O cordeiro cego

 

Maria Estela Guedes

 

“Era uma vez eu e um menino. Se o amava? Não. Pertenço àquela classe de pessoas a que já chamei ‘raça de exploradores’. O amor é sentimento demasiado desgastante para órfãos de mãe. (…)

Nos meninos busco apenas vítimas para o meu ajuste de contas com a existência. Dão-me uma espécie de inocência, como dizer? – de estado de graça. Esses corpos ainda ambíguos, quase andróginos, possuem o elixir da longa vida. Atrai-me a sua frescura, alimenta-me a paixão de não envelhecer.

Esta criança. Olhai. Toco-lhe os ombros – lisos como seixinhos da praia: as coxas delicadas – vasos de porcelana –, acessíveis à minha sede de juventude. Nem sequer tenho grande prazer sensual, certos mecanismos corporais chegam às vezes a provocar-me náuseas, mas é indispensável cultivar a poética da perversidade. Essa sim, inunda-me. A leitura assídua de biografias levou-me à conclusão de ser a marca dos espíritos superiores. Nada mais belo que um poeta maldito frente ao espelho da sua obscuridade. Não me vejo nele, porém. Por isso preciso de criaturas muito jovens que se remirem, a pureza da sua imagem passa a ser a minha imagem. (…) Cordeiros brandos que sacrifico à glorificação de frases ditas tão obscuramente que a vossa inteligência não as entende. (…)

Este menino perdeu-se nos corredores do inferno, a sua cabeça bruxuleia de tão tenra. Tomo-a entre as mãos sideralmente latas, despedaço-a entre os dedos, devagar. Enquanto lhe trituro os ossos com o rigor da metáfora corporal, sorrio abstractamente. O meu génio é negro, sem fundo. Esta criança solta vagidos de dor. Então afianço-lhe, com extrema doçura: eu gosto de ti.

À volta deste menino cego há tremores de lua, desperta pelo ruído da cera vazante. Debate-se no seu sono cerrado, ameaçado por pantera que avança. Esta criança dorme enterrada no meio dos meus vocabulários. É preciso embalar-lhe o sono, cantar-lhe uma balada antiga que a sepulte para sempre no centro dos espelhos.

Enquanto dorme falo-lhe de poesia. A poesia. A minha eternidade e salvação. E a criança aprofunda-se no seu sonho arcaico, ouve e fala durante o sono. Levanta-se para escrever frases magníficas, luxuosas, que me tornam transcendente. Faz-me falta o seu sonambulismo que clarifica tudo, se bem que só de um lado. É um facho de luz, até a mim cega o seu reverbero. Não posso permitir que veja o que está no outro quarto. Quando sonha, as minhas necrópoles crescem sobre capitéis de azul e madrepérola.

Acordará um dia? Se eu vir que acorda, retiro-me nas pontas dos pés, como se nada se tivesse passado. Já lhe expliquei, de resto, que não ligo importância nenhuma a estas coisas.

Para minha grandeza toda a massa de carne é alimento gratuito, deveis-me a vossa devoção. E é tão lindo uma criança cega, com aquela rosácea de sangue na testa, aberta para me incensar. Toda a minha vida lhe agradecerei a generosidade, a pedra filosofal.

Se conta a alguém o que se passou? Que dirão os meus amigos? E os inimigos? Corrupção? De maiores? Disparate, eu não ligo importância nenhuma a essas coisas. Aventuras passageiras, que não deixam rasto. Meras frequentações clandestinas.

Se acorda? Se este menino que percorreu inteira a minha treva sai dos seus lagos de penumbra para me amaldiçoar? Gosto de ti, disse-lhe com doçura, contemplando o meu membro, que ele ergueu um dia numa custódia pousada sobre aurora boreal. Esta criança parece que deixou de acreditar na formosura das minhas palavras. Por baixo da aurora boreal é só trampa o que vê, poços de talha dourada com trampa.

(…) A arrogância traiu-me (…). Talvez não devesse desprezá-la tanto, pode ter coração. O poder dos vencidos, oh, o poder dos vencidos. Este animalzinho não suporta a humilhação. Creio que é preciso tratar as criaturas com alguma delicadeza. E esta, então, que tem nervos sensíveis como antenas de filigrana. Está a erguer-se do seu sono e a pegar no amor para o virar contra mim. Parece um grito, esta pessoa. (…)

(…) Esta criança arde no seu fulgor de salamandra, a cabeça aberta em duas numa reflexão crua. Vai cozer-me. Em vinagre e vidro moído. Autoduplica-se, cresce na sua cegueira selenita, transporta todos os meus venenos reais.

Que pode querer de mim? Deu-me as topografias da paixão, a devoção, as palavras hiperbóreas, desobscureceu-me todo um lado. Sois testemunhas de que esta criatura me deu tudo o que tinha. (…) Que mais te posso dar? Dei-lhe autorização para depor a meus pés o ouro, o incenso, a mirra. Nada mais tenho comigo. De resto, não ligo importância nenhuma a estas coisas.

Sinto uma ferida posta de pé em cima do ombro. Sacudo-a. Diz que sou feio, sujo por dentro, assegura esta criatura que é uma verdadeira chaga, uma chaga incessante, fractura de baixo acima. Está fria, lunática, e sibila: toda a minha vida mentiste.

Esta, esta é ela: balança para meu pesar.

Este menino começa a tornar-se monstruoso. Porque não se vinga noutros, que é o que eu faço? Pegue no arco e na flecha, vá à caça. (…) Esta criatura tem poderes com que eu não contava.

