O abjeccionismo,
mau grado a singularidade da sua situação no
século XX português, visto não depender de
qualquer importação, decalque ou tradução, ao
menos directa, o que não aconteceu a nenhum
outro ismo, salvo o primeiro deles, que é só
excepção, o abjeccionismo parece estar hoje
semi-esquecido, fora de qualquer foco público de
atenção.
Confundir porém
obscuridade ou até olvido com envelhecimento
obsoleto seria erro grave que a deusa do devir
não nos perdoaria. O abjeccionismo vive hoje num
purgatório escondido, mas não no reino dos
mortos, onde a vida se apaga sem remédio.
Dir-se-ia que o presente ainda necessita de
ajustar contas com o passado – ou este não cessa
de tirar desforço do que tanto o incomodou. O
modo como o abjeccionismo subverteu sem excepção
o que o rodeava foi demasiado cru e teve
consequências demasiado graves e extensas para
não ser ainda hoje condenado a cárcere, já que
não pode, no domínio do espírito, sofrer pena
capital.
Fora das nossas
vistas, esquecido numa margem obscurecida do
tempo, fechado numa Bastilha inexpugnável,
exilado numa ilha distante a mando dos
poderosos, o abjeccionismo continua a pagar o
preço da sua larga e operativa originalidade,
não apenas estética, e da sua irreverência para
com as formas de arte e de pensamento do seu
tempo – e tão opostas e diversificadas elas
pareciam afinal ser.
Cabe-nos a nós
identificar a situação e abreviar esta pena
injusta. Impõe-se abrir um caminho neste
território desconhecido, traçar o mapa proibido
e aceder à fala com este exilado. O
silenciamento a que o abjeccionismo tem estado
sujeito não tem razão de ser; é abuso
intolerável. Seja ele uma extensão do
surrealismo – e houve quem lhe chamasse
metástase portuguesa do surrealismo – seja
um momento absoluto e diferenciado, o que
dificilmente se aceita, é sempre nele que
reside, sobretudo quando apreciado a partir das
suas privilegiadas ligações ao surrealismo,
indiscutíveis estas, um dos nós mais vivos e
exaltantes da criação portuguesa da segunda
metade do século XX.
Deixam-se de
seguida alguns dados que podem contribuir para
uma ideia mais segura do que foi a história do
seu nascimento e do seu desenvolvimento e ainda
algumas reflexões – a paixão historiográfica não
nos pode fazer esquecer as restantes tarefas do
pensar – que visam esclarecer o seu sentido e o
seu não sentido.
O NASCIMENTO DO
ABJECCIONISMO
Em Agosto de 1948,
Mário Cesariny, logo seguido por António
Domingues, entra em ruptura com o Grupo
Surrealista de Lisboa, que se formara no final
do ano anterior. Cesariny junta-se então a
António Maria Lisboa, a Pedro Oom, a Cruzeiro
Seixas e alguns mais, projectando o nascimento
do grupo “Os Surrealistas”. É no quadro das
acções deste grupo que surge o abjeccionismo.
Em Dezembro de
1949, A. Maria Lisboa redige parte de Erro
Próprio, conferência-manifesto. Os três
parágrafos finais do texto, que reflectem o
convívio próximo com Pedro Oom, são a matriz do
abjeccionismo.
Diz Lisboa:
Traz o Poeta em si os passos e as atitudes dum
Mundo Íntimo e Rico, mas depressa a vida oficial
e legal, a vida de toda a gente, da massa e seus
aproveitadores, lhe suprimem o direito à
existência, viver estranho e isolado num mundo
que pretendia habitado e harmonioso é viver
suicidado, viver morto-vivo num mundo de nado
morto. // Especado perante as cidades um novo
dilema se abre: – como comunicar numa
Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e
que para o Poeta não tem interesse a sua
subsistência? // Pergunta que cada um resolverá
como entender e na altura própria.
Numa carta de
Abril de 1950 a Mário Cesariny, A. Maria Lisboa
põe por escrito pela primeira vez a palavra
“abjeccionismo”: Serei ou não surrealista de
hoje para o futuro com a minha Metaciência e o
Nosso Abjeccionismo – eu não me pronunciarei
sobre tal.
Que entende A.
Maria Lisboa por “abjeccionismo”? A resposta
está nos parágrafos finais de Erro Próprio,
contemporâneos desta missiva. O abjecccionismo é
para o seu criador a “vida oficial e legal, a
vida de toda a gente”, quer dizer, o avesso do
mundo “íntimo e rico” que o poeta traz dentro de
si, mundo próprio da demanda surrealista. O
abjeccionismo é pois um “reverso”, um reverso do
surrealismo e não um exclusivo, como sucede com
a “sordidez” de Céline, esta sem saída e sem luz
de contraponto.
Em 1953, A. Maria
Lisboa, já fatalmente doente, depois de ter
publicado no ano anterior em edição de autor
Erro Próprio e Ossóptico, dá a lume
na chancela de Luiz Pacheco, Contraponto,
Isso Ontem Único, onde, no texto “Alguns
Personagens”, regressa a ideia de abjecção.
Assim: É no
poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si
perante e numa vida a que foi chegado. O mundo
social, o mundo como tal organizado, é o
obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos
com a felicidade e na luta contra ele à mais
pequena percepção do mundo autêntico – longínquo
aqui agora e inumano! // Mas precisemos: essa
inépcia não é filha da falta de possibilidades
em adquirir as capacidades necessárias para
seguir viagem, mais que resultado de
insuficiências, consequência da relação em que o
poeta se encontra com esse outro mundo que sendo
também do homem não é o do homem.
