O homem gafanhoto

EMANUEL DIMAS DE MELO PIMENTA


The Grasshopper Man – Emanuel Pimenta 2017  (abre em pdf)

O Homem Gafanhoto
Emanuel Dimas de Melo Pimenta
uma brevíssima síntese do livro
2017 . Locarno . Suíça

O Homem Gafanhoto – e a Metamorfose da Sociedade Eletronica é um livro publicado em 2017, em duas edições – em português e em inglês – distribuídas internacionalmente pela Amazon. O livro é o resultado de vinte e um anos de pesquisas que também resultaram em dois livros precedentes: Teleantropos – A Desmaterialização da Cultura Material (publicado em 1999), e Sociedade Low Power (escrito e publicado entre 2003 e 2010).

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Todos nós perdemos a conta de quantas vezes em nossas vidas nos deparamos com histórias de pais que condenam a vida dos filhos, filhos que destroem a vida dos pais, irmãos que roubam irmãos, políticos que arrasam países inteiros, pessoas que destroem famílias, gestores que desintegram empresas com décadas ou mesmo séculos de existência.

Eles são tantos que somos incapazes de os quantificar.

É o Homem Gafanhoto.

No ano 2000, Eleanor Maguire, neurocientista Irlandesa, professora de neurociências cognitivas na University College London, realizou um estudo que se tornou rapidamente popular através de jornais em todo o mundo. Ela descobriu que a área neuronal conhecida como hipocampo dos cérebros dos motoristas de táxi em Londres era maior do que a mesma região em pessoas com outras actividades profissionais. O hipocampo é um sector neuronal fortemente orientado para a navegação espacial. O uso intensivo dessa área, através da memorização de trajectórias e da navegação, fez com que os cérebros dos motoristas de táxi se tornassem diferentes dos cérebros das outras pessoas.

Ou seja: os nossos cérebros mudam plasticamente, em termos fisiológicos.

Susan Greenfield, neurocientista investigadora da Universidade de Oxford, autora do livro Mind Change – How Digital Technologies are Leaving their Mark on our Brain, de 2015, entre outros, sublinha: “…os neurónios são entidades altamente dinâmicas capazes de uma extraordinária plasticidade, não são um componente fixo que pode ser encaixado e colocado para funcionar com uma regularidade persistente e obstinada, independente das envolventes micro-, meso-, e eventual macro-escalas nas quais estão localizados”.

Estudos realizados por uma equipa formada pelos biólogos Sepideh Bazazi, Jerome Buhl, Joseph J. Hale, Michael L. Anstey, Gregory A. Sword, Stephen J. Simpson e Iain D. Couzin publicadas em 2008 mostram como processos de migração em massa de gafanhotos são “fortemente influenciados por interacções canibalescas”.

Em 2005, o psiquiatra Britânico Peter Whybrow publicou o livro American Mania, onde argumenta que muito do nosso comportamento que classificamos como desagregador é determinado por uma componente genética partilhada com insectos como os gafanhotos.

Por que os gafanhotos avançam e devoram os seus pares, se isso poderia, em última análise, afetar negativamente a existência da sua própria espécie?

Por que os seres humanos – um animal social – prejudicam gravemente os seus pares, por vezes os mais próximos deles, como pais ou filhos, maridos ou mulheres, se isso, em última instância, afetaria negativamente a sua própria existência, a sua descendência?

Há uma explicação genética na forma de um mecanismo de sobrevivência. Os seres vivos possuem uma articulação genética que faz com que um insecto ou um animal avance “cegamente” quando encontra uma oportunidade de alimento fácil.

Isto é: avançar sem fazer julgamentos, sem reflexão de qualquer natureza – pelo menos entre os seres humanos.

Um dos elementos essenciais nesse processo é a serotonina. O outro elemento é a dopamina.

A serotonina e a dopamina são neurotransmissores – moléculas envolvidas no processo de “comunicação” entre neurónios. Esses dois neurotransmissores são, muitas vezes, considerados responsáveis pelas nossas sensações de prazer.

