Revista TriploV . ns . nº 64. abril-maio . 2017 . ÍNDICE.
Homenagem do Triplov aos Capitães de Abril

 




Arlinda Mártires
nasceu em Alfundão, Baixo Alentejo, na madrugada fria de 13 de Novembro de 1955. Entre as voltas pelo mundo, reside em Alvito, no Alentejo, local de culto, onde, impreterivelmente, tem de voltar, para preparar nova partida.
Licenciou-se, pela Universidade Nova de Lisboa, em Estudos Portugueses e Ingleses e fez Pós-Graduação em Literaturas e Culturas dos Países Africanos de Expressão Portuguesa.
É professora do ensino secundário desde 1989 e tem servido a língua e a literatura portuguesas em Portugal, na Guiné-Bissau, na Namíbia, em Angola e em Timor-Leste. Momentaneamente está de regresso à escola a cujo quadro pertence, em Viana do Alentejo.

 Tem quatro obras publicadas: Além-Rio, poesia, prémio nacional Raúl de Carvalho (1999); Guynea, poesia; Sete Histórias de Gatos, contos, em co-autoria com Dora Gago; e Impressões do real, poesia, prémio de poesia do Concelho de Alvito, no âmbito do prémio nacional de poesia Raúl de Carvalho (2013). Integra ainda a Nova Antologia dos Poetas Alentejanos, cuja direcção é de Eduardo Raposo. Obteve Licença Sabática e realizou um projecto literário do qual resultaram três obras: Fábulas de Portugal e da Guiné-Bissau (ensaio), Contos da Terra Vermelha (ficção) e Guynea (poesia; já publicado). Tem artigos e poemas dispersos em jornais e revistas e participa em conferências, tertúlias e eventos relacionados com a língua portuguesa, a literatura e a música.

 

ARLINDA MÁRTIRES

Jocasta

 

I

 

O carro vagueava pela escuridão da cidade . A meia-noite esquecera-se da lua. Apenas um silêncio quente e pesado, cortado pelos morcegos na luz dos faróis.

-Aqui! Neste cruzamento! – um estilhaçar de vidro despertou o silêncio. – Figa Canhoto! Que todo o mal se afaste de mim!

Tinha consigo todas as religiões e todas as fés que precisava de renovar todos os dias. Por isso, era fácil encontrar Jocasta à porta de um marabú (1), ou sob um poilão ou numa igreja cristã.

Aurora conhecera-a num desses soberbos almoços africanos onde não faltam o camarão, a ostra, o chispe, o torresmo, o chouriço, a cachupa e demais embutidos com muita malagueta e limão, muito álcool e música altíssima, alternando a voz do artista com os gritos dos convivas, que atiram gafanhotos uns aos outros, enquanto recordam alguma comezaina anterior ou programam já a próxima.

Jocasta era o centro das atenções. Falava imenso enquanto abanava a peruca, já meio descosida na parte de trás, onde o cabelo se levantava em remoinhos, deixando antever os alinhavos. Sugava do copo grandes goladas de vinho branco bem gelado (ou mesmo quente à falta de luz). Ria lançando a cabeça para trás, ao mesmo tempo que a sacudia fazendo levantar os tufos laterais do cabelo. De vez em quando, revirava os olhos, alçava as mamas e rebolava as ancas, enquanto as canelas, secas e arcadas, ensaiavam passos bem ritmados de coladeiras e funanás. Aproximou-se de Aurora e grunhiu  escarninho: - Édipo já não tem tesão! – e avançou para o marido empunhando um lustroso chouriço de sangue que retirara da travessa do cozido. Édipo passou devagar a mão ( onde luziam o anel de oiro e a unha mindinha envernizada e longa) pelas ondas do cabelo , revirou os olhos, grossos e mortiços, e esgaçou um sorriso malicioso fazendo levantar o bigode donjuanesco.

Entre pés de porco e pés de dança, a farra chegou ao fim com Édipo dependurado em Jocasta e Jocasta em Aurora que, com muito esforço, os atirou para o interior do carro. Sábado era já e combinaram uma ida à feira de Bandidos, lá pelas 10 horas da manhã.

O casal, enxovalhado, perdeu-se na escuridão do quintal, salto quebrado de Jocasta a matraquear no empedrado.