A abjecção é neste
importante trecho a inaptidão social do poeta. A
sociedade, com as exigências mercantis que
arvora e as regras de conduta que impõe,
condicionadas estas pelas outras, constitui um
obstáculo à viagem do poeta ao mundo
autêntico, ao mundo poético e surreal, fora
este do domínio social. O homem que se entrega à
moral social fica assim, em virtude dos valores
que aí o manietam, coarctado do mundo autêntico
da poesia. A sociedade é pois um obstáculo
sério, mas não absoluto, já que o poeta pode
objectar à moral social, vivendo à margem e
entregando-se a uma demanda paralela e sem
pontes de contacto com ela, sociedade. A
abjecção social – ausência de emprego, de
riqueza, de prestígio, de sucesso – é o preço
que o poeta tem de pagar em termos sociais pela
aventura que empreende. Em sociedade mercantil,
onde a moral social impõe valores suicidários do
“mundo autêntico”, o poeta não pode visar o
sucesso mas apenas a solidão – isso que A. Maria
Lisboa chama a “abjecção, de si perante”.
Depois da partida
do poeta de Ossóptico, em 1953, Luiz
Pacheco edita dele um texto que lhe teria sido
passado pelo próprio pouco antes de falecer,
Aviso a Tempo por Causa do Tempo (1956), em
folha única. Constituído por seis parágrafos e
uma conclusão, o texto tem uma feição de
manifesto colectivo – usa sempre a primeira
pessoa do plural – e na origem talvez se
destinasse a ser assinado por vários nomes; está
datado de Julho de 1953 mas pode ter sido
composto antes, entre 1950 e 1951, época em que
o grupo “Os Surrealistas” está ainda activo. É
decerto a mais libertária das declarações
surrealistas portuguesas (afastamento dos
partidos, do Estado, da polícia, da sociedade e
da família).
Tem interesse para
o estudo do abjeccionismo, pois de novo volta a
tocar a questão. O ponto 4 diz: “que sendo
individualmente e portanto abjeccionalmente
desligados das normas convencionais temos o
máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos
componentes da sociedade. Abstraindo da
ironia que se lhe segue, “abjeccionalmente”,
palavra que importa, surge aqui como o
modo do poeta recusar a “vida oficial e legal” –
na expressão do Aviso, as “normas
convencionais”.
Estamos de novo
ante a experiência individual e única dum
inverso, a do poeta, na procura ou percepção do
mundo autêntico, por contraste com a experiência
das convenções sociais, a de “toda a gente”. O
modo como poeta se desliga da sociedade,
enquanto obstáculo, para se poder consagrar à
viagem interior, à demanda do “mundo autêntico”,
é “abjeccional”, não por ser individual mas por
mostrar “inépcia” para com os valores sociais
dominantes (concorrência, mérito, disputa,
sucesso, vitória, prestígio). O lugar do poeta
abjeccionista é pois na margem, numa não
participação absoluta, numa objecção permanente
aos valores da sociedade.
No rescaldo do
horror da primeira metade da década de 40 do
século XX, o abjeccionismo português nasce como
uma teoria altamente elaborada da objecção de
consciência. É por um lado na voz dum grupo de
jovens de vinte anos um uivo fortíssimo de
recusa, o NÃO mais categórico e maiúsculo que
até hoje entre nós se gritou, e por outro é o
grito eufórico, a expressão alta de alegria de
quem tem ante si a pesquisa, o encontro e o
aprofundamento do mundo autêntico.
Os três parágrafos
finais de Erro Próprio, de 1950, a carta
a Cesariny, também de 1950, em que se escreve
pela primeira vez a palavra “abjeccionismo”, o
texto “Alguns Personagens” de Isso Ontem
Único e o ponto 4 de Aviso a Tempo por
Causa do Tempo, em que se adverbializa a
experiência da abjecção, passando ela a ser
tão-só uma via de desprendimento, ou de não
compromisso na selva social, podem ser tomados
como momentos fundadores do abjeccionismo. Estes
textos capitais são da autoria de António Maria
Lisboa, se bem que resultem do convívio com pelo
menos Pedro Oom e Mário Cesariny.
Em 1955 começam as
reuniões nos cafés Gelo e Royal, onde se reúnem
os sobreviventes da geração que aderiu ao
surrealismo em 1947, que fora entretanto
dispersa pela pressão da realidade, e uma nova
geração, nascida já, com excepção de Virgílio
Martinho, na década de 30. É no seio desse novo
cenáculo que o abjeccionismo viverá renovados
desenvolvimentos, com uma síntese previsível já
na teorização inicial de Lisboa, o
surreal-abjeccionismo, e com a reanimação dum
neologismo, o neo-abjeccionismo, cujo criador e
protagonista, quase exclusivo, será um dos
elementos da velha guarda de 45, Luiz Pacheco,
ligado por estreitos laços de parentela aos
“Surrealistas” e em especial a Lisboa e a
Cesariny.
