JOÃO PEREIRA DE MATOS
Sou orbicular fechado. Um deus do meu umbigo. O meu símbolo é a rosa pois, de tão pequeno e modesto, sou secreto. Mas do meu cerne emana uma luz que ilumina todas as coisas. Pelo menos, aquelas que querem ser iluminadas. O que não é sempre nem por toda a gente. Há, na verdade, muitos cegos porque o querem ser. A ignorância campeia à solta, livre e louca, negando a virtude de escutar, a beleza de saber, a curiosidade de percorrer os caminhos que, na minha benevolência, pacientemente, construo seguindo uma sacra geometria cujas leis só um deus pode compreender. Assim vou vivendo, desde a mais ténue alvorada até à noite, de tão cerrada e escura que é às apalpadelas que prossigo, nas circunvoluções que são como um cérebro, cheias de passagens secretas, plenas de falsas simetrias, mas também de contrastes, de variedade e de monotonia, tal qual o mundo. Espelho mais-que-perfeito desse orbe que tão-bem conheceis. E por quê? Porque é um condensado dele, um resumo, um símbolo e um desafio. Desenganem-se. Quem não descobrir a cifra deste dédalo perecerá, povoado como está com toda a sorte de perigos, armadilhas astuciosas, imaginativas e letais, que não é por acaso que a minha intuição é divina e também a minha criatividade e esmero-me nesta única actividade e ofício de parir labirintos com o mesmo afinco da aranha, a mesma manha da serpente. São Minotauros aos centos com todas as variações: corpo de homem e cabeça de touro, com dois cornos, com um corno, com três cornos, com muitos cornos, uma miríade em coroa disforme, corpo de touro e cabeça de homem, um ser possante que desfaz a vítima, uma delicada criatura que atrai e condena pelo engodo e sedução, um Minotauro gordo, um Minotauro magro, um Minotauro alto, um Minotauro baixo, até um Minotauro minúsculo que devora por dentro. E lá estão palácios retorcidos em câmaras e antecâmaras, quartos e alcovas, escadas e escadarias, degraus que sobem e descem para lugar algum, um cul-de-sac recoberto de espelhos para multiplicar o absurdo e demonstrar a ironia. Há, ainda, enormes plainos a perder de vista, pois se se perde a vista também as gentes se perdem neles, que essa é a função dos labirintos e, ademais, um ermo enorme é apenas mais um labirinto só que sem paredes nem peias. Ou caminhos. E também há anfisbenas aramadas de aguçadas dentuças, crocodilos, salamandras piroclásticas que descansam na pedra ardente, viúvas-negras tóxicas cosidas às sombras, enfim, estacas em buracos, abismos, e precipícios. Não quero, no entanto, que digam que sou cruel. Também ofereço frescas fontes e ninfas nelas, salões atapetados, veludos carmins, almofadas e saunas. Faunos tocam cítara ao entardecer. Há só que os descobrir.
É essa a excelência de um labirinto: promover uma ordem férrea naquilo que, na intempestiva natureza, é arbitrário, para demonstrar a todos que a clássica ordem também pode coexistir num mundo selvagem. Não há um caos estúpido, mas uma via e esta tem uma cifra, ainda que uma e outra sejam produto da mente convoluta de um deus enlouquecido.
Como, perguntarão, com a minha diminuta estatura pude erguer esta vasta arquitectura de perdição, senão com a minha boca tenaz, armada de dentes indestrutíveis e de unhas inquebráveis, munido de obsessiva sanha, dispondo, ademais, do vagar indefinidamente extenso da eternidade? É por isso, aliás, que a obra se destaca pela perfeição do recorte, pois cada entalhe, cada desenho na dura rocha tem um quase microscópico cuidado no seu pormenor, afinal, a escala que me é própria e natural e se alcanço a desmesura é por acumulação compulsiva do ínfimo, porque nada há de suficientemente pequeno que, multiplicado por grã dilatado tempo, não produza grandeza, até de ordem cósmica, se preciso for.