Tudo parecia ir bem enquanto a obra se gerava. No meio do seu sonambulismo crescia o meu retrato. Belíssima fotografia. A cumplicidade, a discussão dos mitos. Corrigi-lhe as vírgulas, os ‘comos’, os ‘ques’. Muito boa aluna. Não rasguei todas as provas, os exercícios da paixão. Onde, por prudência, não ass(ass)inei o nome, sobra a caligrafia. Andou a reler tudo, a mostrar aos amigos. Só lhe falta fazer a cobertura jornalística. Estas crianças despertas são uma chatice. E eu que não tenho feitio nenhum para ser pai. E depois, não será um menino bem crescido? Envenenou-se com as minhas metáforas. Serei responsável? Que a meti deliberadamente num castelo de mentiras, afirma. Oh, calcule-se, enganar a coitada.

(…) Que hoje esteja anojado, amanhã lhe passará. Sabedorias do Coelho. Mas não lhe passou o nojo, ao da Castro. Teoremas cardiovasculares onde sempre meti água. Talvez queira trincar-me o coração. Não. O problema não é esse. Pior é estragar-me a foto, o arranjinho mítico. Nisto de engates há sempre o que fica por cima e o que fica por baixo. Ficava por baixo, calava-se. Dor de chifre qualquer um tem, e é orgulhoso bastante para não dar parte de fraco. (…) Não se conforma. (…) Deu à luz uma pequena monstruosidade, informa a criatura. Uma bela arquitectura de falsidades. Que a não deixei mostrar a realidade dos crimes, por isso cometeu um crime, continua a criatura. E não será isso a poesia? Um crime? Um jogo de espelhos? Esteve quantas vezes à porta da verdade, não a abriu porque não quis. É capaz de insinuar que a impedi, por causa da reclusão. Teria eu de lhe dar as chaves? Não me interessava que abrissem certas portas, dei-lhe de boa vontade as chaves da minha conveniência. As chaves cegas. (…) Estou inocente do que não viu, não sou responsável pela sua cegueira.

O pior é o mito, a altura. Sofro de vertigens, pode tirar-me o pedestal de sob os pés. Agora, que desperta, não descansará enquanto não abrir as portas clandestinas. Mostrará as crianças, as mulheres, a carnificina. Magia branca, angelismo? É bonito, tem elevação. O carne vale, o travesti. Gostei muito, até indiquei bibliografia. (…) Pensa que só quis a fotografia. Pensa mal, ainda há pouco lha devolvi. E não pode esquecer que pretendi impedir a sua revelação. Num gesto patético, comovedor. Desta manobra, analisa friamente o resultado: tive a confirmação de que a obra saía. Conclui que eu só quis essa informação. Teatro, escreve a criança. Faz tudo parte do poema, um arzinho de folclore, ressoam vozes estrangeiras. Devia tê-lo aguentado um pouco mais, ao menos até se esquecer do que fez. Meteu-se tanta gente de permeio – contra a minha vontade, afianço-vos –, e o meu receio era que nos soubessem juntos. Que haviam de pensar? Que se tratava de uma obra de amor, sugere a criatura. (…) Esta criatura é uma chaga, nem a obscuridade dos pensamentos me deixa em paz. É capaz de se liquidar só para destruir o meu retrato. Que é dela, afinal. Mas o retrato dela convinha que fosse o meu. Espelhos, acho que fui caçado nos meus próprios temas, as armadilhas para repasto analfabeto. Talvez não devesse ter-lhe voltado as costas tão ostensivamente. Eu era o seu mito, cultivei-o no seu jardim. E um mito daqueles só se aguenta com registo criminal sem mácula.

Também, diga-se, nunca imaginei que lhe viessem a dar tanto poder. E tão depressa. Esforça-se por o ganhar, bem vejo; não perde uma oportunidade de aumentar a força, cresce tão rapidamente a criatura. Não se distrai pelo caminho, aprendeu bem a lição da minha usura. (…)

(…) Sim, sempre mandou recado antes de abrir fogo. Não li os últimos avisos, por talvez intimamente preferir a cobertura jornalística. O que a não afecta, é ponto assente que levará o desobscurecimento até ao fim dos seus dias. É contra Deus que estou voltado, respondeu impávido o menino. Eis o que me respondeu este cordeiro como criança mansa. Questão edipiana, o meu espelho. E eu dei-a à luz, não é verdade? Todos vós bem vistes que cresceu montado na minha serpente. Isto é realmente uma chatice, meterem-se os filhos pelo meio dos engates. E eu que não ligo importância nenhuma a estas coisas.

Encandeei-a com os mistérios órficos, obedecia em tudo. Descalça, repito. Sem ousar manter palavras que me desagradassem. (…)

Que quem atravessa os corredores do inferno, escrevi um dia, chega ao fim e só pode pronunciar um nome: merda. Estava cega e surda, encostada à porta que se recusou a abrir. Agora, que deu a volta ao labirinto, só pode pronunciar um nome. O meu. Merda. Era preferível ter continuado cega e surda, ninguém precisava de saber como me chamo.

(…) Peguei no meu corpo e disse-lhe: toma e come, isto é a transcendência. E ela comeu, sem saber que estava a ser comida. Um pedaço de carne entre as presas de um felídeo.

(…) Esta criança está apaixonada por mim. Sabe tudo do meu carnaval: a imanência estrita, os hábitos tróficos, a baixeza moral.

Lava-se escrupulosamente. Estende uma toalha branca sobre o altar. Empunha contra mim o seu amor, punhal de obsidiana. Esta criança altiva e fria está pronta para me imolar”.


Maria Estela Guedes