A RECRIAÇÃO
NEO-ABJECCIONISTA
Em Janeiro de 1959
Luiz Pacheco é processado pela mãe de Maria
Eugénia Soares Barbosa, menor de 14 anos, por
manter com esta uma relação sexual desde há dois
anos. Fica sujeito a mandato de captura se não
pagar fiança de três mil escudos. Luiz Pacheco,
ainda funcionário da Inspecção Geral de
Espectáculos, foge para Itália, onde deambula
cerca de duas semanas com licença sem
vencimento; regressa a Portugal, pede rescisão
de contrato, paga uma fiança provisória que leva
à suspensão do mandato de captura e abandona a
família, passando a dormir em quartos de aluguer
(e às vezes em escadas). Nasce o primeiro filho
de Maria do Carmo Matias, de 17 anos, antiga
empregada da sua mulher Maria Helena Conceição
Alves, que por sua vez era uma antiga empregada
de sua mãe e com quem fora obrigado a casar no
limoeiro em 1947.
Por essa altura
edita na Contraponto Diálogo entre um padre e
um moribundo de Sade. Assume o epíteto
“libertino” e concebe, ele que editara até aí
apenas meia dúzia de textos jornalísticos, sem
grande alcance, ser autor duma literatura nova,
a que chamará dois anos mais tarde
neo-abjeccionista. Ainda no ano de 1959 cunha a
expressão “picto-abjeccionismo” para a acção
plástica de Cesariny – que expõe em 1959 na
Galeria Divulgação do Porto. Por sua vez, Mário
Cesariny, na nota introdutória a Caca, Cuspo
e Ramela, edição sua (1959), diz estar a
laborar com excrementos orgânicos.
Luiz Pacheco, no
Outono, tem novo mandato de captura da Boa-Hora,
sendo preso em Dezembro no Limoeiro. Em Janeiro
de 60 é julgado e absolvido na Boa Hora pelo
juiz Arelo Manso – a única prova de incriminação
do réu era um beijo dado na rua em forma de
cumprimento. Em Maio morre, em Bucelas, o seu
pai, sem que Pacheco tenha estado presente ao
funeral. Este processo de ruptura com a
estabilidade profissional e familiar, que
aconteceu entre 1958 e 1960, foi decisivo para
Pacheco vivenciar por dentro o “abjeccionismo”,
pondo em prática a rejeição da sociedade, que na
teorização de A. M. Lisboa é o preço a dar pela
aventura interior, o reverso necessário para o
poeta ficar disponível para contactar o mundo
autêntico. Sem rejeição social não há
disponibilidade para partir ao encontro do mundo
autêntico.
Pacheco foi assim,
com M. Cesariny, que se recusou sempre a ser
escravizado pelo salário (e em 1953 foi
humilhado pela polícia com um processo de
costumes que durou anos), e com A. Maria Lisboa,
que pagou com a vida a recusa em se deixar
arregimentar pela engrenagem social (a sua
tuberculose foi contraída em Paris, onde viveu
meses sem dinheiro para comer, a dormir em
escadas), aquele que mais autoridade ganhou em
termos de experiência de rejeição social. A sua
objecção concreta às instituições sociais foi
larguíssima – era originário de meio rico, culto
e burguês (os avós eram generais do exército) –
e deu lugar a um rol de experiências únicas, a
célebre mitologia pachecal que ele
próprio se encarregou de explorar na sua
literatura, toda de natureza autobiográfica. É
no quadro dessa euforia – nada menos do que a
criação dum novo mito e dum novo tipo de crítica
(em que a vida do autor se torna mais premente
do que a obra – Pacheco chamar-lhe-á na síntese
final de 71 (Notícia, 17-10-1971)
crítica de identificação (diz-me quem és e
como ages, dir-te-ei o que escreves) – que
germina, dez anos depois da redacção e
apresentação de Erro Próprio, o
neo-abjeccionismo.
Em 1961 nasce o
segundo filho de Pacheco e de Maria do Carmo. Em
Outubro, numa viagem pelo Minho com António José
Forte, Pacheco escreve O Libertino passeia
por Braga, a Idolátrica, o seu esplendor,
relato de experiências sexuais libertinas
(hetero e homossexuais, com forte presença da
pedofilia e do onanismo), relato impublicável,
que só verá a luz em Janeiro de 1970, numa
edição clandestina (de Vítor Silva Tavares) que
não foi ao circuito livreiro. Luiz Pacheco e
Maria do Carmo Matias vão no Outono para
Almoinha, Sesimbra, casa (Luiz Pacheco
chamar-lhe-á numa carta para Natália Correia
“buraco”) paga pelo editor Eduardo Salgueiro,
para quem Pacheco faz trabalhos de revisão e
tradução. Escreve na Almoinha a novela O
Teodolito, que será apresentada como o
primeiro exemplo de composição
“neo-abjeccionista”.
Porquê
“neo-abjeccionismo” e não “abjeccionismo”? Dez
anos após os textos de Lisboa, que Pacheco
conhecia bem, chegou até a editar dois deles,
quis marcar a diferença, que é apenas de tempo,
nunca de sentido. A abjecção e a neo-abjecção
são a experiência social, sempre de
rejeição, sempre de negação, daquele que se
consagra ao conhecimento interior e à conquista
da liberdade. Por força da experiência vital de
Luiz Pacheco, e das suas sucessivas rupturas,
mitologizadas de imediato, como sucede n’ O
Teodolito, historieta de relação sexual dum
menino burguês com uma criadita de servir
acabada de chegar da província, relançamento em
força do abjeccionismo junto da geração do café
Gelo.
