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Alessandro Zir
(Brasil).
PPGICH/UFSC,
GIFHC-ILEA/UFRGS.
azir@dal.ca
http://www.aletche.blogspot.com.br/2012/07/blog-post.html |
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ALESSANDRO
ZIR
Conversa de
etiqueta
(peça
em ½ ato)
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Personagens:
Alessandro Zir, Cão
de Gado Trasmontano, Ermelinda Bezerril, Estela Guedes, Herdeira
do Vale de Lágrimas, Julieta, Sibila, Sibila Velada, Toby, Um
Equivalente de Paul Valéry, Virgem dos Lobos.
Espaço
cênico, cenografia, sonoplastia e iluminação:
Zuckerberg Intima
Teatern.
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SIBILA
(Velha e doente,
rugas talhadas a formão.)
Mas que petulância!
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ESTELA GUEDES
(Agarrada a uma
jangada. Ao fundo, ruínas de uma estrutura magnífica.)
Então você acha que
eu não devo ir?
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SIBILA
(Rosto subitamente
contorcido como de um tigre de quem arrancaram um osso das
patas.)
Essa mulher é uma
grossa. Quinhentos anos no formol — ou melhor, champanhe
misturada com caipirinha — e nem uma vírgula mais delicada. Você
deveria ir jantar é com a Calmundelei.
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ESTELA GUEDES
Calmundelei?!
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SIBILA
(Corte chanel de
bico. Casaco de pele.)
Um desastre que
conheci através dela no ano passado. Nunca vi coisa mais
pedante. Parte o pãozinho com faca. O marido, que tem adoração
por pudim de tapioca, pela mão só cumprimenta outros homens.
Exige que os casais que recebem em casa durmam em camas
separadas! Na verdade, estão sendo processados pelos pais dos
dois meninos que adotaram na Índia!
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ESTELA GUEDES
De fato, os
brasileiros são admiráveis, exatamente como os portugueses. Só
lhes acho um defeito — o hábito de estarem sempre numa de charme
e sedução. Nós portugueses, ao contrário, temos o defeito de
ficar sempre em guarda. Somos reservados e não estamos
habituados a tantos querido e querida...
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ALESSANDRO ZIR
(Traje de virgem
dos lobos, caminha em direção à praia e para para admirar os
jardins. Murmúrio de abelhas. Flores lilases, folhas cinzas e
cor de prata.)
Odeio querido e
querida, soa extremamente falso. As pessoas com quem interajo
ainda bem que não usam. Eu uso muito senhor@ aqui, com gente
mais velha que não conheço, por exemplo, mas às vezes de fato
estranham.
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ESTELA GUEDES
Tu és um europeizado,
Alessandro Zir, um crédito para o teu país! És dos raros
brasileiros que conheço a aceitar o tu sem pestanejar e a
retribuir sem que o outro pestaneje.
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ALESSANDRO ZIR
O tu é comum no Rio
Grande do Sul, mas generalizado (usam tu pra tudo) e dai fica
difícil fazer qualquer distinção de tratamento, por isso me
agarro no senhor@. E o tu tal como usado em Porto Alegre tem uma
particularidade estranha: usamos conjugado na 3a
pessoa (tu faz). Quer dizer, para um porto-alegrense, usar tu
com conjugação de 2a pessoa (tu fazes) soa empolado.
Talvez seja fruto da capital ter ficado a meio caminho entre o
Rio Grande do Sul e São Paulo (que usa você, naquele que é
também o padrão televisivo, moderno do país). Eu acho importante
manter o senhor@, por causa da variedade (não ter formas
diferenciadas de tratamento nivela todas as pessoas, a
intimidade acaba tão desgastada quanto o respeito e desaparece a
possibilidade de transgressão). Minha experiência no Canadá é
que (DEPOIS de uma primeira apresentação, não entre pessoas
totalmente estranhas) acabam sendo mais informais até que os
brasileiros: em geral preferem se chamar diretamente pelo
primeiro nome (mesmo em relação professor-aluno, por exemplo, e
mesmo por escrito, ao menos no caso de e-mails; acredito que nos
EUA e Inglaterra seja mais ou menos assim também).
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SIBILA VELADA
(Com entusiasmo)
Confesso-me uma
Alessandrete, e exulto de alegria e júbilo!!
