O Estado Social

 

 

 

 

 

 

 


CARLOS ACABADO


CARLOS ANTÓNIO MACHADO ACABADO. Professor aposentado do ensino público oficial (8º escalão da carreira docente), ex-eleito da CDU para a Junta de Freguesia de Nossa Senhora da Vila (Montemor-o-Novo)


O ESTADO SOCIAL—GENEROSIDADE OU COMBUSTÍVEL?
Breves reflexões-testemunho de um português quase anónimo 

Para M.R. mau grado saber que não está de acordo comigo em diversos aspectos de matéria política


O capitalismo gera o seu próprio coveiro
Karl Marx

 

Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada.
Mas em vossa sociedade a propriedade privada já está abolida
para nove décimos de seus membros. Karl Marx

 

Não tendo eu (“perish the thought!) a pretensão de corrigir o genial criador d’  ”O Capital”, permitir-me-ia, ainda assim, perante a primeira das citações que escolhi para epígrafe das presentes considerações propor com base nela uma subtil e muito pessoal variante: “O capitalismo É o seu próprio coveiro!”

Volto ao tema (1) porque é uma das minhas preocupações—pessoais e políticas—diria “de cabeceira”: o SNS e muito em concreto, dentro dele, a ADSE de que, como ex-docente do ensino oficial público, sou há três décadas contribuinte beneficiário.

Não vou regressar ao tema da discriminação entre subsistemas por parte dos privados—tema esse que já abordei em texto anterior (2) até porque isso nos levaria a outra importante faceta da problemática que tenho vindo a abordar e que é a da “justificação social e política da propriedade”. Trata-se de um tema particularmente relevante que, por esse motivo, me proponho abordar num espaço próprio—como merece.

Foi, em qualquer caso, com esse argumento da “justificação social, política, científica” da propriedade que a burguesia se apropriou da História roubando-a com a queda do ancien régime resultante da Revolução Francesa à já completamente esgotada aristocracia.

Sucede ademais que é com um posicionamento semelhante que ela, burguesia, tenta manter-se hoje como lhe é possível segura no poder agora em modo de tecnocracia ou, como julgo que lhe chama José Pacheco Pereira: tecnofeudalismo (confesso preferir o termo tecnodarwinismo mas aceito o outro sem dificuldade ou qualquer tipo de reserva) recorrendo para tanto à propriedade e usos económicos privados do saber que, na sua limitada e muito liberal (permita-se-me a ironia: muito… li-BERA-l) visão, funciona não tanto já como uma mera componente do processo de (re) produção contínua de capital senão como, ele mesmo, saber, um capital, individual e colectivo (empresarial privado, neste último caso) a investir no processo atrás mencionado, não distinguindo (e disso se ressentindo seriamente os sucessivos paradigmas de educatividade que vão sendo produzidos, uns atrás dos outros, como testemunham as atabalhoadas e inorgânicas políticas de educação entre nós, desde o infausto ministério Cardia culpado de ter levado o refluxo ou mesmo abertamente a contrarrevolução restauracionista que fervilhava já na sociedade portuguesa para dentro das escolas; não distinguindo, dizia, “conhecimentos” e Conhecimento tout court, como antes do Maio de 68 onde a escola-fábrica/fábrica-escola é, como se sabe, (expressa e aguda embora de algum modo também breve caótica e fugazmente…) posta em causa. (3)

Seja como for, o meu foco aqui é outro e prende-se directamente com a, a meu ver, insanável antinomia serviço público versus negócio—onde tudo nisto vai, de resto, em última instância encaixar.

Na sequência de outro post que divulguei, fui recentemente abordado por um li-BERA-l extremamente “escamado” comigo por ter dito que o lugar da iniciativa privada é FORA (em caso algum dentro!) do quadro legítimo da oferta de produtos e serviços numa sociedade minimamente democrática.

Argumentava o meu interlocutor de ocasião, recorrendo a um paradigma discursivo a que já estou, aliás, habituado: Pois, lá os seus camaradas é que defendem que o Estado se deva sobrepor à iniciativa dos privados, que o estado pode e, se calhar, deve ser patrão—algo que, a mim, pessoalmente não me entra na cabeça!

E sim, se uma clínica privada pretender descartar potenciais doentes porque provêm de um subsistema de saúde, como a Segurança Social que não lhes paga a tempo e horas, têm naturalmente toda a legitimidade para fazê-lo. Ou o senhor pretende que o estado também dê ordens no espaço privado das empresas?

