Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
O 25 de Abril e as suas relações com a Igreja Católica é uma questão que ainda não secou. Aconteceu-me muitas vezes e ainda agora me desafia.
A bibliografia sobre a relação entre a Igreja Católica e o Estado Novo salazarista, assim como a da oposição católica ao Estado Novo, continuam em crescimento[1]. A questão acerca dos católicos e o 25 de Abril cobre um panorama demasiado vasto e demasiado próximo, mesmo apreciado 50 anos depois. Como se costuma dizer, é um tempo curto para a história e excessivamente largo e distante para o jornalismo.
Na recolha de textos que fiz em A Religião dos Portugueses[2], que vai desde a polémica entre A Voz de Santo António e o Novo Mensageiro do Coração de Jesus (1908-1910), percorrendo o tempo da República e do Estado Novo até 1974, termina, precisamente, com um texto sobre A Igreja e o 25 de Abril.
A revista Didaskalia publicou um número importante, organizado pelo Prof. Alfredo Teixeira, sobre o inquérito, Identidades Religiosas em Portugal: representações, valores e práticas[3].
Aquilo a que se chamou a “recristianização de Portugal”, a partir dos anos 30 do século passado, com um contributo importante da Acção Católica Portuguesa (fundada em 1933), desenvolvida sob o manto de Fátima e servida pelo católico Salazar, figura da divina providência, reconhecida e venerada pelo episcopado, já nem ao 25 de Abril chegou.
A transição foi benigna, pois Salazar e Cerejeira – o rei e o vassalo – já estavam fora de jogo e D. António Ribeiro não jurou a continuidade, embora não convocasse os colegas do episcopado para uma revisão profunda do passado. Os políticos mais avisados, como Mário Soares, tudo fizeram para não reabrir a chamada questão religiosa que envenenou a Primeira República.
- O Vaticano II não foi desejado, não foi preparado nem aplicado pelo episcopado português, tão confiante estava na liderança providencial de Salazar. Quando teve de escolher entre D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, um membro do episcopado dissidente do Regime, preferiu o Regime do Estado Novo.
A hierarquia portuguesa passou, em tempo útil, ao lado da grande revolução eclesiológica desse Concílio e a população portuguesa era mantida na ignorância do que se passou em Roma. A desculpa, declarada pelo Cardeal Cerejeira, era fantástica: em Portugal já estamos muito mais adiantados do que as propostas desse Concílio.
Com o 25 de Abril, o Vaticano II também não parecia de grande utilidade para o movimento católico anti ditadura e anti guerra colonial. A urgência partidária engoliu os esforços das “assembleias livres de cristãos” e de muitas outras iniciativas para criar, nas condições do pluralismo político, uma nova espiritualidade para tempos de mudança[4].
Natália Duarte Silva, mulher de Nuno Teotónio Pereira, já tinha sentido essa necessidade para o movimento católico, ainda antes do 25 de Abril. Os chamados terceiros sábados foram uma criação sua para se poder viver a fé cristã em tempos de luta.
O ISET (Instituto Superior de Estudos Teológicos), de Lisboa, tinha condições e práticas que poderiam ser um grande contributo para fazer a ruptura e a ligação entre o antes e o depois do 25 de Abril. Em 1975, foi encerrado para engrossar o número de alunos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, mas sobretudo por receio do exercício livre e criativo de uma teologia e de uma pastoral fiéis ao Vaticano II.
Depois do 25 de Abril, o pluralismo político não teve um suporte eclesiológico que fosse capaz de ver que a verdadeira identificação com a Igreja oficial nunca pode ser total e absoluta, sem questionamentos e discernimentos críticos. Cada membro da Igreja tem de assumir a sua responsabilidade por própria conta e risco.
A Igreja, no seu conjunto e na sua hierarquia, precisa de estar sempre em reforma. Em cada tempo e lugar, o mais importante é desenvolver a maturidade e a criatividade da fé cristã. Não desejo fazer nenhuma apologia do individualismo, de um cristianismo sem Igreja. Pelo contrário, desejo o reconhecimento de uma antropologia de relação: o ser humano só pode ser humano em relação livre e colaborante com os outros, a nível local e global, seja onde for.
Na Igreja, a diversidade de modelos está bem patente nas suas origens: os textos do Novo Testamento revelam uma pluralidade enorme de formas de acolhimento do caminho de Jesus Cristo. O pós 25 de Abril foi vivido num tempo de grandes conflitos acerca da recepção da eclesiologia do Vaticano II: uma tendência restauracionista impediu o desenvolvimento do pluralismo criador. A falta da reforma da Cúria encobriu muitos escândalos e impediu novos caminhos.
Com o 25 de Abril, o estilo, que até ali vigorou no catolicismo português, desmoronou-se e o ambiente eclesial foi-se degradando.
Essa paisagem desolada não mata a esperança. Exige apenas lucidez. Quem poderá recusar o texto de Ezequiel (37, 1-10) sobre a visão dos ossos ressequidos? Deus é maior que os nossos projectos sociais, económicos, políticos e religiosos. Não há nem tempo nem lugar para o desespero. Olhar para o que correu e está a correr mal não pode impedir a fé n’Aquele que é a ressurreição dos vivos e dos mortos.
- A chamadaNova Evangelização adquiriu um sentido novo com o Papa Francisco. Ele assumiu uma posição de reforma da Igreja a partir dos pobres e excluídos. Pode haver muitas formas de acudir a esse imenso mundo, mas não formas de iludir essas tragédias, a tragédia dos descartáveis, dos que não são produtivos, dos que não dão lucro. Tornou possível que a relação entre política e fé cristã, em diálogo com as outras religiões e com os sem religião, deixe de ser uma conversa abstracta para se tornar uma iniciação, desde as crianças aos adultos, acerca da economia que mata, da ganância de uns e a miséria de outros, colocando os católicos, segundo as suas competências, a lutar por um mundo que importa fazer de outra maneira. É preciso reencontrar-se com o critério que nasce na metáfora de Jesus: a árvore conhece-se pelos frutos.
Apesar de todas as dificuldades, nada está perdido, quando é a esperança a alma da nossa alma.
[1] Destaco Duncan Simpson, A Igreja Católica e o Estado Novo salazarista, Edições 70, 2014, pois faz um balanço crítico das obras de Braga da Cruz, Fernando Rosas, Luís Salgado de Matos, Paulo Fontes, etc. e apresenta uma interpretação que não deixará de provocar novos debates, esperando, ele próprio, que o acesso a novas fontes de arquivo, que infelizmente ainda não estão acessíveis a todos os investigadores, permita uma investigação mais aprofundada de questões importantes.
[2] Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Porto, Figueirinhas, 2.ª edição 1989, pp 133-142; Reedicção, revista e alargada, pela Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2018
[3] Didaskalia XLIII (2013) 1.2.17-20
[4] 25 Abril – Textos Cristãos – Novembro 25, Forças da Vida 2, Ulmeiro, 1977
Público, 29 Abril 2024