimas de abandono
expelidas pela sacra penumbra
do anjo delirante
ele mesmo
Raio
O quanto em mim
for brevidade
no extremo sôfrego
deste esforço
sofro a todo custo
o repentino choro de um adeus
sempre triste
onde
desamar é quase amar.
mínimo defeito
ferimento ácido retalhado
na trégua fina
da impaciência
O quanto em mim
for desassossego
no gozo frugal
desta escolha
desfaço a tudo esquivo
a viscosa artilharia de ser
sempre cego
onde
servir é quase comandar.
pelas frestas coaguladas
do nascer
bebe-se um naco
de contentamento
Em desalinho
o que grassa quase
fareja desconfortos
desdobra tédios
esfria frutos
grava molduras
desprega alegrias
contesta manobras
nunca antes
sem desembainhar a graça
de ser quase
fogo.
Fechadura
a asa comprida das horas
fossiliza
o espanto inútil das coisas
o tempo incendiado pelo despudor
enferruja
o estio cativo da agonia
o olho das horas
há-de cravar suas garras
na boca lisa do tempo
esse olho-tempo
(único-deus
verbo imprevisto)
converte a asa desnuda da morte
maldosamente
na balada infecunda
do vazio
todo resto
é susto de deus
(chave perdida)
túnica branca
suspensa
no nunca que canta
todos os senões
entre brechas
o sermão do sim
além da porta
o sono espera
Selo
a mesma casa
casca nascida de distâncias
restauração ausente
do lugar
a mesma mulher
vestido antigo de mistérios
respiração intensa
da forma
a mesma força
cortejo alinhado de sinais
floração insensata
da morte
a mesma amargura
lei agreste de semelhanças
dimensão imaginária
do vício
a mesma sorte
peso pesado de vestes
crime fáustico
da palavra
só uma coisa não se vexa: repetir
a mesma casa a mesma mulher
a mesma força
a mesma amargura a mesma sorte
só uma amostra não se perde: percorrer
distâncias mistérios
sinais semelhanças
vestes
tudo com a mesma palavra pontuada
no lugar da forma
no vício do perdão
na morte
esse arremedo de lei
(fé abarcante)
que sufoca
mesmo
Partida inteira
Minha alma cega
enxerga o teu corpo
rasgando
os sóis nus da madrugada
Minha alma louca
persegue os teus olhos
incendiando
as luas tortas da noite
Minha alma vã
colhe o teu cheiro
mergulhando
nos ventos doídos da tarde
Minha alma vai
sem pressa
ao encontro
da perdição:
um corpo só corpo
sem alma
a minha
O corredor do rio
o que assombra nas margens
corta enormes cordilheiras de afogado
o que amorna nos remansos
apodrece imundas riquezas de cais
com sua gramática, assim, entre cordilheiras e riqueza
o rio volta a ser, por um dia, na matriz fora do cais
o outro possível rio que em volta de si mesmo
reacende colinas de ontem
qual campo onde a chuva pára
o rio não é última nem primeira morada
qual flor aonde águas impacientam-se
o rio sem amarras desamarra suas febres dementes
o que o rio assombra
(donde enganos produz)
de certo ele mesmo amorna
o que o rio corta
(por onde e aonde passa)
surpreende, por lados, afogados fôlegos
ele, já quase esgotado
do que tudo, até faz
na tarde, mais forte
fez-se lábio das horas
no avesso da infância:
barba envelhecida, não
lição que as coisas findas
ganham para a vida
hoje, o rio do amanhã
feito rei, concha idêntica
a lei que é libertinagem, volta