O individualista, de Nuno Matos Duarte

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov, membro da Associação Portuguesa dos Críticos Literários
Texto de apresentação do livro. Lisboa, Biblioteca Camões, 6.7.2018.


Obra híbrida, resultado de fusão de modalidades várias de literatura, O individualista apresenta-se ao público, e cito da capa o subtítulo, como solilóquio de um esteta; da contracapa, cito de novo, o livro autodefine-se como “parágrafo único que relata o contínuo temporal de uma noite na vida do narrador”.

O autor é arquiteto, o que acabo de citar corresponde ao plano da obra: concentração do discurso numa só personagem, de acordo com a proposta individualista do título, e concentração do tempo em algumas horas da noite e da madrugada. É este o aspeto exterior da casa, mas, a partir do momento em que entramos, o monólogo cede o passo à polifonia, o espaço dilata-se por dois continentes e o tempo abrange várias gerações. Naturalmente, o elemento aglutinador que permite a sequência é a memória.

Se a imagem da casa é minimalista por fora, depreende-se já que o interior é muito complexo, pois, a pretexto de uma peregrinação noturna por campos, ruas e bares de uma cidade alentejana, provavelmente Ponte de Sor, a narrativa dá abrigo a inúmeros temas e histórias de vida, em geral disfóricos. Daí que o termo “peregrinação” precise de ser ajustado para algo mais do que viagem e algo menos que calvário, o bastante para sairmos de um aparente registo próprio do realismo.

Considero principais três modalidades literárias imbricadas neste romance: o ensaísmo, vindo do espírito crítico de Rodrigo, pintor, protagonista e narrador, e mais fortemente ensaísmo sobre arte. Porém, internamente, o que faz rebrilhar de vida a narrativa não é o estatismo da opinião nem o fluxo do relato, sim algo que mescla espaço e oralidade – a dimensão teatral das sequências de bar e restaurante em que representam as personagens. Num desses bares, existe inclusivamente uma cortina que separa o salão da cozinha, permitindo, com a saída e entrada de atores, as mudanças de cena.

A reflexão sobre a arte também se relaciona com o individualismo. Hoje, talvez por reação à tendência comunitária dos tempos hippies e das práticas de arte coletivas, cuja teorização propunha que a arte é feita por todos, e que o autor é menos importante do que a sua obra, vivemos um período narcisista, só possível nas redes sociais, e só possível dadas as tecnologias envolvidas. A selfie é o seu melhor emblema. Não é porém este o individualismo defendido por Rodrigo, um pintor sem grande auto-estima nem confiança nas suas possibilidades estéticas, que prefere isolar-se e que repudia a arte como expressão de vida mundana. O seu individualismo é forma de questa, de procura da origem, fundamento e fim da criação. Rodrigo acredita que a arte só é possível como expressão de interioridade e experiência vivida. Acredita que a criação artística envolve isolamento, daí que, em situação teatral, de vida mundana, em que rezam as normas se conviva num coletivo de pessoas, ele se sinta inadaptado, um marginal aos modos de vida sociais.

O autor, Nuno Matos Duarte, refere, a dada altura, a Alternativa Zero, cujo curador e mestre foi Ernesto de Sousa. A Alternativa Zero é a primeira grande coletiva de arte de vanguarda em Portugal. Aconteceu em 1977 e contou com umas centenas de participantes, portugueses e estrangeiros, mas sobretudo contou com umas centenas de participações de regressados do exílio: artistas exilados de facto, por razões políticas, e artistas exilados no seu próprio país, sem condições de liberdade para se darem à luz. É nesta perspetiva de exílio dentro das fronteiras da própria nação que o autor lembra Ernesto de Sousa. Porém a inspiração vai mais longe: além de todo o debate estético, importa sobretudo que a coletiva organizada pelo Ernesto de Sousa se chamou assim, na senda do painel Começar de Almada Negreiros. Na ótica de Ernesto de Sousa, as vanguardas tinham chegado a um impasse tal que, para sair do mesmismo, era preciso voltar ao zero. Zero que no ensaísta e realizador do Dom Roberto equivalia à oralidade. O criador não tem mais nada, nem pincéis, nem canetas, nem câmara de filmar: voltar ao zero equivalia à ferramenta primeira e única, a oralidade, daí que o tema reapareça em títulos de Ernesto de Sousa como «A oralidade como futuro da arte”. Ora, voltando ao ab initio da arte, a arte possível com a oralidade é a de contar histórias e dramatizá-las num palco.

A matéria não ensaística deste romance de Nuno Matos Duarte, a sua substância narrativa, é transmitida muito mais pela oralidade do que pela escrita. Refiro-me às conversas de bar e outros lugares da noite pelos quais transita o narrador, à polifonia de vozes que interrogam, debatem, insultam, acarinham, em discurso direto. Só no plano estrutural a obra é um solilóquio; na medula literária, o monólogo interior absorve e reproduz texto oral, aquilo que dizem os amigos de Rodrigo nos bares e cafés por onde passa, nessa noite que se convenciona representar o tempo da narrativa. São diálogos agitados, dominados pela paixão e pelos afetos, como é bem característico da oralidade. Porém, Rodrigo, pouco falador, muito crítico em relação aos colegas artistas, é o individualista, aquele que se sente à margem, o que não tem a “prática do lugar”, como diria o semiólogo José Augusto Mourão. Por isso se sente desconfortável em tais lugares e em tais companhias, apesar de serem colegas e amigos de juventude que não via há muitos anos.

Rodrigo, de pintor, só tem o caderno em que vai desenhando ao sabor do que lhe chama a atenção. Está na fase de eclosão, as tintas, telas e pincéis abandonados num armazém da casa familiar a que regressa como filho prófugo, mais do que pródigo. O seu individualismo equivale muito a um estado embrionário, de solidão, virado para dentro dos próprios pensamentos e emoções.

Este regresso a casa não é casual. A sua inadaptação social, especialmente a uma sociedade que lhe desagrada pelo mercantilismo estético, já o tinha levado ao deserto do sul de Marrocos, onde passara uma temporada na mais completa solidão, a refletir sobre o futuro da sua vocação artística.  A falta de prática do lugar mundano é tão relevante no plano da narrativa que, findas as provas do périplo noturno, e regressado ao ponto zero, ao momento de (re)começar a pintar, Rodrigo se dá conta de não poder entrar em casa por falta de chave.

É madrugada, momento em que a Luz penetra. Rodrigo não perdeu a chave, deixou-a dentro de casa. A última prova da viagem iniciática é a recuperação dela, que o mesmo é dizer que a chave de todos os mistérios, capaz de resolver a vida interior de Rodrigo, é a autognose. E também por esta solução simbólica se mostra que a imagem realista do romance é mais aparente do que própria do género. Nuno Matos Duarte é um artista da geração da Alternativa Zero, a das vanguardas. E as vanguardas criam real, não o reproduzem.