O jagudi ameaçado

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


O Jagudi era o nosso jornal, quando alunos do Liceu Honório Barreto, em Bissau. Os jagudis são abutres, eram, então, aves familiares, abundantes, que se aproximavam das casas, por terem adquirido hábitos antropófilos, como diria, por exemplo, padre René de Naurois, ornitólogo já falecido, que muito trabalhou no levantamento das aves das ilhas da Macaronésia, sobretudo Cabo Verde, e, fora dessa região biogeográfica, São Tomé, Príncipe, Ano Bom, que julgo chamar-se agora Pagalu, outras ilhas do Golfo da Guiné – e da Indonésia também, provavelmente Timor, pois achava ele que havia umas similitudes entre espécies asiáticas e das ilhas atlânticas que já mencionei.

Ontem, para meu desgosto, o João Firmino, meu colega no Liceu Honório Barreto, mandou-me uma foto de jagudis tirada por ele em Bissorã e o link abaixo, a informar que uns dois mil indivíduos dessa espécie tinham sido envenenados com inseticida, de propósito, para venda. Já não se trata de vender para museus, e nunca os museus precisaram de tantos indivíduos para estudo e exposição, aliás, hoje, para estudo, os investigadores recorrem a métodos que dispensam matar os animais e retirá-los do seu habitat. Apenas colhem um pouco de sangue, colocam uma anilha ou qualquer dispositivo de identificação que permita controlo remoto.

Necrosyrtes monachus, o Jagudi. Foto da Wikipedia.

É muito deprimente a causa da matança, tão deprimente como a morte de plantas e animais no Pantanal e na Amazónia, com as queimadas. Na Guiné-Bissau, a despeito da missão civilizadora empreendida por muçulmanos (o islamismo é a religião dominante), católicos e protestantes, resta ainda, do feiticismo e de outros fatores, uma cultura bárbara, que de um lado pratica a mutilação genital feminina, de outro usa o jagudi para práticas de feitiçaria. Lamentável ignorância, ingenuidade, despreparação, por falta evidente de instrução escolar adequada. Mas comparemos os feijões mágicos, o clister de ozono, a cloroquina proclamados como remédio contra a Covid-19 pelo próprio presidente da República do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, comparemos com a lixívia e cloroquina aconselhadas pelo próprio Presidente da República dos Estados Unidos da América, comparemos esta porcaria intelectual e cultural com as cabeças e patas de jagudi cozinhados para preparo de algum feitiço contra a impotência sexual, e ficamos sem saber o que argumentar: a Guiné-Bissau permanece agarrada a uma existência pré-científica? O Brasil recuou a uma era remota de obscurantismo?  Os EUA deixaram de iluminar o mundo contemporâneo com as luzes francesas do aperfeiçoamento cultural e científico? Temos pela frente uma dura batalha contra os obstáculos à arte e ao conhecimento científico. Os que sobreviverem ao embate, claro. Podemos não escapar aos perigos que nos espreitam, a nós, Homo sapiens. Quem diria que somos uma das espécies mais gravemente ameaçadas?

No meu caderno de poemas Chão de papel, publicado há uns anos na Apenas Livros, dediquei ao jagudi algumas palavras. O nome científico da espécie não está errado, ou pertence a outra espécie ou ficou desatualizado. Os nomes das espécies mudam, sim, «caem em sinonímia», para usar expressão técnica. Mudam, tal como mudam os topónimos – em Angola, por exemplo, quem quiser estudar exemplares  ali coligidos até 1974, e hoje preservados nos museus, terá de estudar também uma parte importante da Geografia (supondo que exista essa parte…), que é a da correspondência entre os nomes antigos dos locais de captura e os nomes atuais. O nome do Liceu Honório Barreto também mudou, hoje é o Liceu Nacional Kwame N’Krumah.

 

Bando de jagudis. Foto de João Firmino, tirada em 1970 durante o SMO na “outra banda”. Bissorã

 

O Jagudi

Quem ousaria pensar que ao familiar
Abutre, rondando sempre as casas
Na expetativa de uns restos de comida,
As asas largas, o voo poderoso
Aquele hábito de planar nos pontos mais altos
Do céu, o pescoço depenado
O jeito trôpego de andar
Quem ousaria pensar
Que à majestosa e antropófila rapinácea
Darias um dia o nome lineano de
Trigonoceps occipitalis?

O Jagudi — não era esse o nome do jornal
Do liceu, aquele em que se calhar estão
Publicadas as tuas primeiras letras?

Maria Estela Guedes, em Chão de papel


Notícia do envenenamento, em:

https://www.msn.com/pt-pt/noticias/mundo/investigadores-confirmam-envenenamento-com-inseticida-de-mais-de-2-000-abutres-na-guin%C3%A9-bissau/ar-BB1a7Pdi?ocid=msedgdhp

Foto da cabeça do abutre:

Necrosyrtes monachus -Palmitos Park, Gran Canaria, Canary islands, Spain -head-8a.jpg . In:

https://commons.wikimedia.org/wiki/