E, no entanto, perdi-me. Sim, sim. Tenho de vos confessar. Perdi-me no meu próprio labirinto. Nem sei como isso aconteceu. Talvez por ser velho, talvez por ser, em excesso, laborioso e ter feito tanto, na vertigem da desmesura do meu dédalo vasto, enorme e complexo e vário, cuja diversidade abarca e multiplica todas as coisas, ou então, mais prosaicamente, apenas pelo cansaço extremo de nunca parar, nem um momento de descanso, umas férias, sempre em frente ou se para trás ando é no afã de refinar uma galeria, corrigir um pormenor, ajeitar aquele detalhe que faça brilhar o conjunto de uma estepe ampla. Podia, por exemplo, contemplar, deleitado, o estrépito dos heróis soberbos que, de vez em quando, entram nos meus domínios dispostos a cumprir os seus feitos de mirabilia. Sempre era uma distração. Mal não faria. Mas, não. Embrenhado no trabalho. Sempre de cabeça baixa, não só não reparo neles como eles não notam que aí estou eu, humilde, ao seu lado. E se se perdessem bastaria perguntarem-me, acaso eu soubesse, como navegar e sair daqui, coisa que, como se viu, para minha vergonha, não sei. Não sou, bem vedes, uma Ariadne, que tem uma solução simples e miraculosa. Isso foi antes. Quando a minha construção era mais pequena e simples e que se deixava percorrer sem maiores incidentes do que a existência de um único monstro desmiolado que logo soçobrou ante o escudo e a espada. Agora as coisas são diferentes. Um mero fio enredar-se-ia nas muitas complicações que, como na mais fina máquina horológica, sobrepus à construção original e assim quebrar-se-ia, destruindo a falsa confiança prometida pelo estratagema. Agora todos se perdem, até eu. Alguns talvez se salvem porque acima de todos estão a Fortuna ou as Parcas que tecem como querem, ou como lhes mandam, a trama que nos há-de guiar e o acaso ou a ordem que há nela dirá que talvez se chegue a bom-porto.
Mais difícil seria dizer-vos porque persisto. Ou como comecei nisto. Quanto à primeira questão, a verdade é que não sei fazer mais nada e se parasse, se exigisse uma bem merecida reforma, o que faria depois? Um deus não perece ou acaba, é para sempre, se não erguesse estes intrincados novelos, o que faria? Restar ocioso não é de minha natureza, até os deuses têm o seu propósito e o meu é este, confundir mortais e imortais, aqueles que vivem debaixo do Sol e no alto empíreo, glosar a ordem, multiplicar o caos, misturá-los e fazer crer que tudo tem um desenho mesmo que eu já não saiba qual é. Depois, ainda me lembro do fascínio do incipiente traçado original, quando eu e o mundo éramos jovens e comecei a elaborar o emaranhado de pequenos cubículos, todos iguais, mas que se repetiam com pequenas variações até que, passado muito tempo, conforme foi crescendo e ganhando vigor também o arrojo das salas, dos corredores, das passagens e da sua disposição foram adquirindo um outro esplendor, a ponto de parecer que aquela não era obra da minúscula divindade que sou, mas de um exército de gigantes que, com força titânica, tinham moldado a pedra ao seu capricho. Por essa altura já era tarde demais. Tinha encontrado a minha vocação, que cumpri com ardor até hoje, que cumprirei sempre, não importam as vicissitudes e o cansaço, a luta desigual que mesmo um deus tem de travar com o próprio tempo, senhor de todos, algoz cruel, besta inútil, devoradora insaciável e bruta. Ademais, apesar das queixas, é prazentoso o meu trabalho. Constantemente sou a imaginar novas adendas, correções e reformulações a este intricado complexo, de tal modo que mesmo o que foi edificado há muitos séculos ganha toda uma outra vivacidade. Quem aqui entre, e são muitos, pode ter a certeza de poder vir a encontrar o frescor da novidade, no terror e no deleite.
Lembro-me, como se fosse ontem, do primeiro desgraçado que, inadvertidamente, por aqui passou. Na realidade, um rapaz possante, corajoso, um verdadeiro herói. Ainda assim ou talvez por isso, tive pena dele e decidi avisá-lo dos perigos em que iria incorrer. Nesse tempo, o mundo era jovem e um labirinto era conceito novo e sem um alerta, um conselho amigo, o incauto, não teria qualquer hipótese. Assim, aproximei-me. Ele, grande e poderoso, olhou incrédulo para a minha figura, não podendo acreditar que eu era o autor daquela legião de vastas galerias que se estendiam para todos os lados, a perder de vista, com lavores finamente talhados nas paredes de mármore polido, nas brônzeas colunas, nos tectos pintados onde ninfas e faunos se multiplicavam em fantasias bucólicas e amores escandalosos embora, nesse tempo, ainda se não tivesse inventado o pudor.
Apurou o olhar, um tanto zombeteiro, o que lhe não augurava nada de bom. Não liguei. Era natural a sua ingenuidade e bravata, compreensível a temeridade. Foi antes mesmo de eu ter inspirado Dédalo, antes de Ariadne ter aconselhado o fio que era cifra e, por isso, não lhe dei tal solução que, aliás, como vos disse, só no mito resulta, não na crua realidade. O meu alerta foi para que fugisse. Que desse meia-volta, ainda estava perto da entrada, ainda ia a tempo. E, pobre ignara criatura, tomou, malgrado a minha sinceridade, estas palavras como um desafio e avançou, decidido. Bem cedo encontrou o seu fim, jazendo até hoje na parte mais antiga da construção, agora raramente visitada, esquecido por todos excepto por mim. Foi assim que o primeiro visitante da obra que é a razão da vida minha foi a sua primeira vítima. Foi assim que o orgulho no prodígio de tudo quanto ergui ficou logo manchado pelo remorso da crueldade amalgamada à argamassa das próprias fundações.