A única coisa que me surpreendeu neste li-BERA-líssimo argumentário é que quem assim se posiciona não consiga vislumbrar as decorrências daquilo que diz.

E contrapus: “Meu caro senhor: eu sou, como saberá, professor, não advogado mas a questão aqui é muito simples: não se trata de pretender isto ou aquilo—o que nem eu nem o senhor nem ninguém podemos fazer é discriminar entre pessoas por razões puramente subjectivas e/ou, no fundo, arbitrárias. Não é o estado que pretende impor isto ou aquilo onde quer que seja: é a Constituição em vigor que o impõe: não discriminar! Imagine, por exemplo, o senhor que eu abro um café como este em que, neste preciso momento, saboreamos a nossa «bica» e que afixo um letreiro à porta dizendo expressamente: “Reservado o direito de admissão. Não se permite a entrada a pessoas de etnia cigana, negros e imigrantes”. O café é meu. Em sua opinião, eu tenho legitimidade para fazê-lo porque o café é meu. Propriedade minha e se me aparecer alguém a reclamar e a apresentar queixa de mim, nem lhe presto atenção. Dentro da minha casa et al seguindo a logica do seu argumentário tenho esse direito e essa legitimidade, ou não?

“Não é bem assim…”

“Como não é bem assim: imagine um casal em que o marido foi ou é funcionário do estado e a esposa operária fabril: se eu entender que, no «meu» café “operária não entra” porque (sei lá!) a clientela é ´selecta’ e engalinha com fatos-de-macaco ou batas de operário/a, posso fazê-lo ser problemas nem escrúpulos de qualquer espécie porque o café, a propriedade é minha, é um espaço privado, não sou (nem devo ser!) obrigado a prestar um serviço público de pastelaria ou cafetaria?

Uma única pergunta: nesse caso, como fica, neste contexto, cumprido o Artigo 26.º da Constituição que diz ipsis verbis:

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reservada intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação?”

Eu até ponho em causa essa questão do “Não trabalhamos com a ADSE (alguns há que, generosamente, acrescentam: “mas aos beneficiários da mesma fazemos uma gentileza e reduzimos o preçário dos nossos… serviços em 10 ou 20 por cento”

Uma gentileza??!! Que gentileza é essa de deitar para trás das costas o esforço financeiro que, professor da escola pública, fiz ao longo dos mais de 30 anos em que me retiveram na fonte percentagens significativas do vencimento com o argumento da necessidade de manter a funcionar um subsistema de saúde que agora me é pura e simplesmente negado, não me dirão?

Aqui há meses, tive de recorrer aos serviços de cardiologia de um desses hipermercados da moléstia. Fui acompanhado de um cunhado meu que, sabendo da minha propensão para me esquecer das coisas, se ofereceu para me acompanhar, tendo-me, no fim, dito: “Vais pagar um dinheirão por esta consulta. Perante a quantia que na caixa do referido hipermercado, exclamou atónito: “Só pagaste xis? Se fosse eu pagava aí umas dez ou doze vezes mais…”

Pois mas sabes quanto é que em trinta anos entrou no Estado-banco em depósitos obrigatórios do meu salário? Eu venho a pagar esta e outras consultas como esta, minhas e de muitos outros portugueses, ao longo de uma vida! Se calhar nem devia era ter pago fosse quanto fosse. Paguei um preço que poderíamos designar por simbólico porque se trata de um privado, de um negócio, que está no mercado para lucrar, não para prestar qualquer serviço público—e é-lhe importante para o negócio que se veja que “dali ninguém sai sem lá deixar dinheirinho que aquilo é uma empresa não a Caritas nem a Santa Casa”.

Porque a questão é mesmo essa: “lá os meus camaradas”, como senhor diz, não confundem quem, como eu, ao longo da vida, presta um serviço, no meu caso, docente, à comunidade e aqueles que se limitam a ver nas carências e vulnerabilidades várias dessa mesma comunidade, nas áreas da saúde, da educação e por aí adiante, uma oportunidade de negócio como eles dizemo meu empregador (quase) sempre foi o estado e não têm conta os profissionais das mais diversas áreas que conseguiram sê-lo exactamente porque o meu patrão foi o estado e lho possibilitou tendo-me a mim como seu… colaborador, como agora se diz   

Não há, de facto qualquer hipótese de compatibilidade entre serviço público à comunidade e intervenção investimentista, na saúde, na educação, onde quer que seja.