Se não existe
diferença de qualidade entre o abjeccionismo e o
seu novo consequente, mas apenas distância
temporal, existe ao menos uma diferença de
intensidade. Ao invés do que sucede com Lisboa e
Cesariny, que negam para conquistarem a
liberdade de afirmar, Pacheco parece
concentrar-se na negação. A objecção é um fim em
si mesmo; logo, a aventura interior, a demanda
do surreal é muito mais tímida em Pacheco. A
literatura deste é uma literatura do não; não se
pode conceber para ele um livro como
Ossóptico, consagrado quase em exclusivo à
percepção do mundo autêntico. No
neo-abjeccionismo o reverso negro da negação, a
objecção às instituições sociais domina sobre a
face luminosa e eufórica da afirmação.
Daí o papel que o
biografismo assume no neo-abjeccionismo, quer
como criação, quer como acção crítica. É
porventura o único movimento impossível de
abordar sem a biografia do seu criador. São os
passos da vida de Pacheco que criam este “neo” e
não o inverso. Luiz Pacheco foi um dos raros
escritores do século XX português que teve uma
biografia, que conquistou o direito a viver a
vida que quis e não aquela que as circunstâncias
o empurravam a viver. A maior parte dos nossos
escritores adiou e adia por razões várias a sua
vida, que acabam por trocar pelo dia a dia
impessoal, monótono, convencional, que o meio
social impõe. Ele, Pacheco, libertou-se das
condicionantes sociais e assumiu uma vida só
dele, construída e decidida por ele, no
confronto constante com as instituições e na
assumpção livre dos seus instintos sexuais. Luiz
Pacheco decidiu, bem ou mal, e em geral bem, a
sua própria biografia, enquanto a maior parte de
nós tem a folha biográfica que a sociedade nos
determina.
No início de 1962,
escaramuças entre Luiz Pacheco e Mário Cesariny
por causa da edição das obras de António Maria
Lisboa na Guimarães Editores, que saem nessa
altura. Em Maio deste ano terminam os encontros
no Gelo, trocado pelo café Nacional. Luiz
Pacheco e Maria do Carmo deixam na Primavera
Almoinha e depois duma rápida passagem por
Lisboa seguem para a terra desta, Macieira,
concelho da Sertã. Cesariny lê com entusiasmo
O Teodolito e decide integrá-lo na
colectânea em preparação. Luiz Pacheco edita na
Sertã o 3.º número dos cadernos Contraponto,
quase só com colaboração surrealista (Ernesto
Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho,
Natália Correia, Manuel de Lima). No Verão Maria
do Carmo deixa a Macieira e vem para Lisboa
(para casa de Natália Correia). Luiz Pacheco
inicia uma relação com Maria Irene, 13 anos,
irmã mais nova de Maria do Carmo. Em Novembro
vêm os dois para Lisboa e Pacheco vive um curto
período com as duas irmãs. No final do ano,
depois de fazer a dinheiro grande parte da sua
biblioteca e da biblioteca que herdou do pai,
foge com Maria Irene, já grávida, e com os
filhos de Maria do Carmo, para Setúbal.
Desaparece por incúria vária o espólio de A.
Maria Lisboa que Pacheco recuperara do lixo em
53 e deixara depois de Almoinha – nesta o
espólio ainda estava na sua posse – em vivenda
da Parede.
A SÍNTESE
SURREAL-ABJECCIONISTA
Mário Cesariny, no
ano em que edita Caca, Cuspo e Ramela
(1959), o seu conjunto mais abjeccionista, com
fortíssima carga lexical na área da abjecção
(jazigos, escarradores, urinóis, larápios e
poetas…), planeia colectânea de colaborações
surrealistas e abjeccionistas. Coincide com o
momento em que Luiz Pacheco cria a designação de
picto-abjeccionismo e entra em ruptura
definitiva com a engrenagem social em que estava
inserido. É o ano em que rescinde contrato,
abandona o emprego e a família, responde por
atentado ao pudor de menor e volta a ser preso
no Limoeiro (estivera lá primeira vez em 1947)
mas é também o ano em que Pacheco publica (pela
mão de Cesariny) o seu primeiro opúsculo,
Carta-sincera a José Gomes Ferreira, logo
saudado por João Palma-Ferreira (Diário
Popular, 7-5-1959) como o primeiro fruto dum
dos críticos mais acutilantes e completos de
sempre.
O
surreal-abjeccionismo de M. Cesariny não se
confunde porém com o neo-abjeccionismo de
Pacheco. Este é uma objecção total, se bem que
não exclusiva, já que pretende afirmar a
fantasia do instinto sexual, enquanto o
primeiro, na linha de Lisboa, é uma tentativa de
encontrar a unidade, pondo em contacto o verso e
o reverso do mesmo caminho.
No início do ano
de 1962 surge talvez a primeira alusão pública
ao surrealismo-abjeccionismo [Jornal de
Letras e Artes, 17-1-1962] e à colectânea
que Cesariny está a organizar. O número do
jornal traz antologia surreal-abjeccionista nas
páginas centrais (ainda sem Luiz Pacheco, tanto
mais que nesse momento estala a polémica entre
Pacheco e Cesariny por causa das obras de Lisboa
editadas na Guimarães). Presentes: Helder
Macedo, José Sebag, Natália Correia,
Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa,
António José Forte, António Porto-Além, Luís
Veiga Leitão, Pedro Oom e Carlos Loures.
Primeiro ensaio daquilo que será a colectânea
Surrealismo-Abjeccionismo, organizada por
Cesariny, momento cimeiro da aglutinação dos
dois movimentos, se é que se pode falar, desde o
impacto teórico de Lisboa, de dois movimentos
distintos e não apenas das duas vertentes da
mesma realidade.