Quando sentimos um grande prazer ao descobrir um novo amor, uma grande oportunidade na vida, essa sensação é dopamina. Quando estamos em paz, diante de uma maravilhosa paisagem, felizes, isso é serotonina.

A cocaína induz o aumento dos níveis de dopamina, levando a pessoa a uma condição de prazer, de maior acuidade sensorial e, até um determinado limite, a uma maior capacidade de raciocínio.

Todavia, muitas vezes, a dopamina é considerada mais como uma espécie de neuro-modulador. Isso porque até uma determinada quantidade a sua natureza é excitatória, mas para além de um certo limite esse neurotransmissor passa a induzir respostas pós-sinápticas opostas, deprimindo-as.

Quando tal acontece, a região cortical conhecida como pré-frontal perde a competência daquilo a que chamamos de “razão”. As capacidades de planeamento, de introspecção e de reflexão ficam então profundamente prejudicadas, e a pessoa passa a responder aos impulsos que chamamos vulgarmente de “emocionais”.

Se aumentarmos a quantidade de dopamina, “perdemos a cabeça”, e podemos fazer algo que em outras condições não faríamos.

O sector pré-frontal nos nossos cérebros é responsável por algumas características muito significativas do nosso comportamento e daquilo que acreditamos como verdade.

É o sector pré-frontal que nos faz distinguir entre uma percepção de tempo do tipo “antes e depois”, e uma percepção de tempo “passado-presente-futuro”.

A emergência de um tempo caracterizado pela estruturação em “passado-presente-futuro” realizada pelo intensificação funcional do sector pré-frontal torna possível aquilo que chamamos de “planeamento”.

Apenas com o exercício sensorial, especializado e intenso, do sector pré-frontal estabelecemos as competências do tempo enquanto “passado-presente-futuro”, do planeamento, do reconhecimento do Outro, da noção do indivíduo.

O sector cerebral pré-frontal é responsável pelo refinamento e expansão da nossa ideia de limite, assim como pela nossa concepção de futuro, pela nossa capacidade de planear, para julgamentos éticos, morais, e até mesmo para a definição em alta resolução da personalidade individual.

Uma das características essenciais do sector pré-frontal é a chamada “função executiva”: a capacidade de organizar uma sequência temporal de acções com um determinado objectivo.

Essa função é intensificada com a dopamina, até certo ponto a partir do qual a razão, a organização teleológica e temporal das ideias, passa a ser prejudicada – tal como acontece com o uso de anfetaminas e cocaína: até um determinado momento aquela organização é beneficiada, mas a partir de um certo limiar passa a haver uma desfuncionalização executiva, dando lugar a impulsos de natureza emocional e instintiva: o pré-frontal fica “bloqueado” e a pessoa vive momentos irracionais.

Tal como um gafanhoto, o ser humano avança com o súbito aumento da dopamina e da serotonina.

A partir de um dado momento, a função executiva do pré-frontal fica dramaticamente diminuída.

Numa batalha, num conflito entre bandos de animais, numa caça – seja na condição de caçador ou de presa – os sentidos têm de estar alerta, não há lugar para reflexões, tudo é imediato, violento e radical. É então que esses neurotransmissores têm um papel essencial.

A leitura de livros, com o chamado mergulho literário, implica uma forte estruturação do sector pré-frontal, conferindo ao ser humano uma maior capacidade de reflexão e de “medida”.

Ao que tudo indica, os sistemas electrónicos têm alterado substancialmente o papel de atuação do sector pré-frontal, com as pessoas em geral lendo menos livros.

Não se trata de alfabetização pura e simples, mas do tempo utilizado na leitura de livros, no mergulho literário.

Ao longo dos séculos, a literatura representou um intenso exercício neuronal funcionalizando intensamente o sector pré-frontal.

