O discurso terapêutico da modernidade

LUÍS COELHO


O contexto pós-moderno da guerra das “medicinas” reactualiza, não só, parcialmente, a “guerra das ciências” do séc. XIX, como a contenda, mais cabal, dos paradigmas epistémicos da História do Conhecimento. Veremos que tamanha disputa, na verdade, a essência de toda a Filosofia, é a proa de uma salutar, necessária, intransponível, dualidade que debuxa a temporária incapacidade do “ser humano” de se compreender e controlar clinicamente de um modo mais “absoluto”.

Porque, se a compreensão fosse “absoluta”, ela nem precisaria de ser dialéctica, dialógica, o Entendimento mataria todas as divisões, mas, aí, já teríamos um Ser completamente são, Essência isenta de dúvidas. A ausência de dúvida é, na melhor das hipóteses, uma Física finalizada, um Universo onde o Homem assume um lugar central de plenitude e omnisciência. O homem padece porque não é Deus, duvida da sua aptidão para tal. Em tempos, o Espírito era o que mais acercava o homem da deidade. Esse era, também, o tempo do “paraíso” dos grandes ideais, das filosofias mais tarde assumidas dogmaticamente, e, também, de uma medicina inseparável da alma. A revolução cartesiana veio sistematizar a dúvida e, enquanto a Filosofia se lançou na problemática remanescente do Conhecimento, a ciência via-se a ganhar ânsias de independência sistemática.

Parte da filosofia mantém-se agarrada ao antigo modelo “subjectivo”, enquanto a ciência “moderna” se prefere manifestar empiricamente. No séc. XIX, tudo se torna mais tenso, porque as ciências “físicas” não querem reconhecer o direito das ciências “sociais” de uma aproximação ao modelo “empírico”, sonho de um Comte que opõe a promessa da positividade ao vetusto, mas necessário, erro do paradigma teológico-metafísico. O “positivo” não é, de todo, empírico, mas recalcitra na imediaticidade “material” própria das ciências físicas, realistas. E, no entanto, não pode, jamais, o conjunto das ciências “humanas” aspirar ao grau de Conhecimento Necessário do que é supostamente imodificável.

Mas o antigo Espírito implica esse tipo de dogma, o de uma aparente permanência. Tornado “Psicologia”, submetido ao exame do “positivo”, a antiga ciência do espírito perde o seu poder mítico, preço necessário do “realismo”.

As ciências sociais, arrostadas como “fracas”, “moles”, acabaram mesmo por recuperar, na pós-modernidade, certo discurso “subjectivo”, interpretativo, mas sem a antiga presunção mítico-dogmática. Limitam-se, simplesmente, a aceitar o lugar do “ser”, e a sua incomensurabilidade hermenêutica ao “físico”.

Ora, a medicina moderna, ao bom jeito “fisicalista”, possui uma pretensão dominantemente “exacta”. Ela parte da física, da bioquímica, da histologia, e de tantos terrenos “certos”, e, às tantas, esquece que, no seu objecto de intervenção, está uma “pessoa”. A “pessoa”, agora, já não se encara como “espírito”, mas possui a sua quota de subjectividade. O que é “humano” implica, sempre, um manancial de variáveis. A mente é uma variável incontornável e é sobretudo o seu caracter “intencional” (vide Searle) que fundamenta a complexidade factorial das ciências “sociais”. Aquilo em que a medicina se aplica de exclusivamente bioquímico é mais ou menos certeiro (se bem que sempre crescivelmente aberto a novas descobertas, e a correcções do conteúdo pretérito, não esquecendo que a ciência evolui e se adequa de modo multivariado). Mas a componente “humana” obriga à investida dos estudos “estatísticos”, que é, bem vendo, o lado mais frágil da evidência “médica”. A determinada altura, pretendeu-se que o controlo do “placebo” conseguiria eliminar por completo a fragilidade desses estudos, mas há ainda imensas limitações que não é possível escusar (note-se que o efeito “Édipo”, segundo Popper, do investigador sobre o investigado não se limita ao placebo, mas pode estar presente de muitas formas, demarcando, mais uma vez, a componente pós-moderna, subjectivista e relativista que a ciência moderna não pôde deixar de conceber, especialmente no século “quântico”). Uma das coisas que se persiste em negligenciar é o aspecto “totalizador” do indivíduo, do conjunto das variáveis que operam no seu constructo “absoluto”, e que se perde no processo do isolamento de variáveis que os estudos “controlados” exigem. Porque estes estudos vão buscar à ciência “física” o papel “analítico” do que se investiga. Mas esquecem que o Sujeito é um Todo, e que o seu “bem-estar” resulta desse mesmo Todo. Não que isto seja importante para boa parte da medicina, porque esta não é a sua preocupação dominante, o seu modelo palpável (aliás, a preocupação “ecológica” é pequena neste tipo de estudos, pretende-se o que é universal, irredutível ao sujeito/investigador, daí a importância de os estudos – e seus resultados – serem “reprodutíveis” por outros investigadores, e isto inclui a psicologia científica, a qual também tem o cuidado de distinguir o placebo da acção “real” da terapêutica).