Em Março do ano
seguinte entrevista ao Jornal de Letras e
Artes de Pedro Oom (6-3-1963). É um dos
momentos altos da síntese surreal-abjeccionista,
se bem que nele, mas de modo muito mais teórico
do que em Pacheco, já que os passos de vida de
Oom são muito mais limitados que os de Pacheco,
o rosto negro da abjecção domine sobre o
desassombro solar da realidade sublime.
Na entrevista
faz-se a valiosa destrinça entre angústia e
abjecção, realidades inconfundíveis, que nunca
se cruzam ou se sobrepõem. Com a teorização de
Oom, que desenvolve a de Lisboa, tanto mais que
a deste nasceu em diálogo com ele, o
abjeccionismo descarta de vez qualquer afinidade
com o existencialismo, então em voga entre nós
por via da literatura de Vergílio Ferreira ou da
ensaística de António Quadros. Esta distinção é
talvez o contributo decisivo de Oom. Afirma ele:
Numa sociedade dualista, dividida entre duas
grandes forças antagónicas (…), o Poeta só tem
como alternativas a angústia ou a abjecção. Se
escolhermos esta última atitude é porque ela nos
mantém ainda uma réstia de esperança quanto ao
destino do Homem.
A esperança de que
fala Oom é afinal a mesma que empresta ao
surrealismo a sua natureza de aventura solar. Se
Oom nega relação entre angústia e abjecção,
alternativas absolutamente distintas, caminhos
separados e paralelos, já surrealismo e
abjeccionismo parecem funcionar como os vasos
comunicantes dum mesmo tubo. Diz Oom: Entre
surrealismo e abjeccionismo existem muitos
pontos de contacto, relações de parentesco muito
próximo. No abjeccionismo, que é antes de tudo
uma atitude concebida para a sobrevivência do
indivíduo sem lhe coarctar a livre floração da
personalidade (…), também se acredita numa
Realidade Absoluta e o seu fim é o mesmo do
surrealismo: a transformação dos valores básicos
da sociedade dita “moderna”, dita civilizada,
através da transformação moral e espiritual do
indivíduo isolado (…).
É nesta entrevista
que aparece formulada a pergunta: que pode
fazer um homem desesperado quando o ar é um
vómito e nós seres abjectos? Esta pergunta,
que se costuma apresentar como imagem de marca
do abjeccionismo, é afinal a reelaboração do
penúltimo parágrafo de Erro Próprio,
também ele uma pergunta (como comunicar numa
Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e
que para o Poeta não tem interesse a sua
subsistência?). A célebre consigna de Oom
virá pois do final da década de 40. Tudo leva a
crer que tenha sido formulada em conversas com
A. Maria Lisboa sobre os parágrafos finais de
Erro Próprio, pois não custa encará-la como
uma variante deles. Este conjunto textual, a que
se junta a carta de Lisboa a Cesariny de Abril
de 50, faz prova dum abjeccionismo já então
assumido em grupo.
Outro momento alto
da síntese surreal-abjeccionista é a saída na
mesma altura da colectânea organizada por
Cesariny, Surrealismo-Abjeccionismo, que
desde 1959 estava a ser pensada e montada.
Apareceu finalmente em Março de 1963, na editora
Minotauro, de Bruno da Ponte, um homem discreto
mas interveniente, próximo do surrealismo, com
subtítulo “antologia de obras em português
seleccionada por Mário Cesariny de acordo com o
propósito inicial” e com duas epígrafes
comunicantes, uma de André Breton e outra de
Pedro Oom, recolhendo 32 autores, entre
pictóricos e poetas. Aparece aí pela primeira
vez – a fortuna editorial ulterior será grande –
a “composição neo-abjeccionista” de Luiz
Pacheco, O Teodolito.
Não é irrelevante
que no momento em que se dá a síntese dos dois
momentos, ou a justaposição dos dois lados da
peça, verso e reverso, franjas soltas do
neo-realismo, como Irene Lisboa, Joaquim
Namorado, Veiga Leitão ou José Leonel Rodrigues,
sejam chamados a comparecer. A inapetência do
poeta para os valores sociais dominantes, a isso
se chama abjeccionismo, acabou aí por funcionar
como a ponte possível entre o surrealismo, mais
nefelibata, ocupado que estava com a tentativa
de encontrar uma realidade absoluta, primordial
e intocada, na posse ainda de todos os poderes
originais, e o realismo chão, consagrado à
denúncia da miséria em sociedade civilizada.
Lançamento do
volume na Casa da Imprensa a 30 de Março, com a
presença de Mário Cesariny e dalguns autores,
que leram os seus textos. Luiz Pacheco, em
Setúbal, não compareceu, mas enviou texto
inédito, “O que é o neo-abjeccionismo”, lido por
Cesariny. Ao invés do que o título possa
indiciar, não é um texto teórico mas tão-só um
pedido de esmola. Cumpre-se assim a visão
teórica de A. Maria Lisboa: o poeta, homem
livre, vive estranho e isolado (…), vive
suicidado, morto-vivo num mundo de nado morto.
Em Maio nasce Paulo Eduardo Pacheco, primeiro
filho de Maria Irene Matias e Luiz Pacheco.
No início do ano
de 64, Cesariny vai para Paris, com uma bolsa da
Gulbenkian. Cruzeiro Seixas regressa a Lisboa
depois dum longo exílio de 14 anos em Luanda. Em
Maio Pacheco escreve Comunidade e no
Outono faz um novo pedido de esmola por escrito,
O Cachecol, editado em Santarém por A.
