BENTO DOMINGUES, O.P.
Para que as celebrações da Quaresma e da Semana Santa não se percam no ritualismo fundamentalista, importa não se deixar dominar pelo que está mandado ou proibido. Uma festa precisa de um ritual, mas não há nenhum ritual que faça a festa de uma comunidade ou de um povo.
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Algumas Igrejas cristãs – católica, ortodoxa, anglicana, luterana – fazem preceder a Páscoa de um grande retiro, a Quaresma, para vincar que as «cerimónias litúrgicas», sem a transformação da vida, são uma mentira.
Os rituais e tradições da Quaresma podem ser muito diferentes de continente para continente, de país para país e mesmo dentro de cada país, as expressões, sobretudo as da Semana Santa, podem revestir aspectos que uns consideram fidelidade à religião popular e outros apreciam-nas como folclore bizarro para turistas do insólito. Também não falta quem as denuncie como traições à pureza da fé cristã.
Certas tradições foram esquecidas, outras alteradas e são, agora, em muitos casos, objecto de investigação histórica e até de reconstrução etnográfica. Não convém esquecer que foram, por vezes, modos muito criativos de inculturação popular da fé cristã, mais ou menos ortodoxa. O mundo rural em que nasceram e se desenvolveram ou já não existe ou existe de forma tão precária, que as reconstituições parecem sobretudo trabalho de arqueologia da memória. Em algumas zonas do país, onde o clero não impôs a sua ortodoxia oficial, ainda hoje são fiéis às expressões da fé que os alimentaram durante séculos[1].
A reflexão sobre a inculturação do cristianismo tem sido, nos últimos anos, mais pensada do que realizada. Ainda recentemente se falou muito de um novo rito católico para a Amazónia, mas continua por concretizar.
A reforma litúrgica do Vaticano II teve e tem muitos méritos e virtualidades, mas talvez tenha sido demasiado “higiénica”. Preocupou-se, e bem, com a participação dos fiéis que não pode reduzir-se à tradução dos textos litúrgicos e dos regulamentos rituais. Não teve em conta que esta exige um processo de inculturação responsável e criativa que não pode realizar-se nas costas das comunidades cristãs.
A Quaresma deve ensaiar o encontro com o essencial da fé cristã e com as suas diversas expressões simbólicas e éticas de recriação da existência humana. O esquecimento da distinção prática entre o essencial e o secundário, na vida e nas expressões da fé cristã, conduz a impasses na prática pastoral, como se acaba de verificar com o sínodo da Amazónia realizado no Vaticano.
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A essa distinção já me referi nas últimas crónicas, embora com propósitos diferentes. Neste sentido, convém ter em conta o exemplo de S. Tomás de Aquino. Este filósofo, teólogo e poeta elaborou um guião para os que iniciavam os estudos teológicos que dá pelo nome de Suma de Teologia, uma obra imensa que não pôde concluir. O ambiente universitário vivia sobretudo das chamadas questões disputadas, mas a floresta dessas questões era tão vasta que os principiantes perdiam-se nos seus labirintos. Ao professor competia ensinar a ler e interpretar os textos sagrados e os textos da cultura filosófica e científica da época. A discussão académica não se podia contentar em repetir o credo cristão. Uma teologia da repetição não respondia à questão essencial: como é que é verdade aquilo que confessamos no credo? Sem isto, os fiéis que repetem o credo estão na verdadeira fé, mas de cabeça vazia. O pregador – e Tomás de Aquino tinha entrado na Ordem dos Pregadores – também não pode ser fiel à proposta que faz do Evangelho, contentando-se com divulgar catecismos, devoções ou receitas prontas a servir. Deve preparar-se, como o professor, a saber ler e interpretar os textos sagrados no coração da cultura literária, artística, filosófica e científica dos seus destinatários, que podem ser mais ou menos eruditos. Hoje, diríamos, na linha de um grande discípulo de S. Tomás, o P. Dominique Chenu, devemo-nos inscrever em todos os saberes, de todos os movimentos sociais e culturais, para ler e interpretar os sinais dos tempos.
Na Suma de Teologia, Tomás de Aquino, ao abrir muitas clareiras na floresta, também ele corria o perigo, no meio de tantas questões e distinções, de se perder do essencial. Não aconteceu. Em três breves questões foi directo ao coração da fé cristã e justificou a sua intuição evangélica: Aquilo que há de mais poderoso na lei do Novo Testamento e em que consiste toda a sua energia é a graça do Espírito Santo que é dada pela fé em Cristo. Daí que a Lei Nova seja, principalmente, a própria graça do Espírito Santo que é dada aos fiéis. Tudo o resto vem em segundo lugar, pertence ao reino das mediações para nos dispor ao acolhimento, à expressão e à fidelidade, na vida concreta, a essa graça[2]. Daí resulta uma nova inteligência da fé, uma nova ética e novos sacramentos.
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Na Suma de Teologia, Tomás de Aquino situou a questão dos sacramentos depois de apresentar Cristo como sacramento. Estes são actos de Cristo que, a partir de um momento histórico, atingem por virtude divina todos os tempos e lugares. Antes desta obra, tinha-se referido à actividade sacramental como causa da graça divina. Os sacramentos entravam, deste modo, no mundo da causalidade eficiente. Na Suma, mudou completamente de perspectiva. Os sacramentos pertencem ao mundo simbólico. Não são uma mecânica divina e humana de produção da graça. Não são coisas, são gestos e palavras significantes que têm a propriedade de realizar aquilo que significam. São uma linguagem performativa. Esta viragem deve modificar completamente a pastoral litúrgica, pois, não actuam automaticamente. Têm de falar do e ao ser humano em todas as suas dimensões: ao seu imaginário, à sua inteligência, aos seus afectos, às suas exigências de beleza, de sentido e de transformação do mundo. Os sacramentos realizam-se numa festa da fé, numa festa do Evangelho. Não favorecem a depressão.
Como escreveu Frei José Augusto Mourão, o pensamento depressivo está naqueles que só falam da transfiguração do mundo, mas são incapazes de transfigurarem a sua própria linguagem. Ora, a linguagem de Jesus é uma linguagem de transfiguração.
Para que as celebrações da Quaresma e da Semana Santa não se percam no ritualismo fundamentalista, importa não se deixar dominar pelo que está mandado ou proibido. Uma festa precisa de um ritual, mas não há nenhum ritual que faça a festa de uma comunidade ou de um povo.
O principal é a transformação da vida pessoal e comunitária, mas esta precisa de ser secundada pela transfiguração da linguagem da fé. Sem esse trabalho, a liturgia torna-se aborrecida, depressiva. Ninguém está obrigado a participar num aborrecimento colectivo.
1] Cf. Mistérios da Páscoa em Idanha 2019, Câmara Municipal da Idanha-a-Nova, VI Curso Livre sobre Religiosidade Popular. Ruralidade e piedade popular no nosso tem
[2] I-II, q. 106-108
in Público, 08.03.2020
https://www.publico.pt/2020/