“Lá está o senhor a politizar!…”

“Não! Não estou a politizar: a questão é política logo à partida e prende-se com o modelo de estado que a comunidade preconiza para si mesma.

Durante anos fomos ouvindo falar de «Estado nação» e de «Estado Social». Quanto ao primeiro nem o trago aqui à colação para não nos dispersarmos. Já o segundo (poderia demonstrar-lho com a maior facilidade deste mundo) não passa de uma treta. Aquilo a que chamam «estado social» não passa de um bypass ou, se preferir, de um loop no seio do sistema económico-político a ver se ele não colapsa e se auto-devora de uma vez  não é generosidade: é combustível. Experimente o senhor a seguir o catecismo li-BERA-l (o da Iniciativa assim chamada ou do PSD para já não trazer aqui o “caso” do «liberalismo social» do PS…) e vai ver como o capitalismo fazendo contínuas baixas entre a comunidade, chega ao fim completamente esgotado, inviabilizado, seco, de mãos a abanar. Se eu for substituído por uma máquina na fábrica, poupo dinheiro ao capital no imediato só que esse dinheiro vai fazer muita falta ao próprio capital quando este, sem deixar de produzir capital, deixar de ver os subprodutos da produção deste, isto é, aquilo a que generosamente chamamos “riqueza” (automóveis, televisores, frigoríficos, maçãs ou peças de carne) “saírem para o consumo” devido à carência de procura. Como neste preciso momento se verifica estar a suceder com a especulação-gato escondido de rabo de fora a berrar que a culpa é da guerra na Ucrânia que tanto jeito está a dar aos comerciantes de armamento—mas, como vê, não só a esses

Procura deficitária essa que eu (eu, salvo seja!)  para gerar, para (re)produzir capital, esgotei, empobreci ou, se assim preferir dizer, fui suicidária, tão suicidária como levianamente descapitalizando, criando as condições para que todo o edifício fatalmente caminhasse decididamente para o colapso.

Não se trata, ao contrário do que argumentam os opositores “lá dos meus camaradas” de qualquer mais ou menos obsoleto” preconceito contra a iniciativa privada” mas de ideologia—algo de que o capitalismo vem fugindo há décadas como o diabo da cruz pela simples razão de não possuir uma a não ser o princípio marcadamente ideológico de ver a economia substituir de vez, a Política. Observe o meu amigo como Manuel Carvalho no editorial do diário “Público” de 1 de Abril se refere à (in) essência ideológica do PSD tratando-a de “volatilidade ideológica” uma designação justíssima num partido que hoje se reclama de oposição ao “socialismo” meia dúzia de anos depois de ter tentado ser aceita numa talInternacional (dita) socialista onde o partido de Mário Soares com os seus contactos e mover de influências não lhe deu a mínima hipótese… 

Concluo relevando que aquele princípio de “a terra a quem a trabalha” deveria, em vez de extinto, ser alargado a todo o aparelho produtivo, a todo o edifício das relações sociais e de produção que o mesmo é dizer que toda a propriedade deve ser social económica, ambientalmente justificada ou se torna naturalmente—e sublinho naturalmente!—ilegítima. 

Quando, com toda a cordialidade lhe digo, afirma que “no espaço do privado manda o privado, Constituição ou não; quando o senhor assim argumenta o que realmente me está a dar é um óptimo/péssimo argumento para nem sequer considerar a iniciativa privada como socialmente justificável em termos democráticos e como legítimo protagonista no contexto de um modelo de sociedade minimamente equitativo e sustentável.

Substituir a política pela economia, como advogam os da iniciativa chamada li-BERA-l, nem sequer para a economia é bom porque, como julgo ter demonstrado, desequilibra de tal forma todo o edifício da sociedade que o leva inevitavelmente à falência, ao desabamento total.

