O mar

ANTÍMIO DAMIÃO

Autor | Desenhador Gráfico e Ilustrador | Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa


ODE BRANCA

No peitoril da janela pousou uma pomba em cujas asas se aninhou
Mulher pela qual verti lágrimas de fel e saudade,
Veneno de alma bebido, ninho mútuo que no tempo esqueço,
Pois hoje grito e amanhã esmoreço por quem, em vão, procurei despertar
A áspide na epiglote, atiçar sua bífida língua como um último grito: “Morte”.

Porém, ó musa!, a neve cai já terna sobre a terra,
E o amor, jazido sob o manto triste da memória,
É todo ele alva falta, todo ele olvido ido, como a pomba,
Tida em mãos lassas que os dias teimam em adormecer,
Alada na impossibilidade única de amar e no fim de tudo isto,
Daquilo que não consigo chamar, ter, sentir, de querer voar.

(Olhos ao alto. O frio cortante. Um esgar de perca. A pomba foi-se.)

E agora, ó Melpômene?, dize-me:
Onde se derrama teu falso canto de júbilo?
Na perene neve do que não ama ou do que não consegue amar?


ALMAS PERDIDAS

Ó pena rábica, porque perduras em âmago meu?
Que a ti não preveja sorte ou fim, já bem o sei,
Assim como as crises de antanho
Que, quando lembradas, por escassas pecam.

Troco a insanidade que me deslaça,
E que além de mim ninguém quer,
Qual imposição de asfixia
Que languesce corpo e alma,
E que à morte se alia, corre e clama.

E de noite caminha esse pardo gato,
Que todos vêm mas que ninguém acolhe,
Qual ilusão do porvir que tarda
E que a ignoto espírito o melhor trará
Qual espera vígil e de atalaia,
Qual queda livre em pesadelo.

Sopeso amor em teu olhar de ónix negro
E toda a sensibilidade que ocultas da vida
E escondes dos que aí andam às avessas,
A viver o que nasce inerte e já morto está.

Que mágoa ter dessa desbotada gente
Cuja alma desviada aqui não pára?
As cores acinzentam-se-lhes e vão
Percorrer rios e colinas de uma saudade
Amordaçada algures nos sonhos.

E se nem a música os trouxer de volta,
Por entre loas de criança caminharão
De encontro à galeria ornada de luar,
Ao reduto último da beleza ímpar, que,
Tão perto e longe daqui, em verde eterno
Ficará talhada na memória do que tudo foi.


O MAR

Vem com a lua o pranto das horas gastas no cais da vida,
Os joelhos nus nas barcaças, as mãos rugosas das varinas.
O mar de prata e luz é espelho da noite a cair lá do alto.
A praia onde a faina pontua cada manhã desfaz-se
Em névoa cor de nada e tudo, vaga e morta, à deriva.
Nadam os meus olhos no mar encrespado, à tona passeiam,
Em turbilhão lento se enrolam e perdem nas ondas,
Por ebulição de amor ido e não mais recuperado,
Alma de quem um dia correu mundo de vã fortuna,
Dor que arrasta a melancolia para o fundo do mar
E aí a fragmenta qual cardume espavorido,
Até não mais se aquietar com o canto perdido das vagas
E da sereia mestra que embala o pesar de quem olha.
Porém, já não sou eu quem vê o mar mas ele a mim,
Pois nele largo a molesta essência da pele que visto
E com ele me cubro para sempre sob o leito frio das águas.


A.R.C.A.

Tua alma partiu em corcel de nácar
Para o crescente da lua.
Aí me esperas, grávida de mil estrelas,
Onde o sol nasce em casa divina
E os amantes repousam eternos.

E que sentir na tua ausência, ó amada?
Que caminhos solitários pisam hoje os teus pés?
Que luz de ouro se plasma agora em tua face?

Partiram tarde teus barcos desde o porto da infância,
Desde esse mar de cabelos revoltos onde ainda navego.

Queira Deus em ti me deixar ao morrer,
Queira um dia perder este amor recordado,
Esta dor de negro vestida e de triste entardecer.

Mal enxergo o que de ontem guardo,
As memórias do poço das lágrimas,
Os gritos do silêncio que de longe ouço.
Eis nova lua na penumbra do coração,
As mãos ansiosas neste colo estéril.

E que mais a aurora trará se não estás?
Que sonhos medram nestes dias apagados?
E a falta, amor? A quem a dar para além de mim?

Mesmo querendo, não vejo caminho nesta cega noite
Ou rumo que perco, bem como farol ou labareda.

E é neste talvez imenso e vazio dos dias,
Nesta pestífera espera onde jazem faltas e mágoas,
Que a cena acaba e o pano cai como dois olhos cansados.