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Revista TriploV de Artes, RELIGIÕES & Ciências . Ns . Nº 58. maio-junho 2016 . Índice
Julião Bernardes, autorretrato
Julião Bernardes (Portugal, 1944). Publicou 12 livros de poesia e dois de prosa (um deles em colaboração com Rui Cacho). Está representado em diversas colectâneas. Militar, fez parte do Movimento dos Capitães.

 

JULIÃO BERNARDES

 

Uma viagem intemporal

  

   Não sei explicar precisamente em que momento tinha dado pela sua presença. Uma estranha sensação fez-me olhar para trás, de repente, como se alguém tivesse pronunciado o meu nome, e ali estava ele, a uns trinta metros de mim. Também tinha parado. Sem disso me dar conta encarei com naturalidade a sua presença.

 

   Toda a noite tinha vagueado pela rua, para baixo e para cima, sem outro destino que não fosse gastar energias, sem pensar em nada, apenas assobiando baixinho como se tivesse recebido uma ordem para assim proceder. Andava apenas a fazer o que costumamos designar por fazer tempo. Mas fazer tempo para quê? Não sabia. Andava para trás e para a frente como se tivesse um objectivo bem definido à minha espera, não sabia qual nem quando ou como a ele me entregar. Tudo parecia conduzir--me ao encontro com aquele leão. Parado à minha frente observava-me com curiosidade, a mesma que devia pressentir em mim.

 

   Não sentia medo algum. Uma estranha calma me tinha invadido desde que o distinguira, ao primeiro olhar que cruzámos, como se fôssemos órgãos de um mesmo corpo.

   Sem quase dar por isso ouvi-me perguntar-lhe: – “Já me segues desde há muito tempo?” – “Já.” – foi a resposta já esperada. – “O que desejas de mim?” – “Conhecer-te.”

 

   Fiquei siderado. Para que quereria um leão conhecer-me? – “Agora já me conheces; e então?” – “Não. Ainda não te conheço. Preciso de ter a certeza de que é a ti que procuro. Segue-me.” Estendeu-me a pata dianteira direita, não para lhe dar a mão mas a indicar-me o caminho. Deu uns passos, passou por mim em direcção a um café que se encontrava fechado e… desapareceu na parede. Irresistivelmente, impelido por um sentimento que não soube definir, segui-o. Imediatamente me vi transportado para a selva africana, exuberantemente verdejante. O dia, luminoso, parecia convidar-me a usufruir daquela paisagem singular, momentos antes impossível sequer de imaginar.

 

   Tantas vezes desejara voltar àqueles lugares por onde tinha passado há quase cinquenta anos! Era a concretização de um sonho, de uma forma inesperada e surpreendente. Ali estava agora, no local da minha primeira comissão de serviço em Angola, nas matas do Dange. E porquê ali? Olhei em redor e encontrei-me absolutamente só. Entreguei-me à calma de gozar o momento, ao reencontro de mim com o tempo que vivera, embora sem a presença da ameaça física constante. Houve como que um reajustamento dos sentidos e estabeleci uma nova relação com o que me cercava: o mundo reorganizou-se, rejuvenesci. Sentia-me bem naquela deslumbrante paisagem de vegetação densa, exuberante, a natureza em todo o seu esplendor e pujança em cambiantes de verde impossíveis de reproduzir. Recordava a floresta vibrante de sons: diversos trinados de pássaros, guinchos esporádicos de macacos, urros de elefantes, ramos quebrando-se à sua passagem. Mas agora não: como por artes mágicas tudo se calara como se apenas existisse aquela vida vegetal, ou como se a natureza animal, como tantas vezes sucedera outrora, antecipasse o confronto iminente entre os homens, espectadora privilegiada das cenas que se iriam desenrolar sob os seus olhos, talvez incrédulos.

  

   Tinha consciência de ser eu com tudo o que de memória me enformava; era aquele que momentos antes estava na noite, perto da segurança da casa onde vivia – apenas tinha havido uma subtil mas nítida alteração da visão, do ouvido, do olfacto e, penso agora, também do sabor e do tacto.