Assim, esse intenso exercício visual através do alfabeto fonético e do papel – ou do papiro – produziu a emergência de conceitos como o do indivíduo, do Outro, a democracia, o Estado de Direito, a liberdade negativa – segundo o qual o direito de uma pessoa termina onde começa o da outra – o silogismo, o tempo enquanto passado-presente-futuro, a abstracção da apreciação estética como a conhecemos no Ocidente, a capacidade de planeamento a longo termo, a competência de previsão e assim por diante.

Tal como a intensificação do uso do sector pré-frontal através da literatura produziu a interiorização manifesta pela orientação da atenção ao mundo exterior; a exteriorização e a descorporificação geradas pelo universo electrónico se manifestam numa espécie de volta da atenção para si mesmo, mas agora enquanto superfície.

No universo da literatura trata-se do indivíduo e o Outro, enquanto que para o narciso electrónico o que há é a rápida desintegração do corpo, tomando a antiga ideia de indivíduo enquanto conteúdo do novo meio, agora efémero, desencarnado.

A transformação tecnológica, em termos civilizacionais, produzida pelo mundo electrónico parece, assim, alterar de forma dramática o quadro de intenso uso do sistema pré-frontal anteriormente projectado pela literatura.

A literatura é condição essencial para que possa existir democracia. Não se trata de uma questão de conteúdos, mas de sistema lógico.

Assim, conforme o mundo vai se tornando mais electrónico – e mais próximo do universo acústico como apontava Marshall McLuhan – menos democrático se torna, ainda que por vezes possamos nos deparar com uma imensa quantidade de notícias dizendo o contrário.

A democracia é uma estrutura lógica formada por partículas discretas operando um processo teleológico – pessoas que votam para eleger outras pessoas que terão algum poder sobre a gestão do bem comum durante algum tempo. Essa é a estrutura fundamental da literatura, como discuti no meu livro Mondo: Democracia e Literatura, de 2006.

No mundo oral, há o permanente intercâmbio de funções e valores entre as pessoas, não permitindo a emergência de indivíduos enquanto partículas discretas. A realidade acústica do campo, da agricultura, é um mundo de papéis e representações onde até mesmo os líderes são parte indissociável da estrutura social quotidiana.

Em 2015, a revista Science, da American Society for the Advancement of Science, publicava uma edição especial dedicada ao fim da privacidade: “Quando você nasceu, começou o seu rastro de dados. Foi-lhe dado um nome, a sua altura e peso foram registados e, provavelmente, algumas fotos de você foram feitas. Alguns anos mais tarde, você foi matriculado numa creche, você recebeu o seu primeiro convite para uma festa de aniversário, e você foi registado num censo. Hoje, você tem o número de Segurança Social ou de identificação nacional, contas bancárias e cartões de crédito, e um smartphone que sempre sabe onde você está. Talvez você coloque fotos de família no Facebook; talvez você tweet sobre política; e revele a mudança dos seus interesses, preocupações e desejos a milhares de pesquisas no Google. Às vezes você compartilha dados intencionalmente, com amigos, estranhos, empresas e governos. Mas vastas quantidades de informações sobre você são colectadas apenas com o seu consentimento superficial – ou mesmo sem qualquer consentimento. Em pouco tempo, todo o seu genoma poderá ser sequenciado e compartilhado entre investigadores de todo o mundo, juntamente com os seus registos médicos, câmeras de voo podem pairar sobre o seu bairro, e sofisticados programas de computador podem reconhecer a sua face quando você entra numa loja ou num aeroporto”.

Qual é a fronteira entre o público e o privado no universo electrónico?

O mundo acústico é uma realidade de papéis e representações; o da literatura e da indústria, um universo da produção e da função; o fluído e volátil mundo electrónico é designado pelo efémero e pela superficialidade.

David Lyon, sociólogo Escocês especialista em sistemas de vigilância e controlo, dizia: “A fronteira está em toda a parte… Você não tem de estar a tentar atravessar um posto de fronteira física para se sentir um estrangeiro, um não-cidadão, alguém que não pertence ao lugar. Mas há um outro sentido em que a fronteira está em toda parte. Embora os sistemas de cartões de identidade nacional tenham muitas finalidades, uma delas é a de permitir que as autoridades distingam, de forma clara e automática, entre os que são e os que não são membros de pleno direito do Estado-Nação”.