Todavia, depois desse primeiro incidente, o fascínio já era total. Soube, então como sei hoje, que na minha existência imortal dedicar-me-ia à laboriosa manufactura deste o mais ambicioso monumento, infinitamente extenso, infinitamente complexo, infinitamente rico, a ponto de um dia poder vir a usurpar a própria Criação se, nessa altura, Criação ainda houver. Até os demais deuses deste prodigioso panteão me respeitam e vivem admirados com tudo o que consegui, embora, o mais das vezes, sintam a mesma perplexidade geral que questiona o porquê do meu afã. Por que não gozar dos privilégios da minha estirpe? Por que não participar dos banquetes excelentes para os quais sou convidado e de que nunca participo para não negligenciar o trabalho?
Sempre ocupado, mal tenho tempo para reflectir, mesmo para escrever estas linhas.
O dever vem primeiro, o dever vem sempre primeiro, ainda que seja auto-imposto. Até certo ponto, esta compulsão é um peso, uma servidão que me induziu a ser escravo da obsessão, um escravo cujo único mestre é o trabalho, construindo em incessante multiplicação cumulativa, barroca, demencial e espúria.
Um deus também se apaixona, também tem esse direito e eu também tive os meus amores e dissabores. Um dia, já lá vão uns séculos, reparei numa beleza de pés de alabastro que andava perdida no labirinto, exposta a toda a sorte de perigos que quem deambula por aqui está sujeito e que vós, por esta altura, já tão bem conheceis. Mal reparou em mim, mas eu tentei. Tentei chamar-lhe a atenção, mas, sobretudo, tentei impedir que soçobrasse nas múltiplas armadilhas que eu próprio tinha semeado. Por isso, antecipei-me ao seu caminho e trabalhando com mais afinco do que nunca pus-me a refazer o labirinto, suavizando-o. Torna-lo-ia seguro para ela, ainda que mal notasse a minha presença e o meu afecto crescente. Foi, todavia, inútil. Quis a sua fragilidade, a crueldade da aziaga Fortuna que pode mais do que todos, ou a minha inépcia para antecipar o perigo, que essa paixão tão repentina encontrasse um fim abrupto, talvez inevitável, na tragédia que a cada esquina espreita os frequentadores deste domínio. Sucumbiu sem que lhe soubesse o nome, se era nobre ou da plebe, porque aqui tinha entrado e o que esperava encontrar. Dela mais nada soube, mas nunca a esqueci e ainda que o labirinto me tenha, porventura, custado a felicidade assim como me consome as horas, nem por isso desisti dele, antes pelo contrário: é, ao mesmo tempo, a fonte dos dissabores e a panaceia para todos os males, angústias, perplexidades e inquietações.
Largamente ignorado, um deus sem fiéis, excepto, há milénios, por uma pequena seita de adoradores que viu em mim o símbolo do universo em expansão, esta obra como cérebro cósmico que, quando estiver completo, determinará, finalmente e para todos os tempos, vindouros e pregressos e com carácter permanente, a razão da existência mesma de tudo quanto vedes, de quanto existe ou existiu ou venha a existir, quer isso não mude e tenha uma essência imperecível, quer seja um rio de variedade mutante, sempre nova, para deslumbre de todos. Sim, o Labirinto, uma grande máquina de entender, de atribuir sentido onde ele não há, de apaziguar a angústia, de acalentar a esperança, de guardar a memória da eternidade, de afastar as forças deletérias do olvido que é o vero arauto da morte, enfim derrotada no seu próprio jogo, já há muito que vem oprimindo, desde sempre vem ceifando, capturando cada um nas garras do desespero mais negro e cruel e torpe e triste e funéreo e desolador e derradeiro.
Não mais. Pois se puder guardar memória que não pereça nesse desmesurado cérebro, que é como a face ampliada deste vosso humílimo servidor, laborioso e negligenciável, mas seguro de poder vir a destronar essa tenebrosa Senhora que se julga indestrutível. Ela verá, talvez, que também ela se perderá neste infindável dédalo que lhe preparei, uma teia já não de mármores e argamassa e cal, mas de teor metafísico, num plano etéreo e diáfano onde essa da Gadanha se move à-vontade, até se vir a encontrar, desorientada, no sem-número de antecâmaras, corredores e galerias onde deambulará perdida e desejará morrer e não o pode porque, na verdade, de tudo o que existe, só a morte não pode morrer e terei eu vencido e serei liberto deste meu vício, deste meu peso, deste meu prazer, deste meu ofício, deste meu destino.
Se, ao menos, soubesse onde estou e se, também eu, me não tivesse perdido.