É claro que no «meu» café do exemplo que lhe dei há pouco é legítimo barrar a entrada a indivíduos desordeiros, manifestamente embriagados, sujos et al. Mas essa é que não configura qualquer questão política de tão óbvia que é! e nem será precisa um Constituição política para dirimi-la

O mais elementar bom senso, civismo e respeito pelos outros bastarão para o efeito

Carlos António Carvalho Acabado

NOTAS

  • Explica-se o uso do verbo “voltar” porque o presente texto se reporta a um outro naturalmente anterior onde a questão da ADSE da qual o signatário é, enquanto professor do sistema de ensino público, aposentado embora, beneficiário em resultado das três décadas de exercício docente

 

OBSERVAÇÃO FINAL

Sobre a questão do «estado social» duas palavras mais. O ponto é, de algum modo, abordado de forma indirecta por Marx quando aborda a influência do cristianismo político sobre as sociedades capitalistas caracterizadas pela redistribuição estruturalmente desigual da riqueza produzida. Para Marx, com efeito, o motivário crístico, vulgo cristianismo, traz para a economia e para a política o tema sacrificial e o do trabalho como recompensa de si mesmo um motivo que, entre nós, se encontra perfeitamente expresso na ultraconservadora poesia de António Correia de Oliveira (onde “Deus” ressurge como entidade significadora atento, vigilante, caracteristicamente exterior ao processo histórico e concretamente político) num quadro motivacional em que o operário é sobretudo, o rural pondo-se em relação a ele o imperativo moral de trabalhar isto como algo independente da questão política essencial de saber para quem e com que retorno em termos da riqueza produzida (deixando, assim, aberta a porta a todo o tipo de (o)pressão explorativa: se o trabalho resulta de uma ordem de Deus qualquer retribuição (na forma de um salário, uma remuneração   emerge como naturalmente extrínseca e até excrescencial, de algum modo pleonástica e supérflua  a todo o processo produtivo  v.g.

Um exemplo paradigmático desta visão “laborocrática” é-nos dada, como acima refiro, de forma eloquente, por um autor muito caro ao universo cultu(r)al da ditadura, António Correia de Oliveira, de seu nome e que com Saavedra Machado é o autor de diversas selectas que me fazem hoje pensar como foi possível de, depois de ter sido forçado a conviver com tanto conservadorismo junto, eu não me ter tornado eu próprio conservador e talvez mesmo fascistóide como tantos jovens da minha geração obrigados a beber de idêntica fonte de ideias, noções, juízos  e (pré) juizos. De uma antologia tipicamente patrocinada pela ditadura intitulada “O Homem e o Trabalho” (colecção II- «Formação Social» série L –nº 1) extraio a quadrinha “O Trabalho” que reza:

Pedi a Deus um conselho

Para encontrar a alegria.

Deus mostrou a terra e disse-me.

—Trabalha, semeia e cria—

(apud “Dizeres do Povo”. op. cit. página 107)

Está, como é possível ver, aqui tudo: o trabalho como ditame divino e/ou destino abstracto, i.e. não-histórico, meta-histórico, do Homem. De notar a ausência de qualquer referência ao contexto social, histórico e político de modo que o trabalho nos surge significativamente desligado (alienado, diria eu!) de um quadro preciso, concreto de relações de produção emergindo na ideologia do autor como, para parafrasear Kant um autêntico imperativo categórico, uma verdadeira “Ding an sich” comparável, de algum modo, por exemplo, à questão da ligação ou  da explicação do poder dos reis como emanado de Deus e legitimado não pela acção concreta, económica, social e, claro, politica dos soberanos mas pela existência de um vínculo meta-histórico (ante-histórico, exohistórico ) e meta-político entre o soberano, o poder e cada uma dessas realidades, completamente fora da História e da Política: Deus, numa palavra. A felicidade (a “Alegria” diz o autor) está, assim, contida no próprio acto de trabalhar, cumprindo a vontade do “Senhor” de forma completamente autónoma em relação ao modo COMO se trabalha ou PARA QUEM se trabalha—o que deixa obviamente as portas abertas para toda a espécie de abusos e injustiças no que à retribuição social do trabalho concerne: o trabalhador é “pago em alegria”; o salário, os efeitos, os usos económicos, sociais e políticos do seu labor surgem, neste quadro mental, completamente desligados do próprio acto de trabalhar. O proletário «cumpre Deus» e essa é a sua paga chamemos-lhe estrutural ou… congénita—o que permite, no limite desligar a questão de um salário (de uma justa retribuição quer do Trabalho quer da partilha dos bens produzidos) como algo, a seu modo, volto a referir, exógeno, excrescencial—e, no limite, magnânimo, generoso, por parte dos detentores dos meios de produção.