Mas é a preocupação do terapeuta que lida com o paciente. Quando saímos do Grupo para o Sujeito, a realidade muda. As variáveis físicas estão lá. E os estudos estatísticos continuam a ter uma importância cabal, mas os seus resultados têm de ser adaptados não só ao indivíduo, como a cada momento irrepetível, a cada instante fenoménico, da intervenção no sujeito (não se trata, aqui, somente, de desconjuntar a dinâmica de investigação nomotética da dinâmica idiográfica do “caso”, mas de distinguir a realidade médica fortemente bioquímica/mecanicista da realidade do terapeuta psico-físico inevitavelmente mais holística, com ou sem subjectividade, com ou sem placebo; se, saindo da caricatura, pensarmos no caso dos estudos transversais centrados na resultante, ainda assim se perde de vista parte do seu aspecto qualitativo, só pronunciável na realidade clínica; por outro lado, os estudos longitudinais permitem, várias vezes, controlar aspeitos globais, mas nem sempre duram o tempo necessário para medir adequadamente o efeito de terapêuticas “estruturais”, que é, comummente, subtil e dado a tergiversações de sentido e interpretação). E isto ganha ainda mais importância quando o modelo de trabalho é liberal e se foca no resultado. Ora, o resultado final é grandemente subjectivo, incluindo, portanto, o placebo, que integra a imediaticidade “positiva” do Ser.

A atitude “pós-moderna” opõe-se, muitas vezes, ao liberalismo, porque este modelo se articula confortavelmente com a ciência. Esta cria a saúde requerida à produtividade. Mas, nisso, também podíamos apontar o dedo às “terapêuticas”, que, ademais, propiciam o “bem-estar”, artifício da alienação (vide Marcuse). A disposição “pós-moderna” tem reactualizado a questão “espiritual”, mas com um pendor mais individualista. Num tempo em que o Espírito já se descobriu no Ego, muitos teimam em não reconhecê-lo nas suas próprias pessoas. Resistência que aumenta na directa proporção da arrogância científica. Os homens de ciência, proponentes do materialismo, irritam-se, sobremaneira, com estes “crédulos”; os “pós-modernos”, por sua vez, vêem neles a resultante de um mundo que perdeu a alma. Este mundo fáustico está feito com a indústria e com o poder das elites. Os “iluminados” são portadores da “boa nova”, aliás “velha nova”, perdendo, de todo, a noção. Tornam-se manietáveis, e o pior é que a sua espiritualidade não é Hegel ou Platão, mas, sim, o que pode ser designado de “auto-ajuda”. Se precisam de ajuda é porque estão desadaptados. Por isso, não aceitam o modelo dominante. E isto inclui muitos psicólogos, que, às tantas, se tornam salvadores (olvidando, porventura, que o “espírito” é corpo, e que o placebo é, talvez, muito do que fazem nas suas falsas “estruturações” psicológicas, o que, de mais a mais, não importa, porque, o placebo ganha o epíteto de vera intervenção; não valerá a compensação mais do que nada? Ou será isso outra ilusão? E isto estende-se à psicanálise, terreno cheio de armadilhas “relativístico-dogmáticas”; o Inconsciente é, desde sempre, um, muitas vezes, mal compreendido “espírito” idiossincrático, mandatário no sentido Inferior » Superior, é a suprema tentativa de materializar o “Subjectivo”, de construir um Espírito livre e reestruturador de Deus, não tendo, antes pelo contrário, os caracteres de ascese e de renúncia de outros modelos, clássicos e contemporâneos; a renúncia é uma compensação “moral” impartível, e que, à semelhança das outras compensações, aspira resgatar a Estrutura original da “caverna” culpabilizadora e superegóica). A felicidade é, actualmente, uma obsessão. Mas já nem a psicanálise, com tudo o que tem de “relativista”, cola, é preciso uma fórmula mais “consumista”. Assim, os pós-modernos tornam-se “liberais”, porque a sua obcecação com o corpo-mente se traduz em fortunas gastas em terapêuticas, Wellness, e uma horda de pregadores.