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ESTELA GUEDES
(Desconfiada.)
Na Inglaterra, como
em Portugal, e se calhar em toda a parte, a exigência de sir e
equivalentes depende da distância. Um sargento, se quer ser
obedecido, exige o tratamento de sir. Pela mesmíssima razão eu e
outros filhos de outros tempos tratávamos os nossos pais por
senhor e senhora. O tratamento entre iguais português/brasileiro
é uma acrobacia linguística, exige atletismo, porque realmente é
muito difícil. O você brasileiro e o tu português, embora os
mais apropriados, causam impressão como lixa na pele.
Incomoda-me tratar por você um amigo brasileiro, mas se o trato
por tu ele sente lixa na pele. E inversamente.
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ALESSANDRO ZIR
Sim, o caso do sir
referi nesse sentido mesmo: é uma regra convencional relativa à
distancia (respeito), mas da qual se abre mão espontaneamente na
grande maioria dos casos. Meu orientador, por exemplo, não
gostava sequer de ser chamado pelo sobrenome (isso por qualquer
aluno), pedia para ser chamado pelo nome, diretamente. Com
outros usa-se o sobrenome, mas é muito raro você usar professor
por exemplo, ou doctor, ou qualquer forma de tratamento (pode
até soar estranho pra eles). Sei que quando vão fazer
intercambio na Alemanha, por exemplo, são orientados
expressamente para serem menos informais e utilizarem sempre
pronomes de tratamento. O tu e o você no Brasil dependem de
região (um paulista não usa tu praticamente pra nada, assim como
um gaúcho não usa você praticamente pra nada). Mas a
peculiaridade maior do Brasil eu acho a seguinte: mesmo num
ambiente formal (universidade, sala de aula), um aluno mais
jovem pode se dirigir a um professor desconhecido utilizando tu
ou você, como se a regra convencional relativa à distancia
simplesmente não existisse. Eu acho isso meio que falta de
educação, e foi por isso na verdade que também chamei atenção
para países de cultura inglesa, pois acho que lá essa
informalidade radical também pode ocorrer, mas nunca em países
como a Alemanha, França e creio eu Portugal, porque soa uma
grosseria. Vê que a diferença entre vous/tu, Sie/du no francês e
no alemão são muito marcadas e seguem padrões bem determinados.
Isso não existe em inglês (usa-se indiscriminadamente o you).
Também não existe mais em português (porque o você não é mais
equivalente ao vous ou Sie), só que vocês portugueses utilizam
muito senhor/senhora (o que mantém a distância nas situações
necessárias que são varias). Já os brasileiros quase não usam
senhor/senhora, porque tende a soar formal demais, algo arcaico,
até mesmo irônico e/ou ofensivo. Você pros paulistanos equivale
a tu, e é usado para tratar qualquer tipo de pessoa, em relações
de intimidade inclusive; os gaúchos utilizam tu para tratar
qualquer tipo de pessoa, mesmo em situações que exigiriam
distância. Gaúchos e paulistanos vão utilizar senhor/senhora
para tratar alguém de 90 anos pra mais, ou se for um funcionário
de companhia aérea atendendo um cliente, no mais tendem a usar
muito pouco.
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ESTELA GUEDES
Nós, em vez de senhor
e senhora, até usamos a 3ª pessoa. Assim: o Alessandro já
reparou que toda esta conversa dava um bom artigo para o
Triplov? Eu gostava. Se o meu amigo estiver de acordo, e tiver
um tempo disponível, bem podia copiar daqui os textos para uma
página Word e mandava-a. O Alessandro ainda sabe o meu endereço
de email?
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SIBILA VELADA
(Casaco de pele.
Olhar de basilisco, voz de barítono. Feroz.)
Não dou boleia!! E se
ver isso é papo só pra tête-à-tête.
