Todos aqueles que se
aposentam, e comigo não foi diferente,
sentimos uma certa felicidade ao nos vermos
livres do cumprimento de horários e afazeres
que ao longo de algumas décadas estivemos
atrelados. Vivenciamos uma nova situação.
Estamos livres!
Contudo, o tempo do
aposentado não é o mesmo tempo daqueles que
estão em atividade. Disso estou convicto.
Tudo vai bem nas
primeiras semanas. O vento da liberdade nos
acaricia fraternalmente. Depois... bem,
depois a coisa começa a andar de lado.
Do nada você passa a
conferir se o relógio, por algum motivo
acima do bem e do mal, está quebrado; e se
depara com a triste realidade, dura,
indiferente: NÃO! o relógio
não está
quebrado. Daí... "preciso fazer alguma
coisa".
É uma espécie de voz
fantasmagórica que começa a nos assombrar.
Algo semelhante ao "demônio de Sócrates" em
versão moderna.
Tirando-se as dores nas
juntas, gases acumulados por longos
períodos no sofá, estados depressivos e
insatisfação pela existência, nada acontece
na vida do aposentado. Nem mesmo a lâmpada
do corredor queima. É o começo de uma longa,
mas longa mesmo, excetuando-se os
casos de morte súbita, via crucis.
O que posso fazer? Não
aguento mais ficar parado. Que horror! Uma
infeliz ideia surge boiando nos mares da
esperança.
Vou arrumar outro
emprego. Tenho experiência e maturidade para
isso. Crasso engano.
Currículos são
encaminhados por todos os meios. Desde os
mais tradicionais, saudosos e,
consequentemente, fora de moda, envios via
correio, sempre registrados, como reza a
tradição e manda a experiência, até aqueles
enviados pelos inconvenientes, embora
atuais, endereços eletrônicos. Estes, nas
mãos da maioria dos aposentados sempre
engasgam. Copia aqui, cola ali, abre a
página tal, fecha o maldito do arquivo...
Ih! não deu certo. Chama a neta,
pior a
emenda que o soneto. No fim, após um
longo período de
choro e ranger de dentes,
a coisa, pelo menos aparentemente, vai.
Ufa! Que alívio. Uma
alegria inconfessa toma conta do sensível e
idoso ser.
Mas, como tudo passa, o
alívio e a alegria transformam-se em insônia
e uma nova fase se instala: a ansiedade.
O tempo passa e nada.
Absolutamente nada. Nem mesmo uma mensagem
gentil, mesmo mentirosa, mas gentil,
utilizada nos tempos de outrora, mas já
esquecida nos tempos modernos, do tipo:
"Recebemos seu currículo. Caso você seja
selecionado, entraremos em contato".
Nada.
Então, vá tudo para o
inferno. Não preciso me sujeitar a isso.
Quer saber, vou pintar a casa.
Essa decisão, quando
anunciada por um aposentado, cai como uma
bomba para a esposa que já vê um desastre
anunciado. Um profético
tsunami
doméstico se aproxima. Mesmo assim, com um
ânimo hercúleo, a pintura começa. Mas... não
termina.
A sala fica bicolor. De
um lado novinha, do outro, bem, deixemos
isso pra lá. É apenas um detalhe.
Novos sóis, novas
ideias e novas investidas.
O Senhor provê
a cada dia.
Vou cozinhar. Vou
fazer o frango que minha mãe fazia. Outro
tsunami
é pressentido por aquela que
jurou estar junto até o final da vida,
tanto na alegria como na tristeza. Tudo
mentira! Nesse momento não há juramento que
dê conta. Tudo é esquecido.
Mas nada, nem mesmo a
novela de época da TV Globo, consegue
afastar o desejo culinário do velho
guerreiro.
Cebolas e tomates
picados, alhos amassados, frango cortado em
pedaços, tudo, absolutamente tudo,
preparado. Avante!
Mas, logo em seguida ao
"Avante" o cheiro de frango queimado
espalha-se pelo ambiente, imediatamente
associado ao visível e indisfarçável
olhar, ao mesmo tempo enigmático e
condenatório, da esposa. Perde-se uma
batalha, mas não a guerra. Persistência é o
lema.
A jornada em busca de
um tempo que não se quer perdido continua.
Nova ideia, novo
destino: ACADEMIA. Exercícios fazem bem para
o corpo e para a alma. É o que diz o cartaz
logo na entrada, ao lado do caixa.
Roupas especiais,
tênis, muita disposição e... olhares,
infinitos olhares, muitos condenatórios; e a
mensagem chega ao feliz, e mais que isso,
felicíssimo desportista, como por telepatia:
Que é que esse "tiozinho" veio fazer aqui?
