GLEDSON SOUSA
Jeanine Will, humana amadora desde 1975, poeta, escritora, tradutora e artista visual. Nascida em SC e vive em São Paulo. Formada em tradução e interpretação inglês/português pela Unibero. Autora dos livros Caminhão de Mudança (2017) e Pára-choques (2018). Contato: caminhaodemudanca@yahoo.com.br
A poesia é uma sedimentação metafórica da realidade, a percepção poética dos grandes fluxos do tempo, já que a realidade em si é tempo e memória. Mas diferentemente do pensamento conceitual, que fatia a experiência para tentar compreendê-la e controlá-la, o discurso poético é a percepção da realidade maravilhosa, a trama misteriosa que enlaça seres e circunstâncias num evento único, um contínuo maravilhoso.
Para o poeta, cada elemento da experiência é vetor para a imanência transcendente do real: para sua percepção aguçadíssima, um toque na pele, um gesto de despedida, um olhar na paisagem revelam esse outro, o poeta é um ser que está sempre a atravessar espelhos, ou melhor, como ele não sai daqui para um lugar além, como o fez Alice, o poeta em si é um espelho de maravilhas, que devolve ao real seu potencial extremo de beleza, como se a palavra fosse ela mesma a chama que ilumina o real.
É assim que Jeanine Will nos devolve ao real, nos levando para outro lugar que é aqui mesmo com seu Caminhão de Mudança (Córrego, São Paulo, 2017, 71 páginas), um caminhão corporal, onírico, permeado por um eros sutil e delicado como a teia da própria realidade.
Porque Eros é esse deus que atinge a todos com suas pequenas flechas, que abrem nossos olhos para os abismos que nos cercam:
A nave da noite pousa na terra
Vermelhos queimam velozes
Os olhos da cidade devoram arrazoados
Deixa a tua máscara de lado
Mergulha no azul deste quarto
Queima teus lábios na ponta dos meus dedos
Arranha tuas mãos nas minhas palavras
Deita teu ouvido sobre este sussurro
Pisa de leve na pista
Abre teu zíper até a angustura
Dança de costas pro abismo
As sombras são apenas sóis introspectivos
O amor é esse momento de abandonar máscaras: nunca somos tão verdadeiros – e tão frágeis – como quando estamos nus juntos de alguém: essa nudez é um estado primordial de nós mesmos, despidos dos condicionamentos sociais, mas imersos no fogo, na chama que torna um e outro o mesmo, um andrógino temporal ou um duplo somado no instante, e Jeanine nós traz esse momento como música de câmara escrita para dois instrumentos.
Aliás, a poesia de Jeanine Will é marcada pela música. Jeanine não emula formas musicais já estabelecidas, ela encontra uma musicalidade no espaço e na forma que lhe são próprios: a voz poética é marcada por uma metafísica musical, onde procedimentos como sostenutos ou ostinatos dizem do corpo que ele é instrumento, ou seja, que ele produz música, que o amor é música produzida no espaço-tempo como em Navegando pelas estrelas:
Sou apenas um corpo despreparado
Intervalos finitos de marfim e ébano
Metais, martelos
Olhos de madeira
Pele percutida
Improviso, faina, fantasia
Cravo com suave e forte
delírio epitelial sobre o mesmo tema
Variação de cordas cruzadas
Cepo e suas cravelhas
(que a vida se incumbe de apertar)
Versos de se levar para um poema deserto
Pedais de acionar o mecanismo dos sonhos
Sou apenas um corpo sostenuto
Aguardando tuas mãos na marquise
Da capo al fine
O corpo como orquestra, a música como metáfora. De certa forma, Caminhão de Mudança estabelece-se sobre uma dialética delicada entre a audição, visão e tato, entre o som, a visão e os sentidos da pele: a percepção desliza do tato ao espaço, da visão retorna ao sentido da audição: enquanto a visão está diretamente relacionada à produção de um pensamento totalizante através da imagem, e que remete diretamente ao espaço de fora, a audição remete a uma percepção interior do espaço, a escuta nos torna mais próximos que o olhar.
Por isso, o sentido da audição aparece em versos onde o som aproxima e amplia o percebido, revelando a proximidade, a intimidade, a dor ou o sinestésico prazer, como em A Semântica da Semente:
(…) vejo a coreografia dos teus lábios antes da tua voz beijar
meu ouvido
(…)
da tua boca poética descaem beijos de mil versos e refrães
incandescentes
Ver a coreografia é uma antecipação permitida pela visão, mas é a escuta quem traz a proximidade – tua voz beijar meu ouvido.
Claro que essa dialética é uma dialética da desordem, uma dialética poética e sinestésica onde os sentidos se somam ou subtraem-se, confundem-se, na percepção radical da poeta.