 

II 

 

Nessa manhã Aurora chegou a casa de Jocasta com meia- hora de atraso. Saíu do carro apressadamente e galgou o portão. Estacou. No quintal estava a representação de um quadro de Bosch.  Jocasta, postiço em reboliço, envergava um robe transparente cujo cinto se alargava na barriga de álcool, deixando sair a opulenta mama esquerda que fazia as delícias do macaco fula, preso ao pé de goiaba. O guarda Faztudo degolava uma galinha, enquanto Nha Sábado de todos os dias lavajava as tripas do porco para fazer as linguiças. Tudo isto rematado de abutres em redor. Na varanda sobranceira ao quintal, o galo branco de trazer por casa ( para afastar o Mal), entrava e saía do quarto, largando cagadas onde calhava e Jocasta ria muito e dizia que estava quase pronta... Foi um quase de hora e meia, a maior parte do tempo a arrastar os cambados chinelos, dando ordens para a cachupa e os torresmos e as linguiças e demais petiscos amigos do seu combalido fígado. Em dez minutos se banhou, alisou a peruca dos lados (atrás permanecia o alvoroço dos alinhavos), passou batôn nos lábios, vestiu o vestido vermelho de algodão e calçou as sandálias vermelhas de verniz, de salto alto e fino, com um ângulo de apoio já muito obtuso. Ao meio- dia chegaram à feira.

- Vamos só aqui ver uma pessoa...- ordenou Jocasta desaparecendo na labiríntica exposição dos artigos mais díspares. Atravessaram a zona do talho. Das patas à cabeça, passando pelas vísceras, porcos, cabras, vacas eram expostos ao ar, com muitas moscas a fazer de confetti. Furando a multidão que se comprimia nos corredores estreitos, depois de muito virar à esquerda e à direita, passando por legumes, peixes, plásticos, peças roubadas várias, tabaco, cola, karitê, hena, antibióticos, leite coalhado, pomadas, panos e o que se queira imaginar, chegaram a um pátio onde uma dezena de crianças se atarefava com um carneiro acabado de ser sacrificado. À porta de um dos casebres sentavam-se algumas mulheres e homens. Jocasta deu os bons dias e, sem qualquer cerimónia, entrou num hall atarracado, arrastando Aurora por um braço.

- Lai, bom dia! Trouxe uma amiga muito bonita.

Uma mulher vestida de basin  rosa afastou a cortina e saiu, acto contrário ao das amigas. Num quadrado minúsculo, sem janelas, com a parca iluminação de uma vela, um muçulmano vestido de branco sentava-se numa esteira a um canto. A seu lado empilhavam-se alguns livros – acastanhados de velhice e muito pó – em caracteres árabes. Também muitas folhas de papel outrora branco forravam o chão à sua volta. As paredes negras de sujidade sustinham uma prateleira, camuflada de terra e teias de aranha, onde se equilibravam frascos contendo ervas e raízes. Em frente de Lai, num assento que fora sofá de napa, sentaram-se com os joelhos a escassos centímetros do nariz do marabú que permaneceu imóvel.

Após as apresentações, Jocasta pediu ao mouro que visse a sua sorte. Lai sorria muito, mostrando uns dentes alvíssimos que iluminavam o rosto, encimado por uma carapinha onde se acrescentavam bocados de cotão. Pegou numa folha de papel branco, fechou os olhos por momentos e começou a desenhar uns arabescos até preenchê-la. Depois disse--lhe várias coisas das quais Jocasta reteve apenas uma: Édipo tinha uma amante. Jovem.

 

III 

 

Édipo fora sempre um mulherengo. O corpo pequeno herdara o sangue quente de Cabo Verde. A obsessão pelo sexo levara-o desde cedo a passar de mulher em mulher. Jocasta sabia-o (até porque também ela tinha as suas aventuras), mas o que não tolerava era que houvesse outra fixa. Tanto mais jovem! Jocasta, embora mostrasse um ar gaiato e fizesse questão de exibir todos os anos, no reveillon, a  menstruação (sujava sempre o vestido desprevenido ), acabara de ultrapassar meio século e doeu-lhe a notícia. Não atinou noutra coisa. Sequer ouviu o futuro glorioso que Lai preconizou para Aurora: longa vida, duas casas, dois carros (antes já se havia inteirado de que Aurora vivia repartida entre África e o Alentejo )...

