Cabeçalho de Manuel A. e Sousa
Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº61. novembro-dezembro 2016 . ÍNDICE
Homenagem de A viagem dos argonautas e do Triplov a José Afonso



Mário Montaut (Brasil). Compositor, cantor, poeta, residente em São Paulo. Muitas das suas canções são interpretadas por Ana Lee. Alguns CDs: Samba De Alvrakélia, Bela Humana Raça, De Viés.

MÁRIO MONTAUT


Dylan
 

Mário Montaut: "Ana Lee". In: https://www.youtube.com/watch?v=rrYc8XYIvPk
 

Dylan, para Estela. 

Estela, continuando as nossas conversas de Lisboa, pequenos tópicos de labirinto para sua Fuga de Dylan Nobel: 

Dylan. A obra literária: “Tarântula”, que naufragou, tendo recebido péssimas críticas e com o próprio Dylan, sempre tão autoconfiante, terminando por renegá-la. “Crônicas”, uma obra consistente. Mas tudo isso é mínimo comparado ao infinito de sua Música. Primeira reflexão que li sobre o Dylan pós Nobel.  

A respeito de “I'm the walrus”, Lennon disse: “Naquela época eu estava escrevendo a la Dylan. Hoje tento apenas utilizar um bom inglês”. Ele se referia aos escritos automatistas de “Tarântula”, mas... e quanto ao bom inglês? 

Caetano Veloso afirmou que se sente mal com certas pessoas que parecem eternamente possuídas por algo imenso, tão maior que elas, que se torna impossível qualquer definição mais clara de pensamento, e acha ainda que essas possessões são perigosas porque implicam sempre numa questão de poder. O possuído estaria sempre acima de qualquer razão. Conclui taxativo: “Dylan é assim. Eu não. Eu sou solar. Gosto de me explicar. Mas o Dylan é um gênio”. 

Duas vezes que me recordo desse termo na boca de Caetano foram para Bob Dylan: A outra ocorrência foi na Rolling Stone, num comentário sobre os Beatles. Ele achava que esses teriam realizado um produto de perfeito acabamento para o mercado. “Já Dylan é um gênio”. E nesse instante Caetano parece curiosamente possesso por todo o hermetismo que ele odeia em Dylan. Essa afirmação comparativa brota mesmo de uma força estranha.  

E então já damos em Herberto Helder, poeta obscuro, como você bem disse, Estela, um homem da contracultura em Portugal. 

Inês Pedrosa, escritora e jornalista portuguesa, escreveu em 2011, matéria relacionando a canção brasileira, mais especificamente a de Caetano Veloso e de Chico Buarque De Hollanda (que pelas contribuições linguísticas e filosóficas seriam as melhores do mundo) com a música dos Beatles. Ela pensa que a junção do melhor texto com a melhor música resulta na melhor canção, e tenta justificar sua tese com “Língua”, de Caetano Veloso, que segundo ela seria não só a maior canção da língua portuguesa, mas do planeta Terra. Comenta Inês ainda que não há nessas canções brasileiras de sua predileção espaço para certo tipo de lamento amoroso, fragilidades que já se evidenciariam nas mais emblemáticas obras dos Beatles, como “Yesterday”. Ironiza “Michelle”, “Imagine” e outras. Como intenso amante de Chico e Caetano acho que nas supostas fragilidades que ela aponta só caem mesmo os que também conseguem compor heavy metal. Nos Beatles a força do rock está presente em qualquer balada. Inês Pedrosa é muito espirituosa, e suas provocações são deliciosas, é o que me dizem as razões auditivas. 

O que você acha disso, Estela, e o que você imagina que o Herberto Helder diria? 

Para mim, o que mais conta em Lennon não são os versos nem as linhas melódicas, mas cada sílaba cantada. É absurdamente visceral. 

“A letra ele (o crítico) até critica, mas a música não.” Chico Buarque numa rápida entrevista. 

Quando Dylan recebeu o nobel alguém escreveu que se regozijavam duplamente as comunidades literárias e musicais. Penso que na união de letra e música vivemos uma outra coisa, mais real ainda justamente por eu não saber definir. Creio, rs. 

“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.” (Dorival Caymmi). Uma grande canção oceânica. E esses versos tão somente lidos? 

“Strawberry Fields Forefer”, “Penny Lane”, "Eleanor Rigby”, são para mim aproximações da irracionalidade concreta em nossa sensibilidade, como quer Dalí em “Sim ou a paranoia”, por volta de 1933, cerca de uma década antes de Jorge Luis Borges insinuar sutilezas afins no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. Se os Beatles concordariam com tal ideia é outra questão. O real que nessas canções se revela é de uma alta surrealidade. Desconheço as imagens de “Tarântula”. 

Dylan declarou que expansores de consciência o mantinham atento para que pudesse criar as canções, mas que na hora de criá-las não o influenciavam. Caetano não gosta de marijuana e teve pânico ao tomar o ayahuasca. Quando questionado por George Martin sobre o que foi mais determinante em Sgt. Pepper's, Paul McCartney respondeu numa palavra: maconha. E foi Dylan quem apresentou a erva aos Beatles. Só para sutilizar alguns estruturalismos, rs.  

A título de correção Allen Ginsberg riscou um poema de Paul McCartney, sentado bem ao ladinho dele, segundo a foto da matéria que eu li.  

E então a academia já reconhece a contracultura, Estela? 

Em seu último livro, “O lado ativo do infinito”, Carlos Castañeda faz uma dedicatória a Tom Jobim, elogiando as delicadas melodias que revelam o guerreiro. Isso foi em 1993. Em 1974, ou perto disso, Tom deu uma entrevista em que não sobrou quase nada pra ninguém. Nem pro Chico, nem pro Vinícius, nem pro Noel. Foi quase tudo para “meu mestre, Don Juan”. 

E onde ficam os neologismos anticerebrais de Antonin Artaud se dizendo plagiado por Lewis Carrol em “Jabberwocky”? Lennon dizia que algumas de suas canções eram “passeios pelo outro lado do espelho”. 

Esses “neologismos”, Estela, merecem capítulo à parte. 

Sting nem acreditava, pelo que li numa entrevista à antiga Bizz, na possibilidade de grandes temas existenciais na canção. Não mencionou Bob Dylan, e não sei se o conhecimento de Chico e Caetano desviariam essa perspectiva.  

E muita gente viva têm se queixado de canções com demasiadas ideias, pensamentos. Um contraponto. 

Pascal Quignard, autor de “Todas as manhãs do mundo” (livro que virou filme com Gérard Depardieu no papel do compositor Jean de Sainte-Colombe) e de “Ódio à música”, entre outros, acredita numa trama sonora correspondente ao enredo visual dos sonhos, trama à qual os músicos  estariam eternamente ligados.  

E então, Estela, gostaria muito de saber que se vive em Bob Dylan. Música? Letra? Ou certo teor de substância não identificável pelo critério nobel? 

Beijos do Mário e da Ana Lee, que também adorou nosso rápido e intenso encontro em Lisboa.


Caetano Veloso: "Língua"
In: https://www.youtube.com/watch?v=tX7cqBreLUY
 


 
 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
Página Principal
Índice por Autores
Série Anterior
 
www.triplov.com
Apenas Livros Editora
Revista InComunidade
Canal TriploV no YouTube
António Telmo-Vida e Obra
Agulha
A viagem dos argonautas
Triplov Blog