Isto já não é o antigo “Espírito”, é uma caricatura de espiritualidade. Mas vem mostrar que existem necessidades “subjectivas” que a medicina convencional nem sempre supre (e, suprindo, é facilmente demonizada, porque as suas soluções – por exemplo, medicamentosas – são consideradas inimigas do “espírito” ou, até, da transcendência, que é o mesmo que dizer que os “espiritualistas” consideram, por seu turno, muitas soluções “convencionais” uma ilusão, aliás, um placebo, uma compensação). Vem, ademais, mostrar que o factor “espiritual” continua na ordem do dia, mas, à semelhança do que acontecia no pretérito, se entrega a excessos fabulísticos que acabam por expressar um aspeito empírico. Aliás, nada que um Francis Bacon não pudesse exprimir, no tempo que esgrimia o moderno “método científico”. A função deste método junto do que é “humano” passa por trazer rigor, critério, “empírico” ao que pode conceder-se face à “imaginação” (Espinosa).

Mas o modelo “pós-moderno” tem, como dissemos, algo a oferecer. Ele vem recuperar a importância do “humano”. Esta “subjectividade” grita por ser ouvida, e, nisto, os terapeutas possuem um lugar de destaque. Lugar que pode dar origem a desmesuras, por trás de todos os terapeutas, mesmo os sérios, existe uma ameaça de exploração do paciente. Mas há pacientes que querem ser explorados. E, pior, os terapeutas que mais exploram são, comummente, os que precisam igualmente de ser explorados. O melhor terapeuta trata-se quando trata. De idêntico modo, os melhores analistas não escondem a sua neurose. O pior que pode acontecer é aumentar o nível de neurose, que é, a bem ver, uma maneira de perpetuar o acto “terapêutico”. Os melhores clientes sofrem mais da mente do que do corpo (no sentido estrito). E quando sofrem do corpo, é a mente a causadora. Se os mandamos para um psiquiatra eles limitam-se a mudar de terapeuta. Se os tratamos muito bem, eles são obrigados a lidar com um problema emocional que pretendem, de todo, evitar. Manter um tratamento “corpóreo” é uma forma de ir alimentando a ilusão. Bom para o terapeuta. Bom para o Sistema. Se ganham consciência “mental” da problemática, arriscam-se a entrar num caudal de compensações internas intermináveis. Tornam-se, assim, clientes do psicanalista, cuja função passa por eternizar a “interpretação”. É outro modo de ilusão. Porque, na mais avassaladora das hipóteses, quererá o paciente mudar o que o envolve. Ora, não seria mau de todo para muitos terapeutas. Um paciente que dá a volta à vida pode estragar a vida a muitos outros. Bem vemos que se traça, aqui, uma dialéctica, mas, para a compreender, é necessário “espírito”. A ciência moderna não é sensível ao tema, não entende que a própria História humana é um placebo gongórico.