É interessante observar aquilo que Marx diz da assimilação por parte do modo de produção capitalista de um certo «cristianismo útil» integrado no modo de exploração capitalista na forma da “boa consciência” que ele permite ao detentor dos meios de produção gozar. O que chamo o «cristianismo útil», perversa deformação de um potencial cristianismo humanista e social, representa o retorno da acção do proletário como um acto destinado, ele próprio a “agradar a Deus”, um acto de liberalidade e mesmo magnanimidade e não é por acaso que um estudioso como Henrique Medina Carreira num opusculozinho muito revelador intitulado “O Estado e a Segurança Social” (“Cadernos do Público” nº 4 Mirandela s/d) refere como uma das etapas ou estádios da génese do Estado dito Social no catolicismo escrevendo “Desde tempos recuados os católicos, individualmente ou através da sua Igreja, praticam a caridade [sic] através das esmolas, como via da redenção dos seus pecados”.

Justo é dizer que o autor tem a honestidade intelectual (e política) de acrescentar—o que, aliás, não muda coisa alguma no essencial do que aqui deixo expresso que (e passo a citar) “Movidos especialmente pelas vantagens espirituais da acção caritativa [sic, sublinhado meu, Carlos Machado Acabado], secundarizavam as verdadeiras causas da pobreza.” Não se pode, com efeito, ser mais claro ao abordar a ideia das verdadeiras natureza e funções do Estado Social no contexto do funcionamento normal do modo de produção capitalista. É facto que julgo já ter ouvido o autor na televisão, julgo lembrar-me, fazer remontar o referido Estado dito social a Bismark e à unificação alemã. A verdade, porém, é que resulta difícil não ver como no espírito do autor paira, diria eu, uma perigosa (e perversíssima!) confusão entre genuíno dever social ligado ao problema atrás citado da justificação social e política da propriedade e caridade pura e simples, dando-se de barato que não há qualquer antinomia entre proletariado e pobreza remida ou ressarcida esta através de actos esmoleres institucionalizados—directamente pela igreja católica, como escreve Medina Carreira ou de modo, chamemos-lhe: especular pela influência que aquela exerce na formulação de um conjunto de ideações de natureza económica e política (económico-política) que estão na base do capitalismo moderno.

Curioso, curioso é constar como é da boca de um dos maiores e mais sinistros, cínicos e cruéis bandidos de que há memória que surge a, no fundo, mais lúcida reflexão sobre a verdadeira natureza e o verdadeiro papel do dito “social” no contexto do funcionamento chamemos-lhe «normal» e aparentemente sustentável do capitalismo nas sociedades onde ele, lá vai tant bien que mal proliferando.

Falo de Alphonse Gabriel Capone, vulgarmente conhecido simplesmente como Al Capone, que numa entrevista republicada no vol. 3 das “Grandes Entrevistas da História” edição do semanário “Expresso” diz textualmente: As pessoas como nós terão de abrir os cordões à bolsa, e bem abertos, se quisermos que alguém sobreviva” []  Temos de contribuir para encher as barrigas e manter os corpos quentes […]” E prossegue tão lúcida quanto premonitoriamente: “Se o não fizermos o nosso modo de vida chegará ao fim” [sic]

Capone, atemorizado com a inevitável caminhada do capitalismo para a fatal insustentabilidade de estrutura, percebe perfeitamente isso mesmo: que sem o combustível da “solidariedade funcional” vulgarmente conhecida por “estado social” todo o edifício do capitalismo cavalga de forma inexorável a toda a velocidade, para a autofagia e o suicídio na forma, antevê ele de uma iminente “revolução social” de natureza “bolchevique”.

Curioso ser um reconhecido malfeitor autoposicionando-se fora do sistema social (ou mais precisamente legal, da ordem estabelecida e comummente aceite como tal) mas sempre tirando partido deles a perceber aquilo que parece escapar a uma imensidade de gente para quem o capitalismo se afigura não apenas como um sistema e um modo de produção risonhamente sustentável mas, cumulativamente, o único capaz de, como eles gostam de dizer, “produzir riqueza e gerar empregos”.

