REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 



MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores

MIA COUTO

Uma literatura entre palavras
e encantamentos


São Paulo, 2011

ÍNDICE

Prefácio

 

Travessia do bom selvagem pela selva surrealista

MARIA ESTELA GUEDES

 

Nos tempos românticos do bom selvagem, um indígena americano ou asiático visitava a metrópole europeia para lançar uma mirada crítica à civilização. Ou então um representante da superior civilização coligia exaustivas informações in loco acerca do modo de vida dos selvagens, a que o riscador acrescentava coloridas aquarelas que mostravam roupas ou corpo despido, penteados, armas e alfaias; intitulavam-se memórias e itinerários filosóficos estes inventários em que ainda se anotavam veículos de transporte terrestre e de navegação, fábricas, tinturas, combustíveis, materiais explosivos, plantas medicinais e diversas outras boticas. Não esqueçamos os mapas, a navegabilidade dos rios, a fundura dos ancoradouros, a temperatura dos ares nem a altitude dos plainos e dos picos. Gente superiormente civilizada, que ia abrindo estradas à medida das passadas, segundo o ancestral modelo dos romanos, e colecionando folhas, frutos, rochas e animais, para prova de que o território se encontrava sob o domínio do conhecimento científico. Recordemos exploradores como Serpa Pinto que, para a cabal travessia dos desertos, rios, rápidos, cataratas, matos e florestas do continente negro, importaram de Inglaterra os finíssimos serviços de chá.

Olhares um pouco às avessas foram os dos dois persas em tournée europeia com extasiada permanência em Paris, tecendo comparações ingenuamente mordazes – isto através do olhar do filósofo, claro, o Montesquieu das Lettres persanes que permitiu o infeliz desenlace de uma Roxane, entre mais quatro esposas legítimas abandonadas, ela que não só era a favorita do espécime exótico em devaneio parisiense como dos vários eunucos encarregados de guardar o harém na Pérsia.

Idênticos choques culturais e civilizacionais apresentam-se igualmente quando enfrentamos os caminhos de um livro, muito mais desafiadores então quando se trata de uma obra já florestal em número de títulos e em diversidade de géneros, na maior parte mais complexos do que a norma, por se tratar de híbridos: contos, romances, crónicas, teatro, poesia, e textos de encanto, lindamente ilustrados, para uma infância cujos limites etários não é oportuno discutir aqui, bastando anotar que pode ser a nossa, atual, neste redundante agora… Obra de Mia Couto, escusado referir.

Na nossa assembleia de ex-bons-selvagens na totalidade com a minha única exceção (a menos que remontemos a tempos célticos, godos, ou mesmo àqueles em que frequentava a escola de ferir o xisto e o granito para nele deixar os pictogramas patentes hoje na Canada do Inferno e noutros recintos paleográficos de Foz Côa, datados alguns de há vinte e cinco e trinta mil anos), nesta assembleia de ex-bons-selvagens, dizia – Mia Couto e exegetas brasileiros, que espreitais à porta da sua morança africana – qual seria agora o olhar do filósofo, representante da ex-potência civilizadora? À parte a língua, que é a mesma, em distintas tonalidades, o que parece entre nós traço de união é o dos afetivos «-ex»… O dos afetos, melhor dizendo. Estamos todos presos a uma terra-mãe que pode ser a do outro, nô djunta mon, como se diria em Bissau, para uma festinha de familiaridade.

Pesa-me na mochila mais a cultura anglo-americana, veiculada pelos meios de comunicação de massa, do que aquela que exerci sobre vós outrora – tão ligeira que nem a língua deixei em África, e menos ainda na Ásia, segundo parece. Se ficou no Brasil é porque, antes de a lá deixar, já lá estava, à semelhança de um qualquer fenómeno de infestação devido à introdução quiçá ilegítima de espécies exóticas. Exotismo e endotismo, eis dois temas que valia a pena rever na literatura, não porém à luz das letras, sim à de conceitos biológicos que nos falam, por exemplo, das viagens das plantas e dos animais. Vejamos: errará muito o persa em Maputo se, face às mais comuns árvores de fruto moçambicanas, descobrir que algumas são persas, e asiáticas e brasileiras na generalidade as mais substanciais? E agora? Que diz o indígena? O filósofo é capaz de conceder em que a coisa já passou à categoria de ex-ótica, pois, o que diz respeito ao Homem, estamos cansados de o saber, precisa de ser encarado como cultural, de selvagem ou natural nada tem.

