MANUEL RODRIGUES VAZ
Comunicação feita a 1 de Junho de 2022, por Rodrigues Vaz, no Restaurante Pote, em Lisboa, no âmbito do almoço semanal das quartas-feiras, da Tertúlia À Margem
O 27 de Maio em Angola: o golpe perfeito
Anunciado previamente com alguma circunstância, saiu em 2014 para os escaparates das livrarias o livro Em Nome do Povo, da jornalista britânica Lara Pawson, uma exaustiva investigação sobre os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, data que marca um momento indelével na vida de muitos angolanos, pelas consequências que ainda se fazem sentir a vários níveis.
Na altura fiz um texto para ser publicado na revista África 21, mas foi-me pedido pela direcção que ainda era cedo falar sobre esta questão. Acabei por aceder, pois sabia na pele as circunstâncias nacionais angolanas.
Não trazendo, na verdade, muita coisa nova, pois, de uma maneira geral, a maior parte dos dados apresentados são conhecidos, trata-se, no entanto, de um trabalho interessante porque, pela primeira vez, tais dados aparecem juntos e devidamente contextualizados e questionados, para que os angolanos começassem a analisar os trágicos acontecimentos de há 45 anos de forma mais clara e objetiva, enfrentando finalmente o tabu, que tem de ser definitivamente ultrapassado.
Porque, como diz a autora, foi «O próprio receio do MPLA em “abrir a ferida” (que) abriu espaço para que Nito Alves seja atualmente idolatrado por jovens angolanos opositores ao regime», pelo que «Esconder a verdade está a criar cada vez mais o peso do próprio mito».
Tendo optado por uma escrita na primeira pessoa, quase diarística, em vez do ensaio pretensamente imparcial, utilizando uma escrita jornalística apelativa e abrangente, que nos deixa aceder ao mundo denso de cada personagem e de cada figura retratada, o livro permite acompanhar o processo de pesquisa e o posicionamento da autora, com as suas hesitações, entusiasmos e dificuldades, e chegar ao entendimento de algumas causas e consequências dos trágicos acontecimentos, resultando um livro que contribui para esclarecer a complexidade desse período, fazendo a ponte com o presente de Angola, ao trazer mais perguntas do que respostas, que é realmente um passo para abrir a discussão e gerar a reflexão, que tão necessária é para virar finalmente a página.
Apresentados e analisados os vários depoimentos, uma coisa ressalta à primeira vista: há dúvidas se se tratou de um golpe de Estado, de uma simples revolta, no sentido de rebelião, ou, como querem outros, uma simples manifestação de desagrado contra a forma como as coisas estavam a decorrer, como acreditaram muitos, em particular o povo. Para o João Van-Dúnem, irmão da Francisca, ex-ministra da Justiça de Portugal, a minha amiga Mimosa, falecido há seis anos, o presidente Agostinho Neto tinha um plano «e é evidente que se tratou de uma cilada». Lino Garcia Mateus, morador no Sambizanga, afirma, por seu turno, que o objetivo não era matar Agostinho Neto, mas reconhece que lhes foram distribuídas armas, corroborando que era uma revolta para mudar o sistema, que se estava a revelar com muita corrupção enquanto a falta de géneros alimentícios se fazia sentir cada vez mais. Mas, por outro lado, para Lara Pawson, «o facto de a 9ª Brigada se ter envolvido, de a rádio ter sido ocupada durante várias horas por homens com armas e as prisões invadidas parece difícil negar que não houve tentativa de golpe». Uma questão que parece ainda nebulosa foi o assassinato de alguns dirigentes do MPLA, que o grupo vencedor atribui aos nitistas, mas que tudo leva a crer que quem o fez teria sido um elemento da DISA infiltrado.
