MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Foto: M Céu Costa
Filomena Barata é arqueóloga, porém o seu mais recente livro, Alentejo, esse lugar… (Lema d’Origem, Carviçais/Portugal, 2020) não representa a norma da Arqueologia atual, isto é, não se trata de um livro sobre arqueologia do Alentejo, se bem que encontremos nele fotos e notas dos principais monumentos megalíticos, obras romanas, mouriscas e contemporâneas, de diversa natureza. É um livro moderno, mas elaborado à maneira dos filósofos naturais, ou mais conhecidos como naturalistas, a partir de meados do século XVIII. Esta atitude é tão deliberada da parte da autora que começa por falar dele como de um «caderno de campo». O caderno de campo é precisamente o usado pelos naturalistas de campo (a distinguir dos naturalistas de gabinete) nas suas deslocações ao exterior, ao lugar dos monumentos, acidentes geográficos, biótopo de espécies a estudar, etc.. No caso, Filomena Barata pesquisou todo o Alentejo, percorrendo-o de norte a sul e desde a costa até à fronteira. O caderno relaciona-se com a viagem, com o «lugar», como ela deixa claro no título. «Lugar a onde» se vai procurar o tesouro, «Lugar onde» existe o achado, «Lugar quando», relativo à época de implantação e fabrico dele. Estas proposições abrem o leque de inúmeras possibilidades, em abundância aproveitadas por aquela mentalidade do naturalista que tão profundamente difere do seu sucessor, o técnico, o especialista, aquele que tudo sabe de ânforas romanas, v.g., nada de antas, e ainda menos das características da aldeia de que Obélix é nativo. Esta incursão ao universo dos quadrinhos não é despropositada, se pensarmos que vamos achar no caderno a história da mulher cobra e cantares do povo. Em nada ferindo este discurso a especialização da arqueóloga, que sabemos sobretudo ligada, em termos mais técnicos, às romanidades, em particular aos vestígios da colonização romana em Portugal.
Como evidencia então Filomena Barata a sua filiação na atitude do naturalista? Tomemos um exemplo de época, Domingos Vandelli, correspondente de Frei Manuel do Cenáculo, para entrarmos na Biblioteca Pública de Évora, um dos temas de Alentejo, esse lugar… Se o naturalista Domingos Vandelli viajou pela Itália, Portugal e provavelmente Brasil, munido dos seus cadernos de campo para anotar tudo o que descobriu sobre a flora, a fauna e a mineralogia, e coligir exemplares, Cenáculo montou um museu para acolher alguns dos exemplares coligidos por Vandelli e é bem possível que ele mesmo se tenha dedicado a essas ocupações. Porém não se esgota nos Três Reinos o interesse do naturalista, como muito bem espelha Filomena Barata: no caderno anota-se tudo o que é importante ou interessante, seja a natureza dos portos, o tipo e quantidade de armas, o aspeto e número dos habitantes do lugar, a qualidade e origem dos tecidos usados no vestuário, as jóias, etc., etc., e neste caso da exaustiva lista já estamos a falar dos apontamentos do naturalista em terra estranha. Anota-se o que é útil, precioso, agradável ou belo, tal como se anota o inverso e a periculosidade eventual dos indígenas do «lugar onde».
É assim que no caderno de Filomena Barata, ao contrário da visão do especialista, encontramos a do “universitário” no antigo sentido da palavra, que pressupunha estudos gerais, uma universalização do conhecimento: ela fala de música, dos aromas e das aromáticas, no Alentejo muito mais profusas do que nas regiões nortenhas, da pobreza do solo, se visto quanto à falta de água, e à sua riqueza ecológica e arqueológica – caso dos aquedutos, das fontes, das termas, e até das ruínas romanas de Tróia, antigo centro piscatório, e agora a água é salgada, tal como é salgada aquela em que assentam as aldeias palafitas também da zona de Tróia; de grandes monumentos como a Sé de Évora, começada a construir vai fazer mil anos não tarda muito, em estrato superior ao de uma mesquita e, se descermos ainda mais às suas raízes, nelas poderá achar-se uma igreja visigótica. Enfim, a autora dá-nos a ver as ruas, as comidas, as pessoas, tudo aquilo que entra pelos olhos, pelo nariz e pelo ouvido, para terminar nas mãos que afagam. Livro de amor, como diz Miguel Rego, que assina a introdução, ele liga-se à genealogia paterna da filha, tudo pessoas nascidas no Alentejo.
A abundância de imagens também se nota estar carregada de afetos, e por tudo isto, que faz do livro uma obra completa, não por ser uma lista exaustiva de coisas mas por abranger desde o material ao imaterial, desde o trabalho ao passeio, desde a análise fria ao enamoramento, Alentejo, esse lugar... é um livro de memórias também para o leitor que ama o Alentejo e que decerto o fruirá como a melhor das viagens na região neste período triste de pandemia.