José Forte. No final de Dezembro, abandona
Setúbal com os filhos e Maria Irene, com destino
às Caldas da Rainha. Mário Cesariny, apanhado em
flagrante numa relação homossexual num cinema de
Paris, é preso em Fresnes (Outubro e Novembro),
cruzando-se no Natal, em Lisboa, com Luiz
Pacheco, em viagem para as Caldas.
A REVISTA
ABJECÇÃO
É o derradeiro
momento alto da síntese surreal-abjeccionista. e
outro ainda é a projecção, em 1965, da revista
chamada Abjecção, que nunca chegou a
aparecer)
1965 – Luiz
Pacheco instala-se nas Caldas da Rainha.
Virgílio Martinho contacta a editora Ulisseia
(Vítor Silva Tavares e Edite Soeiro), que se
interessa em editar Luiz Pacheco. Entrevista de
João Rodrigues ao Jornal de Letras e Artes
(15-9-65); afirma-se abjeccionista e define o
surrealismo português como sendo um
abjeccionismo adulto e apto a ganhar a vida.
Em Agosto, nasce o último filho de Luiz Pacheco
e de Maria Irene. Fernando Ribeiro de Mello
(n.1942) surge como editor (Afrodite) com a
publicação de Kamasutra. Natália Correia
organiza para Ribeiro de Mello a Antologia de
Poesia Erótica e Satírica e pede colaboração
a L. P., que envia “Coro de Escarnho e
Lamentação dos Cornudos em Volta de S. Pedro”. A
colectânea, com ilustrações de Cruzeiro Seixas,
surge em Novembro e é logo apreendida pela
polícia. São processados Fernando Ribeiro de
Mello (editor), Natália Correia (organizadora) e
alguns autores, entre eles, Pacheco e Cesariny.
Este último edita em Dezembro A Cidade
Queimada (Ulisseia), também com
ilustrações de Cruzeiro Seixas.
Nasce e
desenvolve-se ao longo do ano o projecto de
fundar uma nova revista, definida e
decididamente abjeccionista. Chegou a ter vários
títulos, o definitivo Abjecção. A ideia e
o nome definitivo pertencem a Cruzeiro Seixas.
Primeira alusão em início de Abril – carta de L.
Pacheco para Mário Cesariny. Assim (Pacheco
versus Cesariny, 1974: 125): “Recebo hoje
carta-postal do Seixas a falar-me numa revista
abjeccionista e em ti.” De seguida carta de
Pacheco para Cruzeiro Seixas, ainda de Abril.
Assim (1974:133-5): “Uma revista
abjeccionista é precisamente o que eu desejaria
publicar. Tenho colaboração para a mesma. Tenho
projectos. Estou a organizar um ficheiro.
Suponho que teremos público. (…) Vai entretanto
assentando ideias porque esta revistinha pode
ser o nosso futuro e o de muita gente. Tens
título? A que estava fazer em Santarém, por
incumbência do Forte (que, preso, teve de
desistir), chamava-se, ora vê lá se adivinhas…
chamava-se O Crocodilo que Voa.” A
resposta de C. Seixas diz (1974: 136): “Tenho
o maior interesse em falar contigo. Vai pensando
que a revista que penso seria qualquer coisa
como Le Surréalisme Même. Muitas gravuras
e não poucas traduções.” Ainda em Abril, em
nova carta a Luiz Pacheco, Seixas acrescenta: “Isto
quanto à revista nossa, Abjecção, que tu
confundes com outra que anda no ar em projecto,
e que será fabricada sob as brumas londrinas.
Esclareço: a ideia da Abjecção-revista, partiu
de mim. A ela aderiu desde logo com o seu
entusiasmo (…) o Pedro Oom que começou a fazer o
arranjo gráfico, com os elementos que se iam
reunindo. O Mário, da outra banda, aderiu também
com o seu entusiasmo, mandando logo coisas e
prometendo outras (enviado especial da
Abjecção, em Paris, sob o pseudónimo de
Coreto da Costa). Procurámos o Virgílio Martinho
que também se entusiasmou, fazendo pensar que
esta ideia era realmente uma das muitas fomes de
muitas gentes. (…) Tu por carta também te
mostraste interessado.” Postal de 2 de Maio
de A. José Forte para Luiz Pacheco alude ao
dinheiro em jogo (1974: 141): “Estive na
passada segunda-feira em Lisboa com o Seixas, P.
Oom, Virgílio e Sampaio. Afinal a ideia do
Seixas é uma antologia-revista, coisa que irá
ter aos vinte contos. Será portanto apresentada
a uma editora e, se falhar, ao Vinhas.” A
editora em causa é a Ulisseia, que edita nesse
momento Cesariny, Manuel de Lima e Luiz Pacheco.
Em carta de Cesariny a Pacheco de 18 de Maio
(enviada de Londres) temos a posição do
destinatário (1974: 150), então muito próximo de
Seixas: “Abjecção. Se essa revista pega, se
dá alguns números, tenho várias coisas na manga.
Para já, para uma capa ou para lá dentro, um
extraordinário bicho, o primeiro grande
abjeccionista vivo. Já fiz três desenhos.