Antes de prosseguir a análise do livro, é minha vontade revelar alguns dados que até agora não vieram a lume, mas de que tive conhecimento, devido ao meu trabalho na altura, como chefe de programação do TPA: a equipa do famoso programa Kudibanguela, porta-voz dos nitistas na Rádio Nacional de Angola, RNA, foi algumas vezes convidada para os almoços que o presidente Neto oferecia, aos sábados, no Palácio e que acabavam por ser reuniões de trabalho, o que levava algumas das chefias da RNA a tratarem o Rui Malaquias e o Evaristo Carrasquinha com uma certa deferência; Raul Castro tinha chegado a Luanda no dia 26 de Maio; quando da gravação da declaração do secretário-geral da UNTA, Aristides Van-Dúnem, no dia 27, pelas 14 horas, perante uma certa atrapalhação deste com os papéis, o presidente Neto avisou-o perentoria e ironicamente de que visse bem qual a declaração que ia ler. Posso afirmar, também, que desde Janeiro de 1977, estava estacionado próximo do aeroporto um batalhão de Kwanyamas denominado de Batalhão de Luta Contra-bandido, e que foi este batalhão que atuou na noite de 26 em várias zonas da cidade, sob o comando do comandante Magalhães, ex-comando português cunhado do António Carlos Silva, uma das figuras mais poderosas e sinistras da DISA, tendo levado para filmagens diretas a equipa de cinema da TPA, a Ano Zero, que por sinal também integrava dois cunhados do mesmo e que acompanhou as operações desde a tarde do dia 26. Seria exactamente esta equipa da TPA que, passado pouco mais de um mês, apresentará um documentário pormenorizado do que se passou no 27 de Maio.
Outra questão em que há muitas divergências é na quantificação das vítimas das perseguições a seguir ao golpe ou intentona: de 3000 a 30000 vale tudo, dependendo do ponto de vista. Exageros em que os angolanos são mestres, o que se calhar é uma qualidade. Bom angolano quer tudo em grande, e porque não? Mas a verdade é que se tivessem sido apenas 200 ou 300, em vidas humanas seria mesmo assim um custo muito caro. Como declarou o político e escritor João Melo, director da revista África 21, que também foi ouvido, «a reação do Estado foi inegavelmente desproporcionada, em especial em Luanda e no leste do País, no Moxico».
No que parece que há acordo, mas de sinal contrário, é numa das principais causas apontadas, que é na questão do racismo, assunto muito delicado mas que não pode deixar de ser abordado. Miguel Francisco, um dos depoentes, que esteve preso, acusa repetidamente, como outros, os mestiços como responsáveis da onda de violência que se seguiu ao golpe, enquanto para Ndunduma, na altura director do Jornal de Angola, «o racismo que o preocupa é o que é dirigido aos brancos e aos mestiços, nunca o que vitima os negros». Como acentua a autora, «Em vez de reconhecer a necessidade imperiosa de resolver as desigualdades associadas à raça e à classe, Ndunduma propôs soluções tecnocratas para os problemas do Estado».
Sobre a questão de as culpas serem assacadas especialmente ao presidente Agostinho Neto, se bem que foi exagerado na primeira reação, o que de certo modo se compreende porque foi uma reação a quente, e a situação em que País estava, com graves problemas nas fronteiras e mesmo no interior era problemática, nitidamente este tinha perdido o controlo, como se verificou quando até um dos sobrinhos esteve na calha para ser fuzilado. Ele só viria a ter conhecimento da amplidão das perseguições quando foi confrontado com um relatório numa reunião da OUA que se realizou em Monróvia em 1979, o que o levou a regressar intempestivamente, após o que procedeu ao desmantelamento da DISA, pouco antes da sua morte, como refere o depoente Ildeberto Teixeira.
Naturalmente, este é um livro onde perpassam muitas contradições, bastantes distorções e fatalmente várias incertezas, todas possíveis porque se trata de coisas de homens e tudo o que é humano é imperfeito. O 27 de Maio está eivado disso tudo, mas, como salienta Lara Pawson, não se pode estar de acordo com os portugueses, pela sua insistência absurda de que tudo começou a correr mal em Angola com a independência. O poder em Angola também tem de refletir, a hora é de abertura. Como lembra, «as democracias bem-sucedidas permitem que as pessoas se manifestem, mas os governantes não reagem. É aqui que reside a beleza das coisas: deixar a população protestar, mas ignorá-la por completo».
Um dos interesses deste livro é que levanta a questão do rigor da informação sobre Angola e qual é a informação em que podemos confiar. Uma leitura indispensável para a história do massacre e suas sequelas, mas também para o melhor entendimento da atualidade angolana.
