O campo baldio lilás: primeiras notas sobre a literatura de Leila Tabosa

 

 

 

 

 

 

 

 

SEBASTIÃO MARQUES CARDOSO


Sebastião Marques Cardoso (1974), professor universitário, pesquisador e crítico literário. Doutor em Teoria e História Literária (UNICAMP – Brasil). Docente do Departamento de Letras Estrangeiras (DLE), do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) e do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem (PPCL), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Desde 2020, presidente e sócio fundador da PODES – Associação de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais no Ensino, na Cultura e nas Literaturas Sul-Sul. Membro da Rede Internacional de Pesquisadores de Literatura Comparada (REDILIC), da Faculdade de Humanidades e Educação, da Universidade de Los Andes, em Mérida – Venezuela. Foi Leitor brasileiro em Guiné-Bissau, pelo MRE/CAPES, no ano de 2009, e assessor científico da Universidade Lusófona da Guiné (ULG, antes Universidade Amílcar Cabral). Foi, em 2023, professor visitante na Universidade dos Andes (ULA), Mérida, Venezuela (Doctorado en Letras, del Instituto de Investigaciones Literarias Gonzalo Picón Febres de la Facultad de Humanidades y Educación). Autor dos livros Oswald de Andrade: anti-heroísmo, literatura e crítica (Curitiba, Editora CRV, 2010), João do Rio: espaço, técnica e imaginação literária (Curitiba, Editora CRV, 2011) e outros. E-mail: sebastiaomarques@uol.com.br
Foto: https://sigaa.uern.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=6103


Para Paula Bianchi

 Ela nasceu lilás & outras mulheres, recentemente publicado pela Editora Podes – Mossoró, RN, em 2024, surge como suplemento à literatura escrita por mulheres sobretudo daquelas escritoras nascidas na década de 70 do século passado. A autora Leila Maria de Araujo Tabosa, doravante Leila Tabosa, nasceu em Fortaleza, capital do Ceará, no ano de 1978. Teve infância e adolescência marcadas pela vulnerabilidade na periferia de Fortaleza e pela ausência física da mãe, que, no ano de 1985, foi à capital de São Paulo em busca de melhores condições de vida, deixando a filha sob o cuidado de avó natural e da avó afetiva, bem como sob apoio de tias e madrinhas. O pai, fisicamente próximo, mas retraído e alcoólatra, se insere também neste mosaico familiar de Leila Tabosa. Do relacionamento amancebado do pai, mestre de obras, com a mãe, que foi operária, não houve outros descendentes, e a relação entre os dois, enquanto juntos na primeira infância da escritora, foi caracterizada, preponderantemente, pelo contexto da violência doméstica, física e simbólica.

Contudo, residente no bairro Antônio Bezerra, antes bairro Barro Vermelho, Leila Tabosa experimenta também a solidariedade e a amizade de muitos e, na escola, se destaca como estudante talentosa nas artes, nas danças, no teatro e na literatura. É deste cenário de (des)esperança que a maior parte dos textos de Ela nasceu lilás & outras mulheres faz referência. Partindo do corpo-experiência de si, a autora reconstrói por meio de acréscimos e ficções enredos marcados pela memória, por abandonos, por medos, por violências e, no seu oposto, pela esperança. Sobrevivente de seu meio, Leila Tabosa, como autora, deixa o bairro cearense no final da adolescência, conhece o Teatro Oficina em São Paulo, termina o ensino médio pelo supletivo, volta ao residir no nordeste brasileiro e migra para o RN, mas agora na cidade do Natal, onde conclui o ensino superior, o mestrado e o doutorado em Letras por uma universidade pública brasileira. Atualmente, Leila Tabosa é docente pesquisadora na área de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN – instituição na qual exerce também atividades ligadas ao teatro, e, na vida social e política, se considera uma pessoa engajada sobretudo na transformação social, ideológica e cultural das mulheres. Com habitação fixa em Mossoró, RN, Leila, reconhecida publicamente como cidadã mossoroense a partir do presente ano, também ama os gatos.

A obra Ela nasceu lilás & outras mulheres traz um conjunto de 16 textos ficcionais curtos que têm, como pano de fundo, vários cenários onde as mulheres aparecem em situações extremas de violência nas quais esses corpos, subalternizados, são postos em evidência diante de escaladas de terror, de abusos e de abandonos. Por outro lado, a maior parte dos textos presentes no livro é conduzida e amparada por narradoras-mulheres ternas e solidárias, ora por mulheres-testemunhas ora por mulheres-protagonistas, que, ao fim e ao cabo, apontam tanto para um caminho redentor, de afeto e de justiça às mulheres quanto à denúncia e à conscientização das mulheres-leitoras e, por extensão, do público em geral às variadas formas de violências pelas quais as mulheres pobres nordestinas experimentaram. Presas às condições insalubres existentes na periferia de uma grande cidade nordestina, com destaque sobretudo à violência de gênero, o livro de Leila Tabosa traz à tona as vozes de muitas mulheres invisibilizadas, fraturadas e esquecidas. Esse sucesso narrativo foi, a nosso ver, resultado da perspectiva de gênero tão muito bem explorada, através de suas narradoras ficcionais. Com raríssimas exceções, a voz narrativa em Leila Tabosa se impõe por uma narradora que constrói o enredo a partir de si mesma, atestando o lugar de fala, bem como a reivindicação ao direito à fala.