Saiu do mouro com uma série de receitas para fazer com que o marido largasse a amante. Desde a esmola – leite coalhado com açúcar ou farinha de arroz e mel – a repartir por sete crianças, o que Jocasta cumpriu logo ali no pátio de Lai, passando pela oferenda de panos brancos e velas, até ao lançar, à meia-noite, sete bolas de cinza no meio de um cruzamento.

As compras na feira resumiram-se a iogurte, açúcar, panos brancos e velas. Jocasta ziguezagueava feira fora com Aurora na peugada. Seguia apressada e nem os saltos das sandálias a ameaçar a espargata a dissuadiam. Quando alguém reclamava das pisadelas e encontrões, rematava na mistura de línguas que falava -  Bai kumé merda!

No carro, desfigurada, com as abas do nariz, largo e arrebitado, enfunadas, indicava a direcção desejada a Aurora que a tentava acalmar com palavras e gestos que não alcançavam Jocasta . Pararam 500 metros adiante, à porta de Mamadú, também leitor de futuros. Um homem bonito, alto, com óculos de aros pretos que lhe davam um ar sério e entendido, recebeu-as à porta, onde estavam amarrados dois carneiros. Jocasta cumprimentou-o como quem cumprimenta um amigo do dia –a - dia (foi mesmo ela quem lhe ofereceu o Ford escort estacionado à porta desde que para lá foi). Mamadú, simpatia discreta, mandou-as entrar. Na sala viam-se três frigoríficos, desligados e vazios, dois aparelhos de televisão, antigos e sem uso, uma mesa e cadeiras onde se sentaram.

- Djubi nha sorte, Mamadú! -   implorou suspensa na esperança.

Os arabescos, mais uma vez, mostraram a existência da outra:

- Bu tene kumbossa! O teu homem tem outra mulher! -         

A confirmação atingiu Jocasta como um tufão. Os dedos crispados arrepanharam o postiço, arrancando uma das madeixas laterais que caiu sobre a folha de papel branco como um mau presságio. Mamadú ia dizendo que havia solução. Era necessário cumprir as sua indicações. Mais esmolas e oferendas e quebrar uma garrafa de vidro ( para dentro da qual deveria segredar o seu Mal ), num cruzamento, à meia-noite.

Aurora acusava cansaço. Às três da tarde o sol é inclemente. A humidade alaga os pulmões. É difícil respirar, imagine-se bulir! Jocasta, porém, não dava conta de nada. Cega de ciúme e humilhação quis ainda visitar uma famosa cartomante senegalesa. N’Day abriu a porta e abraçou-as o perfume do tchurrai (2) – fumo fininho a sair das brasas. Era uma mulher elegante, de bou-bou (3) e turbante a condizer, colo de ébano polido, dedos esguios, unhas vermelhas alongadas em oval. Manejava as cartas com elegância e destreza admiráveis e... lá estava a dama de copas!

À saída Jocasta tinha evoluído para um estado de calma aparente. O olhar estático lembrava um mar morto. Aurora sentiu o nó na garganta, os olhos a doer salgados. Abraçou-a pela cintura e abriu-lhe a porta do carro. Jocasta ordenou de novo a direcção: a igreja de Nª. Srª. De Fátima. Queria mandar rezar uma missa.

O sol era toranja na bolanha quando Aurora a levou  a casa. Pedia mais um favor, que  a acompanhasse à meia-noite, ao cruzamento. Que entrasse, que comessem e bebessem. Aurora desfalecia, mas não pode recusar. 

 

IV 

 

Édipo dava os últimos retoques nas ondas bem brilhantinas. Perfumadíssimo e fresco, depois da sesta, preparava-se para sair. Uma rotina de muitos anos. Dizia ir jogar a sueca com os amigos – coisas de homens!

Jocasta começou a gritaria no portão. Filho da puta, cabrão, putanheiro, impotente, chulo ( Édipo é que fora morar para a casa de Jocasta ), entre outros, preencheram a maior parte do discurso . Édipo, sem levantar a voz, só dizia: -            Estás doida?! Cala-te! Estás doida?! Bebeste demais!        