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ALESSANDRO ZIR
Oi, tenho o e-mail
sim. O melhor seria colocar como questões, que de fato acho
interessantes. Tem outras coisas, que algumas pessoas acham
pedantes, mas que também acho curiosas e relevantes. Por
exemplo, eu aprendi que um homem não toma a iniciativa de dar a
mão a uma mulher, nem uma pessoa mais jovem a uma mais velha,
porque para iniciar um contato físico entre desconhecidos a
iniciativa deve partir de quem está em posição social
privilegiada. Aqui no Brasil, é comum pessoas que você nunca
viu, mais jovens que você, às vezes até prestando algum serviço,
tomarem a iniciativa de dar a mão, e elas fazem isso como um
sinal de submissão, cordialidade, o que pra mim é uma coisa
verdadeiramente bizarra! Outra coisa que atrapalha muito: sempre
se deixa as pessoas saírem primeiro de um lugar antes de
as outras entrarem — pois bem, no Brasil não
respeitam isso e dai dá atropelos. Também não se tem o habito de
deixar livre o lado esquerdo nas escadas rolantes, o que obriga
todo mundo (mesmo os apressados) ficar parado admirando a
paisagem do shopping...
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SIBILA VELADA
(Faz estalar um
chicote preto como betume.)
A questão é que
entope. Entope!! Ainda a querer que eu dê boleia?!!
Dungdevourer...
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ESTELA GUEDES
(Desviando o olhar.)
Fico à espera do
texto, com as questões que quiseres. O assunto é relevante.
Don't care about strange posts, people are old and need
attention.
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SIBILA VELADA
(Ri alto. A
maquiagem volta a se desfazer em rugas.)
Cuidado! Existem
muitos chulos no Facebook!!
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ALESSANDRO ZIR
(Tendões
flexionados. Olhos virados pra cima em sinal de admiração.)
Hahaha! I was indeed
wondering about strange posts.
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VIRGEM DOS LOBOS
(Legítima, nascida
há milhares de anos atrás e rodeada por seus milhares de
ancestrais. Elmos de folhas verdes. Maçãs vermelhas e
brilhantes. Uma tigela repleta de Cornish cream.)
O esnobismo consiste
essencialmente em querer impressionar os outros. O esnobe é
alvoroçado como uma lebre — criatura tão insatisfeita com a
própria condição que passa a vida toda a querer surpreender os
desprevenidos com a exibição de uma honra ou título inusitado e
assim consegue se convencer daquilo em que não acredita.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Com um doce
sorriso.)
Famigerada Alice, que
show! You rock my dear!!
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VIRGEM DOS LOBOS
Tínhamos o Comendador
Landelino Bicudo, por exemplo, cujo esnobismo era de uma textura
tão crassa que podia ser cheirado e deglutido de longe. Mas não
eram agradáveis nem o gosto e nem o cheiro. Foi de uma forma
mais sutil que caí em tentação. Ermelinda Bezerril. Uma senhora
encantadora cuja graça etérea borrifava e desinfetava os grandes
da sua grossura natural. Não era raro cabecear de sono. Olhava
então para os seus azulejos. Ela gostava de olhar para os
azulejos. E de conversar com o mordomo. Pouco se importava com o
que pensassem dela.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Os aristocratas são
mais livres que nós. Mais espontâneos! Excêntricos!! Helena
Blavatsky mantinha rigorosamente a castidade com o auxílio de um
pepino intrujão.
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VIRGEM DOS LOBOS
Foi assim que aprendi
que meu esnobismo não era de um tipo intelectual. Entre afofar
Einstein ou o Duque de Loulé, eu optaria pelo segundo sem
pestanejar! Alguém que possa alimentar os cães com as próprias
mãos. Ossos pingando de graxa e sangue. Gente elegante, ágil,
fora do comum.
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ERMELINDA
BEZERRIL
(Toucado com aba,
laço de fita e aigrette, mangas bufantes.)
E quando você recusou
o chá com Paul Valéry?!
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VIRGEM DOS LOBOS
(Seminua, diante
do espelho num provador.)
Tanto quanto odeio
andar malvestida, odeio sair para comprar roupas. Ligas
principalmente. Então recusei. E aí foi uma enxurrada ainda
maior de convites. A situação ficou desesperadora e afinal tive
de comprá-las.
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ERMELINDA
BEZERRIL
(Divagando.)
The dear dead days
beyond recall...
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UM EQUIVALENTE
DE PAUL VALÉRY
(Tartamudeando.)
Se a senhora me
permite, eu não gostei muito do seu livro. Na verdade causou-me
uma péssima impressão.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Reparem, por favor,
no extremo requinte destas duas frases!