Voltemos à língua, a perguntar se é exótica ou se já terá sido naturalizada. A minha superior civilização terá imposto em Moçambique a língua portuguesa? Rezava o Regulamento do Colégio e Liceu Honório Barreto, em Bissau, e eu o atesto como ex-aluna, que era proibido falar crioulo nas aulas. Tudo bem, meus senhores: nem crioulo nem papel, nem balanta, nem fula, nem mandinga, só o portuguesinho da praxe. E então? Quantos dos meus colegas ficaram, com a proibição das suas línguas maternas, meus irmãos na partilha da minha? Alguns dez por cento, não é verdade? Mia Couto, em Moçambique, faz parte dos mesmos dez por cento, devendo por isso considerar-se exótico, uma figura minoritária, excecional, no mapa das línguas mais faladas no seu país.

Não impus a minha língua, apesar da legislação em contrário. África, no caso a Guiné(-Bissau), é que me seduziu a mim com o seu crioulo leve e kriol fundo, mais os papiares de indecifrável origem linguística, similares aos que se patenteiam nas obras do autor moçambicano. O exercício de decifrar é lento e gostoso, mas pouca diferença faz o código – se língua das aves, como tanto cimentou Richard Khaitzine em relação aos surrealistas, se o galaico-português da cantiga de Pai Soares de Taveirós, se os tantos papiares das diversas populações do globo, ou se o resultado das suas misturas – e a fusão é uma das grandes artes de Mia Couto, conhecedor da zootecnia, e por isso sábio de que só o híbrido é absolutamente novo, mesmo no caso vertente, em que, do ADN, só participam os carateres linguísticos que o simbolizam.

Sinto-me o mais possível resultado dessa mistura. Já não sinto o peso dela, quase ignoro a sua presença genética, de tão naturalizada a herança romana e árabe, abismada no âmago da nossa conversa. Porque também vós a partilhais, e em cima dela a herança castelhana. Eis algo cuja abominação causa estranheza, portanto custa a assimilá-lo, mas houve um tempo em que todos – de Bissau a Cabinda, de Moçambique a Timor, de Damão ao Rio de Janeiro – houve esse tempo longo de sessenta anos em que todos fomos espanhóis.

E, se formos a ver, em matéria de selvagens, com toda a carga surrealista que pessoalmente transporto no currículo, sou bem capaz de o ser mais do que todos vós juntos, aliás sois apenas ex-, ao passo que eu estou ainda no ativo. E com isto, finalmente, cá chegámos à pousada do surrealismo.

Um filósofo senegalês, Massaer Diallo, na Paris dos anos 80, empreendeu a mesma tarefa dos protagonistas das Lettres persanes: fitou, olhos nos olhos, o ex-civilizador, aquele que quis exterminar os mitos, os ritos, enfim, tudo o que nos selvagens era sinal de inferior, ou tudo o que nos indígenas era sinal de selvajaria, como a crença, a superstição, os mitos, os ritos e as magias, apelando portanto para a necessidade de os salvar, mediante conversão – ao catolicismo, naturalmente. Aproveito para reforçar a hipótese de colonização leve com a pergunta: sendo a primeira ferramenta civilizadora o missionarismo católico (a segunda era a científica, levada a cabo pelos exploradores e naturalistas, e a terceira era a militar), daí decorreu a imposição do catolicismo em África a ponto de ser hoje religião dominante? Predominante talvez nos dez por cento da população que falam português. Convenhamos, entretanto, que algo ainda hoje nos une e religa, passados séculos e décadas sobre o divórcio, mas esse elo cultural nasce no coração, é um sentimento de pertença à terra e à família que fala, mesmo mal, a língua portuguesa.

