Não sei
explicar precisamente em que momento tinha dado
pela sua presença. Uma estranha sensação fez-me
olhar para trás, de repente, como se alguém
tivesse pronunciado o meu nome, e ali estava
ele, a uns trinta metros de mim. Também tinha
parado. Sem disso me dar conta encarei com
naturalidade a sua presença.
Toda a noite tinha vagueado pela rua, para baixo
e para cima, sem outro destino que não fosse
gastar energias, sem pensar em nada, apenas
assobiando baixinho como se tivesse recebido uma
ordem para assim proceder. Andava apenas a fazer
o que costumamos designar por fazer tempo. Mas
fazer tempo para quê? Não sabia. Andava para
trás e para a frente como se tivesse um
objectivo bem definido à minha espera, não sabia
qual nem quando ou como a ele me entregar. Tudo
parecia conduzir--me ao encontro com aquele
leão. Parado à minha frente observava-me com
curiosidade, a mesma que devia pressentir em
mim.
Não
sentia medo algum. Uma estranha calma me tinha
invadido desde que o distinguira, ao primeiro
olhar que cruzámos, como se fôssemos órgãos de
um mesmo corpo.
Sem
quase dar por isso ouvi-me perguntar-lhe: – “Já
me segues desde há muito tempo?” – “Já.” – foi a
resposta já esperada. – “O que desejas de mim?”
– “Conhecer-te.”
Fiquei
siderado. Para que quereria um leão conhecer-me?
– “Agora já me conheces; e então?” – “Não. Ainda
não te conheço. Preciso de ter a certeza de que
é a ti que procuro. Segue-me.” Estendeu-me a
pata dianteira direita, não para lhe dar a mão
mas a indicar-me o caminho. Deu uns passos,
passou por mim em direcção a um café que se
encontrava fechado e… desapareceu na parede.
Irresistivelmente, impelido por um sentimento
que não soube definir, segui-o. Imediatamente me
vi transportado para a selva africana,
exuberantemente verdejante. O dia, luminoso,
parecia convidar-me a usufruir daquela paisagem
singular, momentos antes impossível sequer de
imaginar.
Tantas
vezes desejara voltar àqueles lugares por onde
tinha passado há quase cinquenta anos! Era a
concretização de um sonho, de uma forma
inesperada e surpreendente. Ali estava agora, no
local da minha primeira comissão de serviço em
Angola, nas matas do Dange. E porquê ali? Olhei
em redor e encontrei-me absolutamente só.
Entreguei-me à calma de gozar o momento, ao
reencontro de mim com o tempo que vivera, embora
sem a presença da ameaça física constante. Houve
como que um reajustamento dos sentidos e
estabeleci uma nova relação com o que me
cercava: o mundo reorganizou-se, rejuvenesci.
Sentia-me bem naquela deslumbrante paisagem de
vegetação densa, exuberante, a natureza em todo
o seu esplendor e pujança em cambiantes de verde
impossíveis de reproduzir. Recordava a floresta
vibrante de sons: diversos trinados de pássaros,
guinchos esporádicos de macacos, urros de
elefantes, ramos quebrando-se à sua passagem.
Mas agora não: como por artes mágicas tudo se
calara como se apenas existisse aquela vida
vegetal, ou como se a natureza animal, como
tantas vezes sucedera outrora, antecipasse o
confronto iminente entre os homens, espectadora
privilegiada das cenas que se iriam desenrolar
sob os seus olhos, talvez incrédulos.
Tinha
consciência de ser eu com tudo o que de memória
me enformava; era aquele que momentos antes
estava na noite, perto da segurança da casa onde
vivia – apenas tinha havido uma subtil mas
nítida alteração da visão, do ouvido, do olfacto
e, penso agora, também do sabor e do tacto.
Olhei
novamente ao meu redor, como se soubesse ir
nesse momento despertar de um sonho, mas tudo
continuava ali. Dessa vez distingui o leão, tão
perto de mim que lhe podia tocar, se quisesse.