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VIRGEM DOS LOBOS
(Cinta-liga.
Penteado arrematado num profile de flores com tule. Depois de
limpar delicadamente o canto da boca no guardanapo de pano.)
Fique à vontade para
odiar meus livros mais do que eu odeio os seus, senhor Valéry.
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UM EQUIVALMENTE
DE PAUL VALÉRY
(Subitamente à
vontade. Confiante.)
Achei que tivesse
lido a resenha que eu escrevi...
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VIRGEM DOS LOBOS
As únicas críticas
que realmente me atingem são as não-impressas. Privadas, digo.
De forma que vim aqui infinitamente mais preocupada com minha
aparência enquanto mulher do que com minha reputação de
escritora.
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ERMELINDA
BEZERRIL
E no final você nem
apareceu mais. Me disse que estava cansada de receber convites
para conhecer outros escritores. Que o senhor Valéry (adotemos o
nome) era educado e fazia de tudo para distraí-la, mas que era
difícil entender por que é que ele achava que você estivesse tão
interessada em pigmento indiano.
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VIRGEM DOS LOBOS
Coisas que acontecem.
Eu me desculpava, e quanto mais me desculpava mais você
insistia. Até que teve a ideia de vir me visitar. E veio. Foi
quando descobri que o seu esnobismo exigia pouco mais que um
pedaço de bolo queimado, uma sala tão bagunçada quanto possível
e dedos imundos de tinta!
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ERMELINDA
BEZERRIL
Ah, como eu queria
ser escritora!
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VIRGEM DOS LOBOS
(Vestido preto.
Olheiras profundas. Retorcendo os dedos.)
E eu trocaria tudo
por ser uma anfitriã como você!
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Are you of the
unfortunate class?
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VIRGEM DOS LOBOS
Mas eu senti sua
falta. De Valéry nem tanto.
(Flutuando num
elemento, exposta a um raio invisível.)
A nostalgia que
sentimos por uma cristaleira no meio da sala de estar.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
A mão que balança o
berço. A morte — forma mais elevada de vida! Deus maldito!
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VIRGEM DOS LOBOS
A feminilidade era
muito forte em nossa família. Éramos famosas por nossa beleza —
a beleza de minha mãe, a beleza de Estela desde sempre me
trouxeram alegria e orgulho.
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JULIETA
(Depois de
apagarem todas as luzes e um estouro, se materializa do nada,
vaporosa. Num vestido preto com estampa de flores vermelhas,
púrpuras e azuis. Silêncio de 15 segundos e diz consternada.)
Coisa de brutamontes.
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VIRGEM DOS LOBOS
(Chapéu alpino.
Lama dos pés à cabeça. Grita em voz de criança.)
Mamma!
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Em toga de juiz.)
Kaput! A omissão do
promotor em retransmitir ao juiz a denúncia de tortura em
audiência de custódia deu-se em 80% dos casos. Nos outros 20%, o
Ministério Público arquivou a denúncia como caluniosa. Lêmure,
devorador de corpos, quem é você?
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VIRGEM DOS LOBOS
Foi uma sensação
imediata. Baixei a mão instantaneamente e deixei que ele me
batesse. Um sentimento desesperado de tristeza, como se eu me
tornasse consciente de algo terrível, da minha própria
fragilidade. Esgueirei-me pra longe dali sozinha, numa depressão
horrível.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Curo faniquito. Money
refunded.
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TOBY
(Sentado num
canto, cigarro na boca, olhando por cima do jornal. Imóvel.)
De que tipo de
material era feito Landelino?
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VIRGEM DOS LOBOS
De cérebro tinha
pouco, mas muita emoção. Tudo despejado num corpo perfeitamente
adaptável. Extremamente bonito, perfeitamente saudável — nada
esperado de um rapaz da sua idade lhe faltava. A sociedade o
recebeu de braços abertos. E era tão sem cérebro que nunca foi
além do círculo restrito dos seus amigos de classe média alta. E
jamais se colocou numa posição em que pudesse ser criticado.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Amigo íntimo do
tenente-coronel Ferreira-Ferronha, do senhor Felipe Augusto
Picão, do robusto tenor Amadeu de Melo Costa-Sorvedouro, do
Bento dos olhos azuis, do jovem ascensorista, de Henrique Flores
célebre herdeiro da Casa de Sousa, do neto do senhor Paz, do
mulato Genival Clemente, dos oito remadores da várzea do velho
Colégio Americano, de Bento e seu esplêndido Cão de Gado
Trasmontano, da duquesa pensionista de Ávila & Bolama.
