O complexo de Lúcifer

JOSÉ FERNANDO TAVARES
Breve nota de leitura sobre O complexo de Lúcifer de Maria José Vera


        O Complexo de Lúcifer é uma abordagem literária à condição existencial do homem contemporâneo. Embora se trate de um texto breve, escrito sob a forma ficcional de uma confissão intimista, não deixa de questionar alguns aspetos fundamentais de uma condição de vida que, não obstante a mudança de século e de milénio, continua a manter características idênticas às do passado histórico, próximo ou distante. A existência de um daimon, ou demónio interior, no seio do espírito humano é um dos temas mais antigos da história da humanidade e tão eterno quanto o tema do amor e suas variantes, ou motivos. Já Sócrates, através de Platão, falava nesse «demónio interior» que o conduzia à reflexão, trazendo à liça, com os seus discípulos, todas as inquietações que assolavam a sua condição de homem entre os homens, inquietações que o levaram a escolher a morte como forma de dignificação da própria vida, gesto que já não poderá confundir-se com o do homem comum, que encara com benevolência a sua condição luciferina.

Entre essas inquietações, já experimentadas pelo homem da Antiguidade, as quais tendem a prolongar-se no tempo presente, contam-se a influência da superstição na vida quotidiana, sentimento resgatado a um passado medieval que tende a permanecer; a crença no irracional; a insegurança afetiva e a trágica solidão; a incompreensão do Outro; a frustração económica; a escravatura tecnológica; o medo perante o desconhecido e, acima de tudo, a intolerância da morte.

Estes aspetos transformam o homem contemporâneo num anjo caído, a nova expressão de um Sísifo dilacerado pelas garras do grifo da dor, ou de um Prometeu perpetuamente condenado a permanecer nos abismos obscuros da alma, aqueles que se contrapõem à luminescência espiritual, essa luz do conhecimento que ele próprio, supostamente, havia concedido à humanidade para a salvar da sua condição obscura.

Assim, da desejada condição da felicidade apenas é reconhecível no homem do presente uma dramática condição luciferina a qual continua a transportar dentro de si como herança de um passado castigador e inexorável.

O narrador que aqui se confessa, pondo a nu a sua alma dilacerada, a sua íntima decadência, representa o paradigma dessa consciência luciferina, da qual dificilmente o homem contemporâneo poderá libertar-se. Este texto constitui uma confissão lúcida e desassombrada, sendo também um grito de alerta para a obsidiante névoa da loucura que agoniza e compromete o destino da humanidade e da sua história.

Na segunda parte deste livro depara-se o leitor com dois ensaios sobre a prática da tauromaquia, escritos num intervalo de vinte anos. Constituem estes dois ensaios o prolongamento da reflexão sobre o lugar de Lúcifer na vida do homem contemporâneo através da observação de uma prática profana e ritualista personificada na fiesta taurina de tradição hispânica. O espetáculo simbólico da fiesta, enquanto representação arcaica de sentimentos de paixão e de ódio, conduzidos ao mais extremo limite do paroxismo, constitui um sinal da presença de Lúcifer no mundo moderno e contemporâneo, a inquietante presença de uma sombra do passado que atravessa os séculos e chega ao nosso tempo, incólume, espalhando e louvando a perfídia e a barbárie.


José Fernando Tavares (Portugal). Ensaísta e crítico literário.