Entre Londres, Luanda e Lisboa, Pawson conseguiu o que até aqui nunca fora possível: passados 45 anos, vítimas e testemunhas – ainda hoje sob a tensão do medo -, e até mesmo alguns dos carrascos, decidiram falar sobre o massacre, numa série de empolgantes entrevistas. João Van Dúnem, irmão de José, um dos líderes da revolta, bem como membros da elite angolana – por exemplo, Ndunduma Wé Lépi, ex-director do Jornal de Angola, ou Aníbal João da Silva Melo, deputado à Assembleia Nacional pelo MPLA – contam-se entre os muitos testemunhos que a autora reuniu.
Lara Pawson foi correspondente da BBC no Mali, na Costa do Marfim e em São Tomé e Príncipe, entre 1998 e 2007. De 1998 a 2000, trabalhou em Angola, onde cobriu a guerra civil. Desde então, visita com regularidade o país. É atualmente jornalista freelancer em Londres.
Se bem que eu já tenha falado desta questão há cinco anos neste mesmo espaço, acabei por aceder a voltar a este tema, porque na verdade houve algumas mudanças a assinalar. Uma é que o actual presidente angolano, João Lourenço, por sinal casado com uma senhora que também esteve presa no 27 de Maio, no final de uma reunião, há um ano, da Comissão de Reconciliação em Memória às Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP), reconheceu que a resposta do Estado ao que considerou tentativa de Golpe de Estado de 1977 foi desproporcional e vitimou, inclusive, inocentes.
O chefe de Estado angolano disse que o momento agora “não é de se apontar dedos”. Volvidos mais de quatro décadas do massacre, o Estado quebra finalmente o silêncio e pede desculpas públicas às vítimas e aos seus familiares.
“Este pedido público de desculpas e de perdão não se resume a simples palavras, ele reflete o nosso sincero arrependimento e vontade de pôr fim à angústia que ao longo destes anos as famílias carregam consigo por falta de informação sobre destino dado aos seus ente-queridos”.
A outra é que acaba de ser apresentado, em Portugal, o filme Sita: A Vida e o Tempo de Sita Valles, da realizadora portuguesa Margarida Cardoso. Se formalmente é um documentário aceitável, é, no entanto, discutível sobre a opção de ter limitado muito o universo dos depoentes. Na verdade, repete o erro da chamada literatura ultramarina, quando os angolanos apareciam como simples elementos da paisagem africana. A independência de Angola foi uma conquista dos Angolanos, de várias origens e etnias, assim como o 27 de Maio foi igualmente um facto importante da História angolana, em que os mesmos elementos estiveram comprometidos, sem monopólio de ninguém. Quero dizer, para dar o nome aos bois: houve uma espécie de selecção para dar mais voz aos brancos do que aos negros, embora, por outro lado, eu compreenda as limitações económicas e outras, para ser mais abrangente. (Já estou a ver as críticas que me virão desta asserção!)
Fora isto é um documentário bem fornecido de factos e até mantendo um razoável ritmo de narrativa, embora seja notória a ausência de referências ao companheiro de Sita, José Van-Dúnem, que foi membro do comité central do MPLA, adjunto do comandante Gika no comissariado político das FAPLA, lutou pela libertação de Angola e a sua luta custou-lhe a prisão no campo de concentração de São Nicolau (Bentiaba). De notar que faltam intervenções da própria Sita, que é improvável que não existam, e releva-se a falta de discursos contraditórios, que muitas vezes são esclarecedores.
Mas, quanto a mim, se ganhava muito com outra montagem mais sintética, uma das grandes qualidades deste documentário é uma revelação: ao contrário do que os retornados sempre disseram, acusando como comunistas os militantes e dirigentes do MPLA como os seus inimigos e algozes, uma das coisas que se infere deste documentário é que, se alguma coisa o MPLA fez eficientemente foi perseguir tudo o que cheirava a comunistas. E eu sou uma testemunha disso mesmo.
Para resumir e dar razão ao título: depois de tudo o que sei sobre esta questão, embora não afaste a ideia de que nos nitistas haveria gente à espera de afastar o presidente Agostinho Neto, a verdade é que o 27 de Maio em Angola não foi uma simples intentona. Foi um golpe de Estado promovido pelo chamado grupo dos Mulatos do Leste, que tudo fizeram para fazerem sair para a rua os militantes desavindos, a fim de melhor os eliminar.
Foi um golpe perfeito.