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TOBY
(Anágua
transparente. Deitada de bruços na cama, os braços lançados para
trás prendendo o cabelo.)
Sabia o necessário
sobre armas e cavalos. Sabia como se vestir. Todos os nossos
amigos do sexo masculino entravam nesse jogo. Eram enfiados do
lado de cá da engrenagem para saírem do outro mais ou menos aos
sessenta anos como diretores, almirantes, ministros, juízes. É
tão impossível pensar neles como seres naturais quanto imaginar
um cavalo de arado galopando selvagem pela rua.
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VIRGEM DOS LOBOS
(Em transe diante
de uma macieira, os olhos hipnotizados pelos sulcos do casco.
Lua cheia.)
A árvore parecia ter
relação com o suicídio. Passar por ela era como ser tragada num
abismo de desespero, impossível de escapar. Fiquei paralisada.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(O palco
subitamente volta a ficar escuro. Luz negra. À frente, um
demônio com a pele toda besuntada de azeite e purpurina. Ela,
vestidinho branco minúsculo, salto alto, sentada num estrado.
Cabelos descoloridos, maquiagem carregada. Voz rouca e
arrastada. Esganiçando-se.)
Merda total, e perdeu
a parada! E é por isso que eu estou de saco cheio! Eu não
aguento mais com essa história de golpe de Estado pra cá, e
golpe de Estado pra lá!
(Levantando
apoiada no cotovelo com um drinque e um charuto de maconha na
outra mão.)
E terceiro mundo, e
subdesenvolvimento... Mas eu não posso mais! Que que é que eu tô
ganhando com isso?! Há seis anos que eu tô atrelada... em
Brahms, eu não sei nem por quê! Eu não sei, eu não sei por quê!
(Suspirando, baixa
a voz. Descendo do salto.)
Deve ter uma outra
vida por aí. Uma outra vida sim, que eu não conheço, mas que eu
vou tentar.
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VIRGEM DOS LOBOS
Como foi que me
tornei consciente do que sempre esteve lá — sua beleza
assombrosa? Talvez nunca tivesse me tornado consciente e
aceitasse a beleza dela como um dom natural de mãe, que ela
tivesse pelo simples fato se ser mãe.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Exausta,
abandonada. Os traços de juventude todos roubados e
desaparecidos.)
Fêmea exuberante!
Ciclópico é o meu desejo de ser por ti pisoteado!!
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VIRGEM DOS LOBOS
(Pensativa.)
Mas tirando a beleza
(caso seja possível separar uma coisa da outra), como ela era?
Julieta era muito rápida, direta. Uma pessoa prática,
surpreendente. Podia ser ácida, não gostava de nenhum tipo de
afetação. Uma mulher severa, com uma bagagem de sabedoria que
lhe conferia um quê de melancolia. Tinha a sua própria cota de
infelicidade em que mergulhar quando estava sozinha.
Mas era a atmosfera
da casa. Tudo estava repleto dela. O que foi provado naquele 9
de julho de 87. Nada sobrou depois daquele dia, senão um
sentimento de calmaria desolada e inexorável.
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TOBY
In the end the world
without end. Lembro de Estela implorando que você a perdoasse
pelo susto.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Em transe.)
Serpente
pantagruélica devoradora de leite materno — deslocando-se de
florestas há milênios para secar-lhe avidamente o seio.
(Desperta. O rosto
subitamente crispado.)
O instinto é o que
rege o mundo. Na vida, na morte.
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VIRGEM DOS LOBOS
Quando a enfermeira
me levou até o quarto, soluçando, fui tomada por uma vontade
incontrolável de rir. Como em outras situações de crise, repetia
para mim mesma: eu não sinto coisa alguma! E então vi aquele
homem sentado ao lado dela na cama. A morte torna tudo tão
irreal...