Encontrado no Museu de História Natural, que é
aqui perto, deu-me cabo dos olhos para muito
tempo. Está ali tudo.” Em início de Junho
tudo está bem encaminhado (carta de Virgílio
Martinho a Luiz Pacheco, 1974: 160): “De
facto creio que o Abjeccionismo vai para a
frente. Estou admirado com o Forte: não apareceu
nem mandou nada até hoje. Teria ido para Paris?
Oxalá que sim. Um sonho é um sonho. Convidei
para colaborar o Vítor [Vítor Silva Tavares].
Ele ficou encantado. Talvez seja uma pessoa a
considerar, um testemunho abjeccionista.”
Recorde-se que V.S.T. é de momento um dos
directores literários da Ulisseia. Em final de
Julho, em carta de Pacheco para Cesariny, novas
informações (1974: 177): “Da revista do
Seixas nunca mais soube nada, ou soube e não
gostei. De duas idas a Lisboa e em dois meios
diferentes, ou talvez não: só separados, notei
uma insuspeitada alegria por a revista ainda não
ter saído, ou já não sair ou ter dificuldade em
sair. Foi em casa da Natália, que a princípio
tanto gosto tinha demonstrado em ser convidada a
colaborar; e foi no Letras e Artes (…) o
que é natural porque estes não querem que haja.”
A 8 de Setembro chega a carta decisiva de
Cruzeiro Seixas a Luiz Pacheco, que concretiza
um plano de colaborações para três números da
revista. A carta abre desta forma (1974: 195): “Aqui
estou para o que der e vier, e principalmente
para a publicação de (pelo menos) três números
da Abjecção”. Entre o material a incluir,
Seixas aponta: Sade, Lewis Carrol, Mariana
Alcoforado, Bocage (o pior, diz ele), Jacques
Vaché, objectos etnográficos e fotografias de
“prostituição” masculina. Luiz Pacheco responde
ainda em Setembro, dizendo (1974: 202): “Do
que vi e pesei em casa do Ernesto Sampaio, me
pareceu que já havia material para 3 revistas
únicas no género, dispendiosas na impressão,
muito de espantar o Burguês, o Polícia e até o
Padre, já não falando no Pateta (…). Uma revista
corajosa. Uma revista como não há, uma revista
que está a fazer falta. Vistas as partes, eis o
que seria de fazer: Oom, doente, Virgílio,
ausente, Sampaio, reticente, Cesariny, diatante,
eu, caldense, Natália, ?, Lima, intrigante… O
que fica, de mexido, é muito pouco. A bem dizer
és só tu. Portanto, pegares no material que há,
mas há nas mãos não em promessas ou possíveis
arranjos, limpares o que seja de excluir,
implacavelmente, e pesares. Se tiver ainda
dimensão de revista, prá frente!” Sobre a
questão do editor, acrescenta-se: “Aliás, a
pensar num Editor, que é a fase em que estamos,
e a prever que seria a Ulisseia, que é
igualmente a fase em que estamos, não há tempo a
perder. A editora deve estar a fechar, segundo
suponho, este mês a próxima temporada.”
Depois desta carta, salvando a resposta quase
imediata de Seixas (15 de Setembro), assentindo
às indicações de Pacheco, perde-se o rasto da
revista. Que se passou? Em Novembro saiu a
Antologia de Poesia Erótica e Satírica, logo
apreendida e processada, a que se seguem no ano
seguinte novos livros e novos processos
judiciais, quer da Ulisseia, quer da novel
editora de Ribeiro de Mello.
1966 – Em Janeiro
Luiz Pacheco escreve e edita em copiógrafo
Comunicado ou Intervenção da Província, onde
alude à prisão em Fresnes de Cesariny, o que
leva à indisposição deste. Em Março, saída de
Crítica de Circunstância (Ulisseia; capa
João Rodrigues e pref. Virgílio Martinho),
imediatamente apreendido. Pela mesma altura
acaba de escrever o prefácio para a tradução
portuguesa de La Philosophie dans le boudoir,
de D. A. F. de Sade. Escolhe para epígrafe o
episódio lisboeta de Aline et Valcour,
referido na carta de Seixas do início de
Setembro de 65. No final de Março saída do
livro, logo apreendido pela polícia; são
processados todos os implicados (editor,
prefaciador, ilustrador e tradutores). Crescem
as ameaças ao sector implicado nas edições. O
Diário da Manhã assevera o seguinte em
primeira página (9 de Abril): “Cadeia ou
Hospício. A Polícia Judiciária anunciou, há
dias, a apreensão de diversos livros imorais e
pornográficos em diversas regiões do País.
Chegou-nos agora às mãos um exemplar de uma das
obras (…). As depravações sexuais
abomináveis são ali expostas (…) com uma crueza
tão revoltante (…) que nos recusamos a aceitar
como pessoas humanas aqueles que as difundem,
apoiam e delas fazem o elogio. O
homossexualismo, a sodomia, o incesto são ali
propagandeados como se de virtudes se tratasse.
A juntar a isto, um dos prefaciadores permite-se
insultar a magistratura do tribunal da Boa Hora,
por onde se gaba de já ter passado. Torna-se
claro que a indivíduos deste estofo não poderá
permitir-se-lhes o contacto com uma sociedade
medianamente digna. O caminho só poderá ser ou a
cadeia ou o hospício.
A Ulisseia desiste
de publicar a revista Abjecção, na
certeza que seria logo apreendida, processada e
destruída. Em Agosto, edição (Ulisseia) de A
Intervenção Surrealista, org. de M.