Na sábia observação de Lyon, temos duas dimensões: o desaparecimento da figura do cidadão, tal como tinha nascido no universo Grego, e o domínio de um Estado tirânico, estranho à maioria das pessoas.

O início do século XXI foi palco de um processo de forte empobrecimento mundial, especialmente ao nível da escala individual da classe média. Algo a que, em economia, é chamado de “eliminação de liquidez”.

Esse empobrecimento surge acompanhado, como sempre acontece, de um processo de intensificação das assimetrias sociais: cada dia há menos pessoas concentrando mais riqueza.

Em 2017, a Oxfam – confederação internacional contra a pobreza, que reune dezoito organizações não governamentais – declarava durante o World Economic Forum, em Davos, Suíça: “World’s eight richest as wealthy as half Humanity”. Apenas oito pessoas eram tão ricas quanto metade do mundo, o que equivalia, então, a quase quatro mil milhões de pessoas!

Curiosamente, narcotizadas, as pessoas em geral – incluindo especialistas – pareciam incapazes de questionar acerca da razão desse fenómeno.

O controlo e a vigilância são características típicas das sociedades agrárias, orais, assim como da família, do exército e das instituições religiosas. Essas figuras – família, exército e instituições religiosas – emergem com o nascimento da cidade.

Quando o uso do sector pré-frontal é intensificado através do alfabeto fonético e dos meios leves de armazenamento informacional, há uma espécie de “interiorização” e o antigo controlo e vigilância passam a ser auto-controlo na vivência de uma liberdade negativa.

O fenómeno inverso com a passagem para a sociedade electrónica produz uma ilusão de libertação.

Articulado na dimensão electrónica do que poderíamos chamar de “espaço-tempo real”, esse ambiente híper-urbano opera um novo tipo fechamento da cidade, numa escala de nano-decisão: as muralhas se tornam virtuais.

O finito projectado pelo infinito.

Em 1993, Cornelius Castoriadis – filósofo, economista e psicanalista, que viveu entre 1922 e 1997 – dizia: “quando se proclama abertamente que o único valor é o dinheiro, o lucro, que o ideal sublime da vida social é o ‘enriqueça’, podemos conceber que uma sociedade possa continuar a funcionar e a se reproduzir sobre essa única base? Se as coisas são assim, então os funcionários deveriam pedir e aceitar gratificações para fazer o seu trabalho, os juízes deveriam leiloar as decisões dos tribunais, os professores deveriam dar boas notas aos alunos de cujos pais receberam pagamentos, e assim por diante. A corrupção generalizada que podemos ver no sistema político-económico contemporâneo não é periférica ou anedótica, ela se tornou um traço estrutural, sistémico, da sociedade em que vivemos”.

O universo electrónico tornou mais fácil para os governos as tarefas de controlar, vigiar e perseguir. Aquilo que, pelo menos em princípio, deveria ser o sentido da partilha, da participação, revelou-se como perseguição, controlo e punição.

Em todos esses movimentos, há menos sentido de cidadania, menor reconhecimento do indivíduo, aumento do controlo por parte do Estado, eliminação da classe média, achatamento da população geral, gigantesca concentração de renda e assim por diante.

Em todos esses elementos encontramos o desígnio lógico da rede das redes de telecomunicação em tempo-real.

Mike Lofgreen define o Estado Profundo como sendo “a grande história do nosso tempo. É a linha vermelha que atravessa a guerra contra o terrorismo e a militarização da política externa, a financeirização e desindustrialização da economia Americana, o surgimento de uma estrutura social plutocrática que nos deu a sociedade mais desigual em quase um século, e a disfunção política que tem paralisado do dia-a-dia da governação”.