Capone pode ter sido (e foi!) um gangster implacável e de um cinismo e uma crueldade verdadeiramente únicos mas de ingénuo e de idiota nada tinha, isso resulta evidente no epitáfio que redige do capitalismo. Ele percebeu com toda a clareza, o carácter natural e estruturalmente autofágico de um sistema que só consegue produzir riqueza com recurso àquilo que me permito chamar de «carencialidade instrumental ou possibilitante». Ou seja, como tantas vezes repito e repeti nas aulas de “Introdução à Política” se o capitão Cook tivesse acertado e os frutos da árvore-pão substituíssem realmente o pão produzido nas padarias, à indústria da panificação apenas restaria “morrer de morte natural” porque aquilo que na lógica do capitalismo gera o “valor” dos objectos não é o modo como contribuem para a vida das pessoas e das comunidades por elas formadas: é sim a raridade com que eles se apresentam à sociedade—pelo que quanto mais raridade, maior o «valor» das coisas. É assim que é legítimo dizer que a matéria-prima da “riqueza” produzida no e pelo capitalismo é a carência estrutural que o capitalismo consegue plantar a montante do próprio processo produtivo. Leia-se modo de produção. Não é, pois, apenas meia verdade que o capitalismo gera riqueza. Como recordo e relevo mais atrás, a única coisa que realmente o capitalismo pretende ver re/produzida (e que ele re/produz!) é capital, como o próprio nome indica, sendo que, como de igual modo, acima refiro, tudo aquilo que nos habituámos a considerar a riqueza produzida (os televisores, os frigoríficos, os automóveis das mais diversas marcas) não passam, na realidade, de subprodutos da re/produção contínua e sistémica de capital.

Na verdade, além de produzir de forma contínua, significada sobretudo capital, o modo de produção capitalista comete ainda o acto estruturalmente antissocial de gerar pelas suas próprias mãos a carência que lhe permite gerar o que ele chama o «valor» (das coisas, das pessoas e, falando agora especificamente como professor, dos sistemas de ensino).

Bem pode a conhecida e tao liberal, tão esclarecida SEDES esfalfar-se pedindo (exigindo! Chantageando o poder político: “ou fazem como a gente li-BERA-lmente exige ou não duplicarão o PIB”!) a despolitização ou desideologização do sistema de ensino. O ensino há-de ser sempre, como no título famoso, um acto político porque pôr ou tentar que seja posto todo um sistema de ensino a funcionar da base ao topo como «fábrica de quadros» para um modo de produção assente eu costumo dizer com recurso a um neologismo muito meu, assente verticialmente no capital e na iniciativa um e outra privados é, em si mesmo (muito!) mal disfarçadamente fazer política a pretexto de fazerEducação!

 

Carlos António Machado Acabado

  • Justifica-se no contexto, o recurso ao verbo “voltar” com a circunstância de toda esta temática ter sido já objecto de reflexão numa postagem do Facebook

(2) Ao falar em discriminação está o signatário a aludir àquela escandalosa resposta tantas vezes escutada à pergunta: “E esse exame fazem pela ADSE»”: “Pela ADSE fazemos pelo que o senhor que é beneficiário pode desde já agendar o seu. A sua esposa que é da Segurança Social é que terá de fazer o favor de procurar outra clínica.” Volto a dizer que me parece escandalosa e mesmo indecorosa esta diferenciação entre cidadão pagantes de impostos, uma diferenciação que, no meu entender, viola grosseiramente o artigo 26º da Constituição:   Artigo 26.º

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reservada intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.  [Negrito e sublinhado meus. Faço notar que não sou jurista, sendo a minha área de formação académica a Filologia Germânica—pelo que haverá seguramente muito de argumentativo e juridicamente debatível no meu posicionamento. Não é, para concluir este ponto, como jurista—que não sou—que falo mas como cidadão escandalizado com a circunstância de um professor do ensino oficial público beneficiar de formas de cuidados médicos de que, todavia se encontra excluída uma ex-operária fabril, sua esposa e como ele sujeita ao pagamento de obrigações fiscais que putativamente lhe seriam retribuídas na velhice de forma não arbitrária ou, pelo menos não unilateralmente  negadas por contraste com o respectivo cônjuge. Um jurista o dirá melhor do que o modestíssimo linguista e filólogo de formação que é o signatário. A verdade é que na óptica deste subjaz à distinção atrás expressa entre contribuintes, uma clara discriminação de ordem social—completamente inadmissível  de uma perspectiva democrática e especificamente (em tese, ao menos) constitucional também!