Cesariny, que recolhe a já citada entrevista de
Pedro Oom (1963); evita porém alusões novas ao
abjeccionismo, vítima do desentendimento entre
Cesariny e Pacheco por causa de Comunicado ou
Intervenção da Província. Crítica feroz de
Pacheco ao livro, “O Caprichismo Interventor do
Sr. Mário Cesariny” (Jornal de Letras e Artes,
n.º 251, 7-9-1966).
O
DESAPARECIMENTO
1967 – Em Maio
suicídio de João Rodrigues. Luiz Pacheco edita
em Alcobaça Textos locais (Contraponto).
Em Maio é preso nas Caldas da Rainha por via dos
processos judiciais em curso; solto, mediante
fiança paga pela família Maldonado de Freitas
das Caldas, a de Junho. Em Novembro julgamento
no Tribunal Plenário de Lisboa do processo da
edição de Sade e condenação dos implicados. Luiz
Pacheco com pena agravada por ofensas à
magistratura.
1968 – Ruptura
entre Virgílio Martinho e Mário Cesariny por
causa de texto que o primeiro queria dar a lume
sobre Textos Locais. Em Maio Luiz Pacheco
é de novo preso nas Caldas; em Agosto
transferência para o Limoeiro, donde sai no
final de Dezembro.
1970 – Julgamento
e condenação no Tribunal Plenário de Lisboa dos
implicados na Antologia de Poesia e Erótica e
Satírica. Manuel Vinhas ajuda L. Pacheco a
pagar a fiança, que o salva de nova prisão.
1971 – Luiz
Pacheco publica no Diário de Lisboa (11
Fevereiro), “O que é um escritor maldito”, com
valiosos elementos para se perceber a sua noção
social de “maldição”. O maldito, que se
caracteriza pela pedincha, pela loucura, pelo
homossexualismo, pela boémia, pela cadeia ou
pelo exílio, é uma das metamorfoses finais do
abjeccionista como inadaptado social.
1974 – Morte de
Pedro Oom (26 de Abril). Em Junho aparece
Pacheco versus Cesariny, onde se dão a lume
as cartas trocadas em 1965 sobre a revista
“Abjecção”. Mário Cesariny responde publicando
Jornal do Gato, onde, numa nota de
rodapé, no quadro da sua ruidosa altercação com
Pacheco, aproveita para entrar em ruptura com o
abjeccionismo (1974: 22): Escrevi num livro
dedicado a Buñuel: “aqui e agora e sempre em
todo o lado o surrealismo não tem nada que ver
com o abjeccionismo ou só terão de comum o
haverem-se conhecido, na cadeia, onde vai tanta
gente por tão diversos cantares, e alguns só por
recreio, visita de estudo e turismo.” Que o ar
é/era um vómito, isso sim seria verdade mas
sempre mais em relação ao tecto do que ao
caminho apesar de tudo andado. “o ar que todos
respiram” não serve de identidade à forma de
respiração (“a moralidade de cada um”). O ar
respirado por António Maria Lisboa é sem
intermediários e altamente destrutor do ar
absorvido por Luiz Pacheco em terceira ou quarta
narina, enquanto o aparelho respiratório de
Pedro Oom não o deixou sobreviver a uma rajada
de ar puro. Pode continuar-se esta lista de
diferenças até ao arrebentismo grato a L. P.,
mas acho que se trata de uma lista errada. A
abjecção promovida por condições sócio-políticas
será a única a explicar a vagabundagem do poeta?
Sabemos que não. Artaud fugiu espavorido da
democracia francesa dos anos trinta, Mayakovsky
suicidou-se em plena gesta do comunismo russo. A
estes dificilmente se poderá contar o conto do
abjeccionismo nos termos em que, ao contrário do
surrealismo, faz ditosa carreira em Portugal.
Precisamente: entre os “abjeccionistas”
portugueses ninguém abandona o local de
trabalho, ninguém descura mostrar ao vizinho o
abjecto comum, ninguém mata, ninguém se mata,
ninguém enlouquece entre os taraumaras. (…)
Pedro Oom desaparece no momento mesmo do
primeiro raio de sol e tanto basta para podermos
avaliar da sua constipação, da sua sinceridade.
1977 – Edição de
António Maria Lisboa na Assírio & Alvim, com
organização e notas críticas de Mário Cesariny e
sem intervenção de Luiz Pacheco. Cesariny
reitera nas notas finais a Erro Próprio a
sua desvinculação do abjeccionismo – ele que
fora entre 1959 e 1963 o artífice do
“surreal-abjeccionismo”. Cito (1977: 392-3):
Ordenando e vitalizando preocupações do grupo
anti-grupo de 1949-1951 e, mais fundo, as do
anterior convívio com Pedro Oom, do qual colhe e
leva às últimas consequências a ideia ou sentido
de abjecção, recolhe contribuições por vezes não
identificadas ainda que postas entre asteriscos.
É o caso (p. 41 da ed. Guimarães) das palavras “experiência
de suicídio”, citação de palavras minhas, eu
já oposto ou alheio ao “abjeccionismo” de P. O.
Que, recordo bem, gostava de dizer, de já não
sei que poeta francês, esta “máxima”: “C’est au
fond de l’abjeccion que la pureté attend son
oeuvre.” Para mim, hoje como há trinta anos,
esta máxima não passa de semi-mínima. É evidente
que o homem não é uma flor (o lotus) que se
alimenta do lodo e quanto mais lodo ingere mais
lotus fica. O contrário será mais verdadeiro:
quanto mais infectado, mais infeccioso.
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