A Saúde pode e deve ser compreendida globalmente, ela recruta os principais paradigmas da história da Filosofia. Mas também abre as portas ao relativismo. Se tentamos controlar todas as variáveis acabamos num estado de Caos. O controlo perfeito seria a saúde “absoluta”. Até que este exista, é preciso caucionar os dois modelos fundamentais: um “materialista”, que sonha com a estabilidade; outro, “espiritualista”, que se vê renascido. O modelo de investigação “estatístico-probabilística” medeia, em parte, os dois paradigmas, mas também mostra a limitação de cada um deles.

Se os estudos estatísticos apontam para determinada realidade, ela não é, de todo, explicada causalmente pelos primeiros. Sabemos que mesmo as terapêuticas “não convencionais” possuem estudos com resultados apreciáveis. Investigações de qualidade discutível, é claro, mas não é de todo “científico” desprezá-las. Os “cépticos” chegam, bastas vezes, a recusar-se a ler tais estudos, o que atesta um preconceito. Parcialmente explicável socialmente, o que dirime o seu lado “objectivo”. Mas um preconceito igualmente nos termos da própria base “científica”, “física”, da coisa. A grande substrução de cepticismo dos “cientificistas” reside menos nos estudos em si do que na viabilidade biofísica das terapêuticas em análise. Por exemplo, por não aceitarem as bases da homeopatia, é indiferente que manem centenas de estudos que atestem a sua eficácia. O seu preconceito é de raiz metodológica e conteudística, pouco importa a “resultante”. Se uma resultante é positiva, tal pode apontar para a importância de outras variáveis, mas também pode comprometer alguma base científica que falta descortinar. Mas o teor preliminar dessas “bases” foi devorado pela Comunidade Científica (o que é justificado pela urgência de regrar, institucionalizar, mitificar, o que é dado como imodificável). E para surgir uma revolução, ao jeito de Kuhn, é preciso um milagre (e, quando ele surge, récita de uma mutação sócio-cultural, nem sempre é justo). E isto são coisas que não podem, por ora, ser completamente resolvidas, mas a “guerra das terapêuticas” tem o seu quê de saudável. Ou talvez não, porque, frequentemente, os pacientes se vêem arrastados por um estado de caos, senão pelos egos dos profissionais. Não sabem, a certa altura, o que hão-de fazer, vão sendo chutados por um Sistema deficiente. Sistema que embuça a sua mediocridade de uma complexidão clínica e de raciocínio que raramente é racional, mas, para que isso possa ser apreendido, é indispensável gastar tempo com o paciente, e isto não implica, longe disso, realizar muitas sessões de tratamento ad aeternum; é preferível uma sessão individual, individuada, em que a avaliação e a intervenção são conexas, a não ser, claro, que o objectivo passe por uma sana alienação, tanto do paciente quanto do terapeuta, porque há modos de consciência que doem muito e não compensam.

Entretanto, nada obsta à existência de uma terapêutica que (re)concilie a maior evidência científica disponível com a maior evidência “subjectiva”. Se a primeira muitas vezes convida a um pouco criativo prescritivismo, a segunda não pode deixar de ser contida pelo rigor “materialista” adequado. Entre ambas, existe a pretensão de um trabalho dinâmico, dialéctico, fenoménico, que procure a plena Objectidade, e que não descure o processo heurístico. Porque, sem inventividade, não pode vigorar a motivação, nem o terapeuta quererá ser paciente do seu paciente. Porque, aquilo que muda constantemente precisa tanto da estabilidade do que garante a Ordem, o Princípio, quanto do movimento hermenêutico de adaptação à transformação psicofísica.