Se Bucky Fuller, Lofgreen e Rickards estiverem certos, o mundo está a entrar numa nova fase do capitalismo – controlada e desenhada por um gigantesco vampiro económico, semelhante ao conceito do “ácido universal”, tão popular entre os alquimistas. Seria uma fase do capitalismo nunca prevista por Karl Marx.

Em todo o mundo, as classes desapareceram. Tudo se tornou uso, superando o consumo. O que temos são milhares de milhões de miseráveis, centenas de milhões de pessoas em permanente migração, governantes que muitas vezes são criminosos, guerras como máquinas de fazer dinheiro, pessoas cada vez mais controladas, vigilância, um planeta inteiramente ligado, culturas para as quais o conceito de trabalho tem quase nenhum significado, um gigantesco consumo de drogas, megacidades com dezenas de milhões de habitantes. Um sistema planetário que parece funcionar como um fluído em viscosidade.

O que está a acontecer é uma transição entre ambientes tecnológicos, uma reversão sensorial.

Praticamente todos os Estados no mundo se tornaram fortemente endividados, com compromissos muitas vezes devidos a sistemas financeiros cujos empréstimos são frequentemente denunciados, ainda que de forma irregular, pela imprensa mundial como “odiosos”, sem valor legal, realizados sob coação ou suborno.

Políticos, banqueiros e altos funcionários públicos se tornam subitamente milionários, sem que haja praticamente qualquer investigação criminal.

Não importa com o que estejamos lidando – com o glúten, com o açúcar, com o sal, o sol, com a poluição, ou com as gorduras – parece sempre estarmos a nos defrontar com um gigantesco muro das grandes corporações, dos grandes interesses económicos, do Estado Profundo, como uma estrutura tentacular, presente um pouco por todo o lado.

A situação chegou a tal ponto que milhares de modelos matemáticos controlam cada pessoa, trocando continuamente informação. Se você pedir um empréstimo num banco, entrar num hospital, comprar um automóvel, uma propriedade, se desejar entrar numa universidade, colocar os filhos na escola – especialmente nos Estados Unidos – a outra parte saberá imediatamente quem você é, a sua profissão, quanto tem no banco, se tem dívidas, se tem cadastro criminal, se teve ou tem problemas na família, se tem alguma doença, se tem problemas psicológicos, se lê muito ou pouco, qual o tipo de comida que prefere, qual a sua história profissional, se tem alergias, se tem ideias revolucionárias, se muitos ou poucos amigos, a sua preferência sexual, a sua cor de pele, a sua religião, o seu horário pessoal, o seu perfume preferido, se você sabe ou não dirigir, que tipo de parceiro ou parceira o atrai, se você é notívago ou não e assim por diante.

Não apenas, começamos rapidamente a robotizar a Natureza. Para além de outros experimentos e projectos, Baranidharan Raman, professor de engenharia biomédica na Universidade de Washington, a pedido da marinha de guerra Americana, desenvolveu em 2016 sensores e transmissores de informação para serem acoplados a insectos, neste caso gafanhotos. O objectivo é usar as capacidades olfativas dos insectos para a detecção de explosivos.

Se isso é impressionante, não menos impressionante é a permanente modificação em termos plásticos dos nossos sistemas neuronais produzida pelos inputs sensoriais formando um espelho infinito, uma realidade fractal.

Os robôs são a materialização de uma realidade da não-resposta, da não responsabilidade, da não-moral, do uso contínuo, do voyerismo total, invisível, da eliminação da figura e fundo, ver sem ser visto, estar sem ser percebido, da realidade do humano desencarnado, uma presença integral enquanto pós-máquina – e trata-se, ainda, do Estado sem nação, plenamente policial, planetariamente urbano e transnacional.

Esse é um desígnio do universo electrónico.

Sob a crescente iliteracia, geralmente funcional, entre os políticos há igualmente a emergência de um novo sistema lógico através dos novos meios electrónicos.