No Senegal, como na Guiné-Bissau, o que domina é o Islão. Em Un regard noir, Diallo, o filósofo senegalês, pergunta aos surrealistas, e exatamente aos surrealistas, não a quaisquer outras sumidades étnicas nem culturais, por que motivo tinham ido a África buscar a magia, se em Paris, para quarenta mil médicos, havia trinta mil marabus, videntes e afins, nesses já sobreditos anos de 1980. E não era quem mais facilmente supomos o paciente, sim empresários, intelectuais, políticos, milionários. Sem contar com autores como Mia Couto, que acodem à tradição como surrealistas, para beberem na fonte original e para que não desapareça debaixo das botifarras anglo-americanas; tradição é igual a natividade, identidade, infância, endotismo, se bem que também Herberto Helder, por exemplo, partilhe o marabutismo angolano, de dentro, vivido in loco, ficando eu agora na dúvida sobre se deva interpretar e o quê como tradição ou aventura, sabendo que os dois termos arrancaram a par da inspiração  da vanguarda.

Consta que De Gaulle se fazia acompanhar nas viagens por Madame Soleil, a sua astróloga, e que Miterrand lhe seguiu as pisadas. Em suma, o pensamento selvagem não é específico dos bons selvagens, sim uma estrutura pensante apta para lidar com os aléns, transversal às comunidades, classes e nações, como nos explicou Lévi-Strauss. Não devemos assim ficar inquietos por os ex-civilizadores não terem conseguido impor a mais avassaladora ferramenta civilizacional, a língua, nem exterminado o mais avassalador dos fantasmas contra-civilizacionais, o marabutismo. Marabus senegaleses, idos do Senegal, e marabus falsificados, de extração francesa, cigana, brasileira – que sei eu? – era o que mais havia em Paris nos famosos anos 80, e não vamos responsabilizar por isso nem o maio de 68 nem os ranchos de hippies, que se limitaram a acentuar a questão com angélicas coroas de flores. Hoje como antes e depois, não há moedas de uma só face, quem quer o mythos terá de sofrer com paciência o assédio do logos. Ou vice-versa.

Não desejava avançar sem duas palavras de comentário a um aspeto selvagem e correligadamente surrealista da obra de Mia Couto, quer ele tenha lido ou não André Breton, quer tenha visto ou não pinturas de Picasso, mais conhecido como cubista, e de Salvador Dali. É o caso algo macabro, de discutível humor negro, do despedaçamento do manequim. Vamos lá: o manequim, boneco das lojas de roupa, é um dos mais típicos objetos surrealistas, por inúmeros apresentado em exposições ou livro, nu ou vestido, despido com colar de pérolas na orelha, vestido no pé com longa boquilha e cinto de ligas, e também, em atuação algo mais ao género do policial negro, que é a deslocação de membros do seu lugar próprio para o de órgão vizinho ou despedaçamento do corpo, aliás do manequim. E então deparamos com objetos surrealistas puros, prontos para sequente collage, se necessário, constituídos por partes do corpo que ganham autonomia em relação à totalidade, ou, para usar termo em voga, adquirem potencial holístico. Dois exemplos pelo menos se patenteiam neste livro, coligidos nos romances de Mia Couto: o dos pés que caminham sozinhos, deixando ápodo o sujeito, algures; e o dos órgãos genitais masculinos, pendurados nos ramos das árvores. Este objeto surrealista aproxima-nos de forma espetacular tanto da tradição como da vanguarda. Tem  origem no salmo 136:

 

Junto aos rios de Babilónia nos sentámos a chorar,

recordando-nos de Sião.

Nos salgueiros das suas margens

pendurámos as nossas harpas.

 

O salmo 136 foi glosado por poetas vários, desde Camões, em Super flumina, a Mallarmé, em Le démon de l’analogie, desde Mallarmé ao Herberto Helder das Servidões. Façamos da memória um rio para navegarmos até à fonte camoniana, locus amoenus para vos acenar com um «Gostei de estar convosco, adeus e até breve»:

 

Como homem que, por exemplo

dos transes em que se achou,

despois que a guerra deixou,

pelas paredes do templo

suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei

que tudo o tempo gastava,

da tristeza que tomei

nos salgueiros pendurei

os órgãos com que cantava.

 

 

Portugal, 26 de abril de 2014.

 
 
 
 
 
 

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