Considero que a Fisioterapia do futuro se assesta num lugar privilegiado para retorquir a esta solicitação quase algorítmica. E, no entanto, para mal dos nossos pecados, a Fisioterapia moderna encontra-se na pior das situações. Ainda sem a independência adequada, ela parece escravizada por um domínio médico prescritivista, que tem mais de poder do que de ciência. A própria ciência tem tiranizado a Fisioterapia, ao querer encerrar a intervenção criativa com regras e guidelines que só podem fazer sentido estatisticamente. Decerto que estas “normas” têm o intuito de abrigar o paciente da insipiência de muitos terapeutas, mas um trabalho robótico, um acto “significante”, não pode valer o “significado” de uma intervenção genuinamente compreensiva. Muitas vezes tenho dito que, se o terapeuta não pode ser “dialéctico”, mais vale não ser terapeuta. De facto, um trabalho dinâmico exige uma concentração especial, um esforço singular de acomodação à unicidade do paciente. É, talvez, mais fácil ser “piloto automático”. Não, decerto, para os criativos. Quiçá seja este um erro, uma doença, dos criativos, dos terapeutas “neuróticos”, que, às tantas, se põem a inventar o mundo. E o pior é que ainda se arriscam a despertar esse poder nos pacientes. Ninguém gosta dos criativos, dos engenhosos. O mundo moderno está feito para a economia do espírito. Mesmo o futuro fortemente algorotmizado aspira fender, de vez, o espírito. Mas, certamente, não terá a estaticidade do prescritivismo legalista, porque o Ser é dinâmico e se faz em cada momento (o que acarreta que o Significante futurável conterá elevada significação, na medida em que incluirá grande riqueza adaptativa; o futuro trará, com obviedade, a materialização de muito pensamento – e sentimento – do que, até agora, faria parte do mundo do “espírito” – sendo esta uma determinação “material” (vide o materialismo dialéctico), alvar, positiva, com um vértice de liberdade virtual e uma consequência equalizadora; se bem que, segundo o “utilitarismo”, o ponto de partida é o de um valor imparcial dado igualmente a cada um, vide Bentham e Mill, não obstante, o que é útil para o Colectivo poderá exigir um trabalho bem diverso do que pode ser entendido enquanto “terapia individual”, se bem que a estruturação do Ser implica, à partida, a sua pacificação na relação com o “outro” -, o que acarreta, também, a perda de alguma liberdade para errar, o erro é o veículo da mudança, a previsão do pensamento é, tal-qualmente, o controlo do mundo exterior, a sua previsão com um nível de erro menor, o que, de mais a mais, aleita outra Escala de criação subjectiva e outro mundo exterior, mais “pequeno”, onde tudo se repercute, e se volta a prever, a determinar, o que transparecia livre).

