O Gato-Cego

JOÃO PEREIRA DE MATOS


(…)

E agora foi-se embora.

Só deixando, como que a pairar na fina poalha de luz deste entardecer, o seu sorriso.

Todavia, o gato cego ao contrário do outro nunca viu o mundo. Pior. Ao contrário do outro nunca viu nenhum dos muitos que talvez os gatos vejam com os seus olhos de opala fria. Exactos de morte, compassivos na modorra da cálida jornada, furtivos e que se espraiam até ao horizonte vertical da nitidez absoluta, deixando passar, tão-só, um risco de luz na pupila plástica.

Por outro lado, quem sabe se este necessita de ver para aceder a tais planos astrais, infra ou supra terrenos, estando todo neles, quer dizer, não já espectador um pouco fleumático desses paraísos sulfúricos ou de vertigens diáfanas, habitando uns e outros como em casa sua, transitando sem sequer saber que o faz? Contínuo indiscernível, todavia, diferente porque os outros sentidos, como em qualquer cego, ainda que humano, sempre lhe vão dizendo o que se passa e ele sabe-o com essa nitidez toda interna. Apenas é a fronteira o que não vê.

«Já aqui estive, o que é estranho; é que este não era o caminho, julgava que ia para outro lugar, o local próprio para uma sesta e aqui estou, no frio e caindo como se não houvesse peso ou no áspero chão de fornalha; não é que me importe que aprecio tanto este calor ou o fresco e, se cair, caio de pé.

Estes enganos acontecerão a todos, estou em crer, embora por vezes suspeite que poderia haver um modo mais cómodo de saber as coisas, de lhes detectar os contornos à distância; e é verdade que, se assim pudesse, seria maravilhoso; aquando do salto, saber, de antemão, onde iria aterrar».

Assim o pensa e assim o disse, embora não com palavras, ele que poderíamos qualificar como o hipergato porque ágil, como vimos, num sentido mais essencial ainda que o desconheça, tal como lhe são alheios os cambiantes matizes do Sol e do seu precário contrário que é a sombra, no rendilhado mutante que, debaixo de uma pérgola, os demais da sua espécie vão contemplando, enquanto se adensa a penumbra até ao contraste derradeiro da noite, quando se espreguiçam, antegozando a caçada. O seu é cosmo diferente, de pleno, atento à ínfima variação térmica, ao rumor breve ou à música sincopada do coração da presa.

Não possui, então, o relance que tudo abarca. Que isso interessa? Consegue sentir, acariciando-lhe o pêlo, cada onda de luz na sua densidade de matéria.

É, por conseguinte, mais imóvel do que a esfinge este quase arquétipo quando goza o dia na adoração da difusa divindade dos gatos que não é Hélios mas o seu resplandecente brilho.

É por isso que, quando não está, ninguém sabe nem poderá saber para onde foi.


João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par’Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d’Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.