Mas Eros, esse deus que era temido pelos outros deuses por ser imprevisível, nem sempre traz a paz, às vezes é a tormenta quem se faz presente na ausência do outro:
Orquestra Vazia
A solidão ancora na planície lenta da segunda feira
março se despede sem bilhetes
Acordo do dilúvio das dúvidas no tumulto das faces
confundo chover com chorar
sigo nua diante do roubo dos sonhos
escondo o osso da vida na esquina
suspiro na inscrição da rocha machadiana
sento no tapete mineiro das lembranças
você é um escorpião que carrego
no corpo
na tarde que emudece crepúsculos
no meu coração de tambor telegráfico
Orquestra Vazia é a antítese densa de Navegando pelas Estrelas: enquanto neste último a música reverbera nos corpos, no espaço, na disponibilidade e entrega amorosa, em Orquestra Vazia é a ausência e o silêncio quem dão a tônica do poema, marcado pela solidão (a solidão ancora na planície lenta da segunda feira…).
Claro que num livro tão denso quanto Caminhão de Mudança, falar sobre eros é escolher aquela que parece uma tônica recorrente entre os poemas, mas um Eros ao estilo das antigas representações de Vênus, essa Vênus-Urânia que a tudo abrangia, e que em si se confundia: nascida das águas, poderia ela mesma ser o céu, ou seja, essa totalidade que a tudo permeia como o espaço ao redor.
E o eros-vênus de Jeanine Will nasce também das águas, das águas de uma emoção refinada, de um olhar atento ao espaço da totalidade e às conexões entre as coisas:
Olhar em Detalhes
ele é uma tatuagem na pele das nuvens
neste ensaio quase invisível que é viver
levantam brumas entre bambus e pinus
vejo mãos indisfarçáveis, fumaça e flores
como estancar sua imagem?
o amarelo do ipê vira a esquina
e no meu relógio são sempre suas horas
a língua ainda lambe o seu pergaminho
improvisando um alfabeto pr’agora
a boca silencia mais um drink
evitando a porta da manhã
o pássaro da dor é o único que não se abala no galho
O eros remete a uma totalidade, da presença do outro que toma conta do espaço (ele é uma tatuagem na pele das nuvens…), mas de um outro que está ausente (como estancar sua imagem?), e cuja ausência marca a paisagem e o tempo de inequívocos sinais:
Anoitece sobre a saudade
dores douradas premeditam sombras
ressalvas em prata interrompem vidraças
um dorso de coisas desavisadas
nos olhos do céu o sonho da tarde
e no arranjo do tempo – de ré e de leve
os ponteiros marcham arriando as horas
e sentam-se no topo do mundo
pra ver o sol ir embora
O tempo volta-se sobre si (e no arranjo do tempo – de ré e de leve…), estanca, porque busca-se o ausente no tempo que passou. Aqui a paisagem anoitece sobre a saudade, porque a poeta é, de certa forma, o espaço ao redor, ela é a cidade, seus vãos e reentrâncias, seus mistérios e segredos:
eu tento um verso que devore a víbora do dia
ainda te espio entre os véus da tarde
e tu não vês porquê
meu corpo é um abraço trancado no armário da cidade
Um abraço trancado no armário da cidade… mas a viagem erótica não esgota-se somente em sombras e ausências, o eros é epifânico, mágico, lúdico:
A semântica da semente
I
esse sabor doce de começando
eu te chamo, tu me chamas
e juntos acendemos a semana
de teus olhos
acordo visível
de tua pele
a cor do delírio
e me és bem bom
da mesa a calandiva
vermelha e soberana
e agora o fato da semana
esse prato a mais
II
(…)
sorrisos recriam reentrâncias nos travesseiros
vejo a coreografia dos teus lábios antes de tua voz beijar
meu ouvido
(ao redor de uma dor que tenho, passos de uma doce
analgesia)
meus olhos rolam sobre o desenho de tuas mãos
da tua boca poética descaem beijos de mil versos e refrães
incandescentes
claros imiscuídos na cortina desfiam os músculos e os
verbos da noite
enquanto nós nos tornamos nuvens
Tornar-se nuvem, sem dúvida, é um bom destino. “Eu sou uma nuvem de calças”, diz Maiakovski pela boca dos irmãos Campos. Mas a nuvem de Jeanine é a condensação da plenitude amorosa, do vapor dos corpos que transcendem paredes e quaisquer limites de qualquer geometria, seja euclidiana, cartesiana ou mesmo uma geometria dos espaços curvos, porque o espaço é transformado e os referenciais mudam continuamente: as únicas coordenadas são aquelas dos corpos que são nuvens e que podem depois retornar à terra: pura chuva.
Sem dúvida, Caminhão de Mudança pode-se ler ao modo de um livro de viagem, como bem o observou Cláudio Willer no belo posfácio que acompanha o livro. Mas é uma viagem erótica, de um eros difuso, bem feminino, que toma conta de toda a paisagem, e que arrasta consigo dúvidas, dores, hesitações e sentimentos, pois a experiência do outro radica-se num eu que se dissolve e sofre buscando o outro, e confronta-se com a dureza, as arestas de muros, paralelepípedos, de uma realidade brusca, faminta, dura, como no curto e mais que belo final:
Compacto
a ordem da vida é doer
felicidade é coisa descompassada
pulo de agulha sobre o LP
no mais estamos vivos
e isso não é nenhum alívio
A dor como ordem, a felicidade como exceção: é necessário a aresta do verso para decodificar a felicidade – irregular e entranhada – nos vãos do dia, arrancar do vazio e entregar nos braços de eros, mesmo que seja um eros sutil, como esse de Jeanine Will.