  • Ouvimos, com efeito, de forma cíclica e recorrente por parte dos vários clãs liberais o apela à “união estrutural—e estruturante—da escola às empresas, ao universo concreto da produção” (algo, aos meus nada-liberais ouvidos soa distintamente como um apelo sim mas da Educação a UM modo de produção, muito em concreto. Como digo atrás, bem pode a conhecida SEDES desentranhar-se em invocações à despolitização e à desideologização da Educação. Bem pode o ex-ministro da tutela Eng. Roberto Carneiro (Cf. José Vítor Malheiros e Teresa de Sousa, “Portugal 2020, Visões do Futuro, pág. 477) clamar que “A educação é o grande instrumento de liberdade e de autonomia”. O que é facto é que quando Jürgen Drews, seja ele quem for, escreve in “University and Industry”, 1995, Editions Roche F. Hoffman-La Roche AG, Basel Switzerlan)que “the roles of academic and industrial research are chainging” e que “traditionally university are focused on the elucidation of basic principles and mechanisms industrial researchers applied this knoewledge to developing the know-how  and the products to meet individual or societal needs”. Concluindo que “the motivation for academic research was new knowledge, ‘science for science sake’ while that of industry was applications and products. Although academia trained and supplied scientific talento to industry and industry provided finantial and technical support for universities they had very diferente objectives and functioned more or less separately”.

Quando, pois, o referido Sr. Ou talvez Dr Drews assim opina aquilo de que estamos a falar é já não, como advoga e Eng. Carneiro de uma qualquer tão abstracta quanto mítica “liberdade” ou “autonomia” mas de um paradigma de educatividade funcional em cujo quadro o “valor” do Conhecimento só pode emergir quando é atrelado a um modo de produção do qual através do financing de que o autor fala fica refém e obrigado a (re) produzir capital multiplicando o investimento feito. Ora, diga a SEDES, digam as SEDES deste mundo o que disserem sobre a despolitização e a desideologização dos paradigmas de educatividade (aqueles que a nós portugueses, nos hão de “duplicar o PIB” (Cf. diário Público de 18.08.022); digam, então, as SEDES deste mundo o que disserem propor-se pôr as Universidades a trabalhar para a indústria privada é política—e uma forma de política bem definida que pouco—ou nada—tem a ver com liberdade ou autonomia mas com colonialismo cognitivo correspondendo na prática à dissociação entre Conhecimento e conhecimentos no quadro de uma educatividade básica—eu diria primariamente!—instrumental que remete para uma fase da História da Educação em que esta era comum e muito menos ambiciosamente designada por Instrução pura e simples: a tal fábrica escola/escola fábrica a que atrás faço alusão. Não nos iludamos, pois, a pretensa desideologização da “Educação” proposta a um tempo pelo capital privado e pelos seus porta-vozes politiformes (as ILs da vida) resume-se, em derradeira instância a um afunilamento senão mesmo achatamento ideológico das máquinas tradicionais de produção de Saber susceptível de ser assim expresso “Scientia ancilla Industriae”. Ora se isto (a proposta de emergência de um «estado» e de um saber estruturalmente funcionais a laborarem por decreto para o capital privado) não é política, não sei com toda a sinceridade o que possa sê-lo!

Não termino sem uma citação de Freinet que me chega via revista “Vértice” nº 318 de Julho de 1970) e na qual o pedagogo filósofo diz “A educação é desenvolvimento e não a acumulação de conhecimentos ou adestramento.

“Segundo este espírito (discorre Rui Namorado autor do texto “Um Problema nosso, um movimento exemplar” onde a frase de Freinet se insere) nós procuramos as técnicas do trabalho e os instrumentos, os modos de organização e de vida, no quadro escolar que permitirão ao máximo este desenvolvimento e esta construção. Apoiados pela obra de C. Freinet e seguros da nossa experiência, temos a certeza de influenciar o comportamento das crianças que serão os homens de amanhã mas também os educadores chamados a desempenhar na sociedade um novo papel.

Um “novo papel” que não era (nem é ainda hoje tantos anos volvidos sobre o texto de Rui Namorado!) o de servir de ferramenta útil mas, no fundo, dócil e passiva no processo de (re) produção de capital como nos delírios dos li-BERA-is por esse mundo fora


Carlos Acabado