Enquanto que o mundo da literatura estabelece um hipnótico mergulho de imersão através da contínua elaboração de imagens e ideias, notável produto do uso intenso do setor pré-frontal, os meios electrónicos oferecem essa elaboração pronta, sem necessidade da imaginação.

Enquanto que o mundo agrário é uma realidade de papéis e representações, o universo literário está fortemente ligado à função, à ideia de processo. Essa diferença é produto do livro, cujo impacte foi fortemente sentido depois de Gutenberg. O mundo electrónico resgata o antigo universo de papéis e representações do universo acústico, mas agora estabelecido numa lógica por coordenação, em paralelo, que não mais acontece segundo uma ordem teleológica, hierárquica.

Mas, o que é a verdade num mundo electrónico? Em outras palavras: qual o universo de significação que caracteriza aquilo que acreditamos quando somos formados num mundo electrónico, onde tudo pode ser alterado todo o tempo?

Para uma sociedade acústica, toda a afirmação directa, clara, estruturada em termos fortemente teleológicos é tomada como acto de violência; enquanto que para uma sociedade literária, deambulações e divagações – típicos das culturas orais – são consideradas índices de falsidade, de ausência de significado, de mentira.

Se temos uma tal mudança sobre a ideia de verdade, antes uma crença estável, o que dizer quando temos em mente a declaração do grande jornalista independente I. F. Stone: “Todos os governos mentem”?

Ainda assim, o mundo electrónico não é um retorno ao passado, apesar de existirem algumas curiosas semelhanças que podem iluminar o sentido do humano, tantas vezes eludido pela história e pela realidade contemporânea.

A metamorfose electrónica é uma metamorfose do pensamento. E com ela, também do tempo e do espaço.

Em 2012, o filósofo francês Michel Serres dava uma entrevista onde afirmava: “não se trata de uma crise, é uma mudança do mundo”.

“Éramos 50% de agricultores no final da Segunda Guerra Mundial e hoje eles não são mais que 1%. Durante a minha vida humana, e isso é único na história, a população mundial dobrou duas vezes! Quando nasci, éramos dois mil milhões de pessoas, e hoje somos sete mil milhões. No mesmo período, a esperança de vida triplicou. É tudo isso o que não vemos. Sabemos que um terremoto se passa na superfície. Mas, a teoria dos movimentos das placas tectónicas é explicada por movimentos profundos. Isso que eu procuro explicar é sobre movimentos profundos. O fim da agricultura, a vitória sobre a dor na medicina, o alongamento da esperança de vida. Tudo isso tem enormes consequências: quando o meu bisavô casou, estatisticamente, ele jurou fidelidade à sua companheira por cinco a dez anos, hoje é por sessenta anos. Dizemos sempre ‘casamento’, mas um compromisso por dez anos e um compromisso por sessenta anos não são as mesmas coisas! Há muitas coisas que mudaram secretamente, que não vemos mudar, mas que revolucionaram completamente o mundo. Passamos, em menos de cinquenta anos, a um novo mundo” – dizia Michel Serres.


Emanuel Dimas de Melo Pimenta (nascido em 1957) é um músico brasileiro, arquiteto e artista multimedia. As suas obras têm sido incluídas em coleções de arte e tem sido reconhecido por instituições como o Whitney Museum of American Art de Nova Iorque, o Ars Aevi Contemporary Art Museum, a Bienal de Veneza, o Kunsthaus Zürich, a Bibliotèque Nationale of Paris e o MART – Modern Art Museum of Rovereto and Trento entre outros.

Emanuel Pimenta desenvolve música, arquitetura e projetos urbanos usando a realidade virtual e as tecnologias do ciberespaço. Os concertos de música integrar a arte visual são realizados em vários países nos últimos vinte anos, como o seu concerto na Bienal de Arte de São Paulo, em 1985, com John Cage, Francesco Clemente, Sandro Chia, e Robert Rauschenberg.

Serviu como curador da Bienal de São Paulo, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Trienal de Milão, e do Centro Cultural de Belém.[1]