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CÃO DE GADO
TRASMONTANO
(Patas cobertas de
neve.)
Ute ute ute ute ute
ute ute ute!
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(O rosto
fosforescente.)
Açarg ed aiehc Airam
eva! God!!
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TOBY
Falava um francês
parisiense perfeito, sem sotaque. Lembro do livro de Quincey —
Confissões de um Comedor de Ópio, em cima da
escrivaninha.
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VIRGEM DOS LOBOS
Mas as irmãs eram de
um materialismo intransigente. A tortura infame do sapatinho
chinês parecia brinquedo de criança perto da disciplina que tia
Aida impunha às filhas, a fim de fazê-las casar uma com o Barão
de Água-Izé outra com o Visconde de Vitela.
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TOBY
O que fez de nós, como
dizia a governanta, pessoas tão bem relacionadas.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Será que você poderia
me passar de volta o purê de batata?!
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VIRGEM DOS LOBOS
Foi em Veneza que ela
conheceu Eriberto Bicudo.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
O pai do Comendador
Landelino (Bicudo).
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VIRGEM DOS LOBOS
Apaixonou-se
completamente por ele e casaram. É tudo que se sabe do
acontecimento mais importante da vida dela. Como todo homem
muito bonito morto de forma trágica, não foi a personalidade
dele que restou mas uma lenda. A face pra sempre ofuscada pela
áurea da morte e da juventude. Para tia Aida ele era “ah,
querida, um raio de luz como jamais conheci outro igual! Quando
Eriberto sorria... quando Eriberto surgia na sala!” O homem
perfeito — heroico, belo, generoso, um Aquiles. E genial, e
gentil, simples e também o marido dela.
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TOBY
Estela contou-me que
mamãe costumava dormir sobre o túmulo dele.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Em Orchardlea.
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VIRGEM DOS LOBOS
Eram apaixonados. E
foi através daquele relacionamento que tive minha primeira visão
do que é o amor entre um homem e uma mulher. Como um rubi,
radiante, claro, intenso. Vermelho.
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TOBY
Nada é mais musical —
mais lírico — que o amor entre duas pessoas jovens.
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VIRGEM DOS LOBOS
E por que é que
nossas vidas tinham de passar por essa tortura e serem corroídas
por tais gafes — o golpe fortuito e brutal da morte das duas
pessoas que deveriam, sob condições normais, ter feito da nossa
vida uma vida feliz, ou natural. Não estou pensando neles, estou
pensando no dano infligido.
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TOBY
(Flutuando num
barquinho de papel em alto mar.)
Depois da morte dela,
papai se tornou cada vez mais tirânico.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
O segundo marido,
você quer dizer! Vocês são filhos do segundo marido!! Assunto
privado a resolver com a viúva.
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VIRGEM DOS LOBOS
Passou a ter um
ciúmes doentio de Estela. Efeito da sua excelente educação
unilateral
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
Espírito analítico de
Cambridge: clareza e concisão elementares.
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VIRGEM DOS LOBOS
Trabalho cerebral
intenso, mas completamente alheio à música, ao teatro, à
divagação. Aos sessenta e cinco anos, acabou um sujeito
completamente isolado, aprisionado em si mesmo. Atrofiados os
esteiros da sensibilidade.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
To feel the present
sliding over the depths of the past, it is necessary...
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VIRGEM DOS LOBOS
Paz. A superfície
tranquila, habitual. É por essa razão que toda quebra — como
mudar de casa — me causa uma ansiedade atroz, destrói a
plenitude da vida.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Dedos e lábios
sujos de romã.)
Sabe-se que os deuses
nos levam a sério quando se passa a enxergar a vida como
sumamente real. E tem se aumentado o sentimento da própria
importância.
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VIRGEM DOS LOBOS
(Borboletas,
passarinhos, lama e cavalos.)
Lembro da cautela e
da astúcia da voz de Henry James. Estalos de língua e murmúrios.
Desde muito cedo tive a chance de conviver com gente notável. E
até hoje me parecem ligadas ao que é excêntrico, fora do comum,
causa estrondo.
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HERDEIRA DO VALE
DE LÁGRIMAS
(Da coxia.
Apontando para um
batráquio
sozinho no meio do palco.)
Safe arrival of the
Antichrist.
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