Fitava-me com curiosidade, uma curiosidade
diferente daquela que lhe tinha observado quando
nos vimos pela primeira vez. Havia qualquer
coisa de familiar nele, no seu olhar, mas não
conseguia ir além desse sentimento. – “Então?”,
perguntou. – “Então o quê?”, ripostei. – “Não
sentes nada para além do que vês?” – “Não, não
sinto nada em especial, para além do que vejo e
me transporta para outro tempo. Talvez me sinta,
como direi… revigorado.”
De
facto, sobrepondo-se à calma que me invadira,
como se há muito esperasse por aquele momento,
sentindo-me parte da natureza como uma árvore ou
um animal, o meu corpo redobrara de energia,
sentia-o bem. Deixei-me absorver por essa
sensação durante muito tempo, esquecido de tudo
o que me cercava. O leão não interferiu naquele
meu alheamento. Senti-me como se, permanecendo
eu, me tivesse deslocado à origem de mim, à
primitiva forma do meu ser imperecível. Vi-me
ter sido outro, talvez outros, mas sempre a
mesma consciência por detrás de cada corpo,
sempre eu, observando-me, este grão de poeira
estranho e esquisito que sabe nada valer,
teimoso e imbecil, a julgar às vezes que pode
fazer alguma diferença.
De
repente, sem outro pré-aviso a não ser uma
rápida e descontrolada ventania, começou a cair
uma chuva forte e fiquei encharcado em poucos
segundos. Agradeci a dádiva que veio acalmar o
aquecimento a que o meu corpo estava a ser
sujeito desde que chegara, com temperaturas a
rondar os quarenta graus. Uma definitiva calma
me invadiu, como se há muito esperasse aquele
momento. Deixei-me absorver por essa sensação
durante longos minutos; perdi a noção do tempo.
Ali estava eu, o que fui e o que era, eu e tudo
o que me rodeava, eu e o mundo que sempre
quisera ter de novo ao meu redor, eu e as minhas
recordações.
Não sei
quando, mas ainda era dia, quase noite, o leão
disse-me:– “Encosta-te àquela árvore e fecha os
olhos.” Irresistivelmente, assim fiz. Ele
começou então a trautear uma monótona canção.
Não percebia o que dizia mas a melodia fascinava
os meus sentidos. Pouco a pouco deixei de ter
necessidade de me forçar a fechar os olhos,
sabem como é, e entrei num outro estado de
consciência, chamem-lhe sono, o que quiserem.
Imagens por muito tempo reprimidas atingiram-me
com uma violência de sons, e gritos, e disparos.
Vi os feridos e os mortos, senti o sofrimento
imediato que cada um suportou e o que neles
perdurou pela vida fora, nos que viveram;
percebi o porquê de tudo e uma estranha
serenidade, a do conhecimento, me acalmou as
batidas do coração. Soube que ao acordar de nada
me iria lembrar, mas também que esse
esquecimento faria desde então parte de mim como
se tudo tivesse sido resolvido entre o destino e
eu e registado no armazém da memória de factos a
não recordar. Conversei com amigos e inimigos e
reconhecemo-nos filhos do mesmo sopro inicial,
da mesma substância imperecível, origem e fim,
onde todos os sonhos são presente ao abrirmos o
coração ao verdadeiro sentimento – o Amor – e o
entendimento foi perfeito:- não haverá ninguém
que no futuro em lutas escusadas nos envolva.
Nesse
momento regozijámo-nos com a vida, entendêmo-la
em cada dor, em cada dúvida e erro que nos
conduziram a esse encontro com a Verdade
Absoluta: todos somos Um, o Mesmo, em diversos
degraus do caminho que nos conduz à reunião
final, e nunca mais seremos comandados do
exterior para guerras que não sejam as nossas,
despertas em nossos corações.
*
Acordei
na sala. Um leão rugia no ecrã da televisão, num
filme de terror onde não tinha cabimento, numa
cidade americana de província.
O leão desapareceu
quase de imediato, num piscar de olhos. Terei
sonhado também essa presença?
Um odor
a selva perdurava ainda no ar e o vento
assobiava, num horizonte invisível, nos ramos de
frondosas árvores. O que quereria dizer tudo
isto?
Isto o
quê?!
Em que
estava eu a pensar?
Tem
graça ter esquecido em que pensava, assim, de
repente, eu que, para a idade, até tenho boa
memória.
19Jul.09
Julião Bernardes
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