O Estado do Orçamento

 

 

 

 

 

 

 

 

ALFREDO SOARES-FERREIRA


Alfredo Soares-Ferreira . Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.


Os dias difíceis do Orçamento revelam um estado preocupante, na acepção costumeira. Não existindo, ao que parece, uma terapia adequada, será difícil prever melhorias ou soluções milagrosas, se bem que algumas destas tenham sido tentadas, mau-grado o desagrado de alguns intervenientes. São dias penosos para alguns, na perspectiva de eventualmente poderem perder a face, no emaranhado de declarações e contra-declarações, exaurindo entendimentos em cima da mesa. Entretanto, por baixo dela, tudo pode acontecer, na destruição verborreica que arrasta tudo consigo.

O terreno escorregadio da baixa política, consubstanciado na falaciosa ideia do designado “interesse nacional” está inundado de fantasmas salazarentos, que marcam sempre presença quando a tarefa é baralhar e mistificar as consciências. Quem usa e abusa desta estratégia, sabe bem o que faz e para quem fala, sendo que, quem ouve, apesar de ter sempre a hipótese de recusar, opta normalmente pela adesão, uma vez que considera sensato e razoável o tal “interesse”. Assim actua quem fala do “bem-estar dos portugueses”, sem especificar de que portugueses fala, como fez o bispo de Setúbal. O dito prelado, à boa maneira do passado, atreveu-se a entrar no campo da histeria pela aprovação do Orçamento, fazendo dele profissão de fé (termo com toda a aplicabilidade) e aconselhando os partidos políticos a deixar para outras núpcias as suas “operações mediáticas”.

Na voragem imensa da propaganda, a Esquerda desapareceu. Os especialistas e comentadores, apelidados na feliz asserção do Major-general Carlos Branco, de “analistas do ar condicionado”, determinaram que apenas os partidos do centrão devem decidir (ou decidir-se) quanto ao Orçamento. O que está no Governo, quer fazer aprovar e o que está na oposição, parece não querer, ou parece querer, caso lhe sejam incluídas medidas que defende. Tudo o resto são derivações de oportunidade, incluindo o desespero criativo do Presidente, que pretende (como sempre) ser o protagonista principal e, muito provavelmente gostaria de os ver coligados, ainda que de forma plácida, a dirigirem o País, como aliás tem sido hábito após o fracasso da Revolução, em Novembro de 1975. É a mesma dupla (AD/PS), que apesar de aparentemente se digladiar, acaba coligada, por exemplo, em votar no Parlamento Europeu, uma moção russófoba, que é uma autêntica declaração de guerra à Rússia, conforme salientou o professor Viriato Soromenho Marques (VSM), em artigo do DN, de 28 de Setembro passado. Nesse artigo, em que faz questão de exceptuar a abstenção do deputado “socialista” Bruno Gonçalves, VSM lança a questão “Vamos financiar a russofobia no OE de 2025?” e saber se os eurodeputados portugueses, com o Estado Social em falência, querem “investir” mais de seiscentos milhões de euro do orçamento de estado para 2025, para o “prolongar sangrento de uma guerra absurda”.

Sobre o estado do Orçamento poderia dizer-se que não é líquido que seja sólido. A sua eventual solidez está presa pelo fio ténue do desempenho da economia, a acreditar nos responsáveis das finanças do governos “centristas”. Recorde-se que, exactamente há um ano, Medina dizia que “só com contas certas podemos dar apoios às empresas e às famílias“. Será provavelmente um grande mistério saber porque se pleiteiam, quando defendem, em termos de economia e finanças (e não só) praticamente o mesmo, com ligeiras variações, como são o designado IRS Jovem. Já quanto à eventual descida do IRC, a torto e a direito, mais não é que a consignação formal da “protecção” à banca e às grandes empresas, nunca colocada em causa pelos governos da responsabilidade do Partido Socialista. Aliás, se dúvidas houvesse quanto à concertação entre governos, patrões e organizações que dizem representar os trabalhadores, ela aí está, esta semana, para o provar. Há sempre um acordo possível entre interesses, o odioso ficará para quem não os subscreve, por manifesta e nítida opção de classe. Voltando ao estado do Orçamento, poderíamos aventar a hipótese da sua condição física, com a classificação de “pastoso”, a qual parece corresponder melhor à realidade, dada a viscosidade interna que o caracteriza. Mas podemos também fazer uma associação criativa com um recente estado, ainda em estudo, que é o dos “cristais líquidos”, materiais que oscilam entre os estados sólido e líquido e em que as moléculas mantêm a sua orientação, mas também se movimentam em várias direcções. A movimentação em apreço será aqui apenas em duas direcções, bem à medida do simplismo básico em que se transformou a política burguesa.

Para completar o quadro de análise, há que introduzir o tema, sempre do gosto dos “analistas”. As eleições das quais se diz “ninguém as quer” e que não resolvem o problema. Se são, ou não, necessárias, caso não haja aprovação do Orçamento, estará a ser queimada uma etapa que parece óbvia, a saber, uma nova proposta. De qualquer forma, embora seja uma presunção natural, não passa de conjectura factual, uma vez que a discussão política está voltada para outro lado. Ao revelar uma indiferença pelos direitos dos cidadãos mais carenciados e uma permanente e constante lógica neoliberal de “conduzir” as mais-valias sociais para o lado do capital, qualquer orçamento padece da doença incurável que é a injustiça.

O enviesamento constante da realidade é a doença crónica do capitalismo. Por isso, o estado deste orçamento será o mesmo de quase todos os outros, um enterro de ilusões, ou esperanças incontidas.


No Diário. https://diario560.pt/o-estado-do-orcamento/