Um terapeuta igualmente dinâmico é uma raridade no presente. Será, identicamente, uma raridade no futuro. Mas, enquanto houver Fisioterapia “humana”, dificilmente matarão a minha inventividade. Tal como a ciência que a ceva. Ciência da physis e da psique. Presentemente, só a intervenção “liberal” tem tolerado aos fisioterapeutas tal actuação rebelde. Diria, até, que a verdadeira Fisioterapia só pode ser praticada marginalmente. Livre de códigos e prescrições (nutridos por motivos mais logísticos do que prático-fenoménicos), centrada no Todo, uma Fisioterapia destas, com preços praticáveis (adaptados, quiçá, à generosidade de cada um), tem de ser realizada de modo quase ilegal. Muitos já o fazem. Alguns, ajuntam-lhe as terapêuticas “não convencionais”. Vários terapeutas terminam por alimentar-se de uma força compulsória antagonista do Sistema. Como da modernidade, e da intrínseca ciência. Têm como aliados os inerentes pacientes, decepcionados com a crueza da medicina/Fisioterapia convencional. Obviamente, alguns terapeutas até acabam por se vender, o que faz com que não nos admiremos com a prédica mercantilista dos métodos de Fisioterapia. Quando o paciente e a Fisioterapia deveriam ser Uno, há quem a desmantele em métodos, técnicas, sistemas, paradigmas (com algumas vantagens internas, pedagógicas e epistémicas, de resto, a pluralidade tem a sua razão de ser, constituindo um degrau previdente de conhecimento unificador), e até a revista da “evidência” (alguma, relevante) que se ajeita ao que se aspira comercializar. Empresas de formação (por vezes, com boa intenção empreendedora) enriquecem à custa dos que caiem nesta armadilha (tomara que saiam dela enriquecidos). Muita informação não significa mais sabedoria, antes pelo contrário (se bem que poderá operar uma gravidade essencialmente parcelar, para além de concorrer para a segurança de quem intervenciona; de resto, o conteúdo, mesmo que comercializado – alavanca do Sistema -, pode solucionar várias dejecções específicas e/ou mais sincréticas, importa saber colher e cozinhar, o trabalho global evolve várias técnicas e processamentos que fazem sentido quando usados conjuntamente, em termos de raciocínio, mas, também, nos termos de uma imagem que poderá ser denunciadora da euforia empírica, placebetária, do terapeuta/paciente – se bem que o paradigma defensado pelo terapeuta/paciente pode depender de uma estrutura iniciática precisa, também ela mais “espiritual” ou “científica”, sendo habitual o agente/paciente contrapor ao modelo dominante -, não esquecer que ambos os agentes se amamentam imageticamente, bem como fantasmaticamente, num rol de achegamento e desaproximação, compensação e descompensação, dança que cruza múltiplas variáveis locais e à distância, empíricas, racionais e de carácter, e todas estas são uma só, acordando e adormecendo continuamente, revezando-se talvez, obtemperando o instante anterior, que já acatava a memória, acautelando o sequente, ao abrigo da destruição, porque toda a acção retém moralmente a estrutura, e um só elemento do exterior pode replicar a ameaça, para o sujeito dual). À guisa de tanta informação, anda o paciente cada vez mais longe de se encontrar. E o terapeuta também. Não admira que, depois, não se encontrem esses entre si. Falta a requerida “Síntese”. Mas o negócio acaba por matar o Ócio da aproximação (o que não invalida a possibilidade do desencontro potenciar o encontro parcial).

Assim como a ciência deve moderar o Espírito, também o Espírito deve moderar a ciência. E o Espírito inclui, é, a ínsita Ética, o Objecto da perseveração “conjunta”, harmónica, cujo intuito “útil” é, essencialmente, a felicidade, ou, pelo menos, o insofrimento. Estamos, provavelmente, a viver, a sofrer, o necessário para que um novo equilíbrio surja. O placebo é o “paliativo” obrigatório, o mecanismo com que podemos facilitar, abreviar, o insofrimento. Esta, claro, é a Ética da Vida. Porque o Espírito é, foi, igualmente, um exercício de mortificação das forças agónicas do corpo. Mas, para que a morte surja luciferina, é preciso que o corpo seja esgotado. O “Espírito” puro é para os sãos de espírito. Até lá, há que dialogar com o corpo-mente, há que medicá-lo, se for imprescindível, só mais tarde vem a meditação. Que fazer perante os que desejam antecipar o processo, sem que compreendam que o seu “bem-estar” não é compatível com o genuíno Espírito? Mas isto é dizer, em suma, que a mente não é o Espírito, e que o Espírito não se sente, Ele É tão-só. E, não obstante, os falsos espiritualistas andam por aí, placebetizados, a acharem que são os outros os “iludidos”. Porque a ciência é a nova religião. E, no entanto, se o placebo é, ainda assim, “Espírito”, venha de lá tal ilusão. Com obviedade, poucos são os que admitem tal artifício. Naturalmente, todos tendem para a sua liberdade. Se o placebo for totalmente compensador, o Ser acaba mesmo livre, livre de se sentir aprisionado, nem que seja por um ápice. Não é a liberdade da doença da vida (ou talvez seja, se ativermos as sensações como a consequente do Espírito, de qualquer forma, essas só são consideradas “matéria” para uma trupe de materialistas, e conjuntamente por espiritualistas, mas isto é tudo irrelevante, porque a moral depende, mormente, de um estado de in-consciência). Porque a cura perfeita é a curiosidade fendida de um Universo inteiramente recuado. Na memória profunda, intemporal, teremos a única Saúde absoluta. Que é não haver o que curar.


Luís Coelho

Fisioterapeuta e escritor