 

   Olhei novamente ao meu redor, como se soubesse ir nesse momento despertar de um sonho, mas tudo continuava ali. Dessa vez distingui o leão, tão perto de mim que lhe podia tocar, se quisesse. Fitava-me com curiosidade, uma curiosidade diferente daquela que lhe tinha observado quando nos vimos pela primeira vez. Havia qualquer coisa de familiar nele, no seu olhar, mas não conseguia ir além desse sentimento. – “Então?”, perguntou. – “Então o quê?”, ripostei. – “Não sentes nada para além do que vês?” – “Não, não sinto nada em especial, para além do que vejo e me transporta para outro tempo. Talvez me sinta, como direi… revigorado.”

 

   De facto, sobrepondo-se à calma que me invadira, como se há muito esperasse por aquele momento, sentindo-me parte da natureza como uma árvore ou um animal, o meu corpo redobrara de energia, sentia-o bem. Deixei-me absorver por essa sensação durante muito tempo, esquecido de tudo o que me cercava. O leão não interferiu naquele meu alheamento. Senti-me como se, permanecendo eu, me tivesse deslocado à origem de mim, à primitiva forma do meu ser imperecível. Vi-me ter sido outro, talvez outros, mas sempre a mesma consciência por detrás de cada corpo, sempre eu, observando-me, este grão de poeira estranho e esquisito que sabe nada valer, teimoso e imbecil, a julgar às vezes que pode fazer alguma diferença.

 

   De repente, sem outro pré-aviso a não ser uma rápida e descontrolada ventania, começou a cair uma chuva forte e fiquei encharcado em poucos segundos. Agradeci a dádiva que veio acalmar o aquecimento a que o meu corpo estava a ser sujeito desde que chegara, com temperaturas a rondar os quarenta graus. Uma definitiva calma me invadiu, como se há muito esperasse aquele momento. Deixei-me absorver por essa sensação durante longos minutos; perdi a noção do tempo. Ali estava eu, o que fui e o que era, eu e tudo o que me rodeava, eu e o mundo que sempre quisera ter de novo ao meu redor, eu e as minhas recordações.

 

   Não sei quando, mas ainda era dia, quase noite, o leão disse-me:– “Encosta-te àquela árvore e fecha os olhos.” Irresistivelmente, assim fiz. Ele começou então a trautear uma monótona canção. Não percebia o que dizia mas a melodia fascinava os meus sentidos. Pouco a pouco deixei de ter necessidade de me forçar a fechar os olhos, sabem como é, e entrei num outro estado de consciência, chamem-lhe sono, o que quiserem. Imagens por muito tempo reprimidas atingiram-me com uma violência de sons, e gritos, e disparos. Vi os feridos e os mortos, senti o sofrimento imediato que cada um suportou e o que neles perdurou pela vida fora, nos que viveram; percebi o porquê de tudo e uma estranha serenidade, a do conhecimento, me acalmou as batidas do coração. Soube que ao acordar de nada me iria lembrar, mas também que esse esquecimento faria desde então parte de mim como se tudo tivesse sido resolvido entre o destino e eu e registado no armazém da memória de factos a não recordar. Conversei com amigos e inimigos e reconhecemo-nos filhos do mesmo sopro inicial, da mesma substância imperecível, origem e fim, onde todos os sonhos são presente ao abrirmos o coração ao verdadeiro sentimento – o Amor – e o entendimento foi perfeito:- não haverá ninguém que no futuro em lutas escusadas nos envolva.

   

   Nesse momento regozijámo-nos com a vida, entendêmo-la em cada dor, em cada dúvida e erro que nos conduziram a esse encontro com a Verdade Absoluta: todos somos Um, o Mesmo, em diversos degraus do caminho que nos conduz à reunião final, e nunca mais seremos comandados do exterior para guerras que não sejam as nossas, despertas em nossos corações.

 

*

 

   Acordei na sala. Um leão rugia no ecrã da televisão, num filme de terror onde não tinha cabimento, numa cidade americana de província.

O leão desapareceu quase de imediato, num piscar de olhos. Terei sonhado também essa presença?

 

   Um odor a selva perdurava ainda no ar e o vento assobiava, num horizonte invisível, nos ramos de frondosas árvores. O que quereria dizer tudo isto?

 

   Isto o quê?!

   Em que estava eu a pensar?

 

   Tem graça ter esquecido em que pensava, assim, de repente, eu que, para a idade, até tenho boa memória.

 

19Jul.09

Julião Bernardes  

 

 
 
 
 
 
 
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