Jocasta pegou na panela da cachupa e arremessou-a contra Édipo que se escapuliu por um triz. Sempre a insultá-lo, entrou no quarto, serviu dois copos de whisky, triplos, e foi com Aurora sentar-se á mesa deixada posta por Nha Sábado. Petiscaram linguiças e torresmos. A cachupa espraiava-se no chão e nas paredes da varanda e o galo branco debicava no grão de milho e na orelha de porco. Jocasta fritou ainda moreia de Cabo Verde. Pôs o rádio a tocar e, arrastando os pés ao ritmo da música, foi preparar as bolas de cinza que foi dispondo num prato. Em seguida, escolheu uma entre as muitas garrafas de vidro vazias a um canto, lavou-a muito bem e pô-la a escorrer. Voltou a encher generosamente os copos. Aurora estava  demasiado tonta de acontecimentos e copos, mas brindou à resolução do problema de Jocasta.

Cerca de 15 minutos antes da meia-noite, Jocasta levantou-se cambaleante, pegou na garrafa, limpou-a e entrou no quarto. Saiu passado pouco tempo com a garrafa na mão.

Com a outra pegou no prato das bolas de cinza e disse :  -   Vamos! - 

- Onde ? – perguntou Aurora.

Eu indico-te o caminho. -

À meia-noite soou o estilhaçar no cruzamento. As bolas de cinza pouco rebolaram no alcatrão esburacado. Morcegos embateram no pára-brisas do carro. Jocasta odiava morcegos, lembravam-lhe vampiros, morte... Começou a chorar e disse que queria ir dormir. Aurora levou-a e prometeu voltar na manhã seguinte.

 

V 

 

Jocasta, no portão, gritou pelo guarda Faztudo que dormia a ronco solto. Ao fim de alguns berros, acordou e acompanhou-a com a lanterna. Édipo não chegara ainda. Entrou, despiu-se e foi para a casa – de - banho.  A água escorria-lhe pelo corpo estatelando-se no chão como estrondosas bofetadas. O galo de trazer por casa, que dormia à cabeceira do lado de Édipo, acordado pelo barulho e pela luz das velas, levantou a crista e cantou, assustando Jocasta. Deixou a casa – de - banho de roupão turco branco, as mãos nos bolsos, a amargurada tristeza da solidão no rosto. Deitou-se na cama, do outro lado do galo e aguardou.

Os passos de Édipo soaram hesitantes no empedrado. O assobio ciciado denotava contentamento. Jocasta escutou a chave na fechadura e mal Édipo entrou, saltou a cheirá-lo . - Perfume de puta! Já sabia!... - A bofetada ardeu na face do homem como uma chicotada. Alcoolizado, reagiu raivoso empurrando Jocasta que caiu sobre a cama e se levantou imediatamente, como acrobata em cama elástica. -  Chulo de merda! Rua! Não te quero na minha casa! -  O insulto gritado com histeria produziu em Édipo o efeito do álcool em fogueira. Levantou os braços, mãos abertas, dedos em garra, avançou para Jocasta, o olhar vítreo, os dentes cerrados. Rápida, Jocasta levou a mão ao bolso e retirou um frasco, cujo conteúdo, transparente como a água, atirou ao rosto de Édipo.

Os gritos de dor ecoaram na madrugada e fundiram-se no canto árabe da mesquita ao lado de casa de Aurora. Acordava sempre quando a voz modulada do muesin ecoava na lala, a chamar para a oração. Era ainda o silêncio dos pássaros e o cântico tinha o sabor da paz, da tranquilidade. Aurora lembrou Jocasta – estava certamente a dormir – e voltou ao sono.

Acordou sol a pique nas roseiras do quintal e iniciou o ritual das manhãs. Perto das treze, foi a casa de Jocasta. O guarda acendia o fogareiro. Nha Sábado, na varanda, falava alto com duas mulheres. Todas três em uníssono agudo faziam perguntas ao velho e, às suas respostas, enchiam o ar de  mbéee! (s) e uaiôôô...(s).

Aurora perguntou por Jocasta. Não sabia sinhôra ? Édipo estava no hospital, cego. Jocasta atirara-lhe à cara um bidon ku asidu “safriku”.      

- E Nha Jocasta? - .  Fora para a feira de Bandidos e sentava-se já com o mouro entre as pernas : - Lai, djubi nha sorte! .

 

(1) Marabuto; adivinho

(2) incenso

(3) túnica larga e comprida

 
 
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Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
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