Uma geração de escritoras latino-americanas, no século XXI, pode ter em comum essa preocupação em problematizar, no presente, a representação de sujeitos numa territorialidade que não é vista nem pela perspectiva dos universalismos, de pressupostos claramente ocidentais, nem pelos particularismos, de pressupostos ideológicos ligados à ideia de nacionalidade. No espaço da (pós)colonialidade do nosso século, dois campos de representação foram (e são) constitutivos da herança literária num jogo de binarismos que tende a se perpetuar. Contudo, existe uma zona “gris” (cinza), onde a representação do sujeito não é capturada. Nesse local físico e também simbólico do social e da subjetividade, da cultura e da ideologia, esses sujeitos, desinvestidos de identidade, os subalternos para Spivak (2010; 2019; 2020), não são, de fato, visibilizados pela representação política e nem pela retórica artística. O que essa nova geração de escritoras traz, e isso se aplica como extensão ao texto literário de Leila Tabosa, é o projeto literário coletivo de mulheres de representar sujeitos na sua tipicidade extrema, ou seja, em seus modos “vivíveis” e “possíveis”.

Nesse espaço do não-visto/ignorado ou, como denominou Frantz Fanon (2008; 2020), nessa zona do não-ser, Leila Tabosa narra subjetividades nas quais vão se constituindo na medida que se relacionam com a própria territorialidade e com a suposta cidadania outorgada, o que vai implicar num novo modo de ler esses espaços e essas subjetividades, apontando, assim, para um deslocamento que se alarga, na medida em que dialoga com outras narrativas ficcionais do presente e que também pode ser recuperada em ficções de outras escritoras mulheres da literatura brasileira do século XX. Leila Tabosa é corpo-escritora-ficção em seu livro, no livro existe essa transitividade, algo que podemos encontrar na literatura de Carolina Maria de Jesus, em Conceição Evaristo e também em Clarice Lispector. A experiência da própria autora nesse espaço de referência de sua ficção lhe permite testemunhar e questionar, como essas escritoras, bem como o fez Primo Levi na ficção-testemunho, a vulnerabilidade do humano.

Na América Latina, essa literatura escrita por mulheres em contextos de vulnerabilidade e violência ganhou grandioso impulso nos últimos tempos. É possível citar algumas escritoras e suas obras mais recentes, tais como a argentina Dolores Reyes (1978) com Cometierra (2019); como a mexicana Guadalupe Nettel (1973) com Los divagantes (2023); como a guatemalteca Regina José Galindo (1974) com La nación más mala del mundo (2022); como a peruana Claudia Salazar Jiménez (1976) com La sangre de la aurora (2013); como a argentina Samanta Schweblin (1978) com Distancia de rescate (2014); e a brasileira Ana Paula Maia (1977) com De cada quinhentos uma alma (2021). A lista de autoras e obras é enorme, elas, segundo Paula Bianchi, tematizam e problematizam, na contemporaneidade, as subjetividades em territorialidades que se instauram em face de uma condição jurídica/não-jurídica e de uma condição também afetiva/não-afetiva. Isso posto, Ela nasceu lilás & outras mulheres consiste nessa tradução nordestina, de expressão cearense, e atualização da situação de tantas “outras mulheres” do Continente.

O que podemos encontrar em comum em todas essas narrativas é, com certeza, a centralidade do corpo feminino como fronteiras de um território em disputas, onde a dominação masculina aparece de forma expressiva em camadas de significações, partindo de situações cotidianas típicas até atingir a expressão mais nua e crua da violência sexual: “Expressar que se tem nas mãos a vontade do outro é o telos ou finalidade da violência expressiva. Domínio, soberania e controle são seu universo de significação” (SEGATO, 2005, p. 271). Quando Leila Tabosa estabelece uma relação intertextual de variadas formas com a literatura feita na América Latina, cuja subjetividade se ancora no corpo feminino, sua literatura vai além da expiação de seus próprios traumas, e passa a reivindicar uma postura estética e política legítima, transnacional e de diluição geopolítica, o que a torna, através de seu livro de ficção de estreia, num escritora brasileira das mais relevantes e necessárias da atualidade.

Ela nasceu lilás & outras mulheres está localizado numa cartografia diante da “modernidade”, mas fora dela. Modernidade entendida aqui na acepção de Aníbal Quijano (2005a; 2005b), como elemento que se instituiu a partir da colonização, e que cria zonas de instabilidades, reações, misturas e assimilações, que o mesmo intelectual peruano considera “colonialidade”, ou seja, a parte integrante, sombria e necessária à homologação da modernidade. Nesse sentido, o livro de Leila está dentro da colonialidade, numa zona não homologada, onde as leis da modernidade não se aplicam. Ademais, o espaço da colonialidade não é homogêneo, pois há nesse espaço variados arranjos e hierarquias na vida social, política e cultural. A colonialidade pode ser experimentada de formas distintas, dependendo do grau de distância ou proximidade às fronteiras da modernidade. Como ilustração, podemos didaticamente arrolar que há pelo menos três grupos de subjetividades na colonialidade: um grupo de corpos paracoloniais, um de corpos pós-coloniais e um grupo de corpos (neo)colonizados. Essas categorias são vistas como dominantes nos grupos de corpos da colonialidade, e não como características em absoluto.