Vai acabar enfartando.
Olha, pessimismo ou
não, a verdade é que é assim. Só elogiam os
velhos diante das câmeras de TV. Também, o
que se poderia esperar? Que os entrevistados
deixassem aflorar os seus mais vis
sentimentos e revelassem o que se esconde
nas profundezas de seu âmago? E ainda em
frente a uma câmera de TV?
Ora, que conversa.
Até velho fala mal de
outro velho. Direto. É assim porque é assim.
Ponto. Deixemos a hipocrisia no
urinol. (para os mais jovens que nunca
ouviram falar, urinol é uma espécie de vaso
apropriado para urinar).
Ah! por falar em
vaso...[1]
Quem nunca presenciou
os olhares e bufadas em filas de banco
quando chega um velhinho?
O velho mal chega e já
é olhado com desprezo.
Lá vem o provecto
cidadão passar na minha frente.
E de nada adianta um ou
outro ancião dispensar o direito ao
atendimento prioritário, a coisa engasga da
mesma maneira. Não tem saída. E para piorar,
alguns da terceira idade ainda não ouvem o
maldito
blim blim
das campainhas,
sinal de chamada para o próximo da fila
apresentar-se.
São necessárias uma
infinidade de blins blins, mais um
montão de gente, em uníssono, gritando
histericamente "É O SEU NÚMERO", "É O SEU
NÚMERO". E, entre discretos e quase
silenciosos lábios: - VAI LÁ CACETE. TÁ
SURDO?
É um tormento.
Eu que sou velho não
aguento. Imagine o resto.
Mas, entre translúcidos
desgostos, o candidato da vez apresenta-se.
Indiferente a tudo e a todos; vai em direção
ao caixa, orgulhoso de si mesmo, altivo,
mas, concordo, muitas vezes, indeciso em
relação a qual dos caixas deve dirigir-se.
Novos e raivosos,
embora ainda disfarçados, avisos dos
enfileirados clientes: Senhor, é no
caixa 2. À sua esquerda. Não! À esquerda.
Jesus! como é que a família deixa um senhor
desses sozinho?!
Não tem jeito. Nem
mesmo aqueles programas de auditório, também
conhecidos como cultos religiosos, que vão
ao ar todos os dias da semana, em todos os
horários, do dia e da noite, que não
obedecem finais de semana, nem feriados,
conseguem prender a atenção dos velhos.
Concordo, são engraçados... mas,
particularmente, não aguento mais ver tantos
milagres. Virou lugar comum. Milagres
de todos os tipos, discursos de louvor,
intimidades divinas reveladas por padres e
pastores de todas as denominações e por aí
vai.
Além dos milagres
alguns ainda mandam colocar, talvez como um
reforço, sei lá, um copo com água sobre um
móvel para ser abençoado pelo padre, bispo,
pastor... enfim pelo religiosos que conduz o
ato para, ao final da liturgia, ser bebida
por aquele que sofre algum mal, seja físico
ou espiritual. Assim dizem. Mas, só no
final. Tudo planejado para segurar o velho
(e outras milhares e milhares de pessoas)
diante da televisão. Acho isso pura maldade.
Tem velho que já tomou
tanta água abençoada que não consegue ficar
quieto no sofá por mais de dois minutos.
Inferniza a família toda dizendo que está
com a bexiga solta. Nada. É só parar de ver
esses programas por dois dias e tudo voltará
ao normal.
Para piorar, se é que é
possível piorar alguma coisa, num desses
programas disseram para os fieis
espectadores ajoelharem. E nem alertaram que
os de idade mais avançada não precisariam
fazê-lo. Bem, ajoelhar é até um ato de
humildade. Concordo. Mas, o problema para
alguns, com muitos anos de experiência, mas
que ainda não criaram juízo, é levantar.
Presenciei, mais que
uma vez em igrejas, anciãos que, após
ajoelharem-se para uma oração, precisaram de
dois benevolentes parceiros de fé para
poderem levantarem-se. Pode uma coisa
dessas?
Será que ninguém
percebe que para muitos idosos ajoelhar-se
(e consequentemente levantar-se depois) é
pior que comer farofa com hashi?
Mas que falta de
sensibilidade é essa?
Todavia, por vezes,
fico pensado com meus botões: O que há de
errado em ser velho (além é claro de lotar
os prontos-socorros e passar na frente dos
outros nas filas de bancos e aeroportos (o
que chateia alguns poucos insensíveis) NADA.
Velho é velho. O que
fazer? Afinal, os que têm alguma sorte
chegarão a ser velhos. É a vida, embora mais
próxima da morte, continua a ser a vida.
Ponto.