Cabeçalho de Manuel A. e Sousa
Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº61. novembro-dezembro 2016 . ÍNDICE
Homenagem de A viagem dos argonautas e do Triplov a José Afonso


Hélder Costa (Grândola, 1939) é um encenador, actor e dramaturgo português. Foi um dos membros fundadores do grupo A Barraca, onde é encenador e diretor artístico. A companhia obteve o prémio UNESCO, em 1992.
HELDER COSTA

Zeca Afonso, o poeta da Fraternidade

O Zeca foi sempre um andarilho.

Nasceu em Aveiro e aos 3 anos foi para Angola porque o pai tinha sido colocado como delegado do Procurador da República, e a família zarpou para lá. Desses tempos sempre guardou uma grata memória e adoração por África. A relação física com a natureza criou -lhe uma profunda ligação ao continente africano que o iria acompanhar toda a vida. Entretanto veio para Portugal porque os pais não paravam e em 1939  foram viver para Timor, tendo ficado cativos dos ocupantes japoneses durante três anos, entre 1942 e 1945.

Nessa altura já o futuro cantor estudava e jogava futebol em Coimbra. Entrou para o Orfeão e para a Tuna e aconteceu que tinha voz e jeito para o Fado…Entretanto, nascia a agitação estudantil em 1961. O Zeca era mais velho, licenciado em letras com uma tese sobre Jean Paul Sartre, autor proibido pela Censura, e aderiu à luta participando nas serenatas às colegas…que estavam em lares de  freiras. Convém esclarecer que esta táctica – além do lado  da sedução romântica –, também tentava liberta –las do jugo conservador da Igreja para que elas votassem na lista progressista para a Associação Académica de Coimbra. O fado de Coimbra conseguiu esse milagre e a partir daí começou a agitação estudantil pelas cidades Universitárias. Começaram a chamar ao Zeca o rouxinol do Mondego…e os estudantes começaram com o luto Académico. Particularmente importante em Coimbra. A Académica estava em 1º lugar nos campeonatos de basket e hóquei em patins e no 2º ou 3º lugar em futebol. Cumprindo o luto faltaram aos jogos nestas modalidades. Mas no futebol, como o jogo seguinte era com o Sporting, a GNR prendeu os futebolistas elevou –os para “ estágio” para o Luso…no domingo houve o jogo, com milhares de estudantes gritando palavras de ordem e com o relvado cercado por GNR armados virados para a assistência. Ao intervalo o jogo estava 0-0 porque a Académica não se mexia e o Sporting passava a bola entre eles, mas não metiam golo…no intervalo a Pide foi aos balneários e o Sporting lá ganhou o jogo aplaudido com todo o estádio de pé.

 O luto Académico foi cumprido e devidamente castigado. Dezenas de prisões para Caxias, Peniche e Companhia Disciplinar de Penamacor, expulsões da Universidades, mas os dados estavam lançados: chegava o fim do fascismo, só adiado com a criminosa e mortífera guerra colonial, ultimo recurso de sustentação do regime.

É no meio dessa turbulência que, uma noite, eu vejo o Zeca a dedilhar uma suave canção, bonita mas que não resistia à galhofa dos matulões com os copos…era “ O meu menino é d’oiro”…abria –se o novo caminho da canção e da música em Portugal. Bairro negro… Vampiros, Coro da Primavera…O Zeca começou a ter mais consciência politica, corria o país como professor de Francês e História, até que foi expulso do ensino.

Tinhamos criado grandes laços de amizade, ele incomodava-se por só cantar no meio estudantil e como havia na minha terra – Grândola – um clube popular com o fascinante nome Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, que tinha uma corajosa programação cultural, propus e foi aceite pela direcção um espectáculo em Maio de 1964 que eu organizei com  Carlos Paredes na 1ª parte e o Zeca na 2ª. Êxito incrível com um  ambiente tão quente e fraterno  que o inspirou para fazer o poema Grândola, Vila Morena, que  as voltas do destino transformaram na senha do Movimento das Forças Armadas no golpe de 25 de Abril de 1974.

O sucesso perseguia o Zeca, mas o dr. José Afonso não tinha descanso nem modo de vida. Andarilho é andarilho e foi até Moçambique onde continuou a sua acção cultural, chegando a musicar uma peça de Bertolt Brecht, A Excepção e a Regra.

Regressando a Portugal, também actuou para a emigração portuguesa pela Europa em espectáculos organizados por Associações e pelo Teatro Operário.

Com o 25 de Abril foi um herói admirado e respeitado e também atacado por dogmatismos e sectarismos inqualificáveis.

Com a recuperação da direita foi humilhado por escribas que tiveram o descaramento de atacar a sua música, a que ele respondeu com obras belíssimas – entre elas , para o teatro A BARRACA, de que é justo destacar o trabalho em “ Zé do Telhado” e a obra-prima UTOPIA para “ Fernão, mentes?”

Infelizmente, teve uma morte prematura e injusta. Mas o seu funeral em Setúbal teve centenas de milhar de pessoas que acorreram de todo o país cantando “ Grândola, Vila Morena”.

Foi a justíssima homenagem ao grande poeta da FRATERNIDADE.

Eterna saudade.

Teu Hélder

Lisboa, 6 de Outubro 2016

 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
Página Principal
Índice por Autores
Série Anterior
 
www.triplov.com
Apenas Livros Editora
Revista InComunidade
Canal TriploV no YouTube
António Telmo-Vida e Obra
Agulha
A viagem dos argonautas
Triplov Blog