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Revista TriploV de Artes, RELIGIÕES & Ciências . Ns . Nº 58. maio-junho 2016 . Índice
   
Gledson Sousa (Brasil). Poeta e ensaísta.

 

GLEDSON SOUSA

 

Eupharios

Ou Do Regime da Natureza

I

Sócrates: Sabe Eupharios, fico pensando em quantas palavras me serão atribuídas pelos homens do futuro e quantas delas terão realmente a ver com o que disse e pensei. Isto é, se por acaso minhas palavras, que por ora incomodam Atenas, ao ponto de me chamarem de ímpio, ultrapassarem esse curto espaço de tempo que é a vida humana.

Eupharios: Mas o que te preocupas, ó Sócrates, e por que te preocupas assim tão de repente, ao ponto de interpelares um amigo ainda na soleira da porta de tua casa? Os viajantes te saúdam Sócrates, Cós te manda lembranças!

Sócrates: Sê bem vindo Eupharios! É que no momento em que chegastes, um pensamento acabava de cruzar a soleira da minha mente, e tua imagem, Eupharios, era como a expressão, a imagem desse pensamento, que tanto deve ter viajado dentro de mim antes de chegar assim tão de surpresa aos lábios. Como estão as coisas em Cós?

Eupharios: Cós continua bela, como são belas todas as cidades antes que a própria mão do homem não a lance em alguma catástrofe. Mas, diga-me Sócrates, o que te afligia? Por que pensavas nos homens do futuro se são os do presente que te afligem? Ainda insistem na acusação de impiedade?

Sócrates: Meu caro Eupharios, os homens do futuro e os do passado estão ligados por sucessivas ondas de tempo, e me ocorreu pensar que se os homens do presente acusam-me de impiedade, justo a mim, que nunca esqueço um festival da Meter nem minhas oferendas a Asclépio, o que dirão os homens do futuro? Penso que por mais que nos esforcemos, os atos e as palavras seguem outro curso além daquele que desejávamos e entre o que somos e o que aparentamos ser, parece-me que se instaurou um véu, que diz de nós outra coisa e não aquilo que somos.

Eupharios: Deixa-me ver se entendi o que queres dizer: estás a me dizer que involuntariamente somos atores? Que ao contrário destes que buscam conscientemente um papel e uma hora são Teseu acolhendo Édipo, outra Orestes vingando o pai, que nós, mesmo procurando ser o que somos, aparentamos ser outro?

Sócrates: Era exatamente isso que pensava, e tomava a mim mesmo como exemplo, com minha 'impiedade' contestada. Nunca me ocorreu negar os deuses, mas uma só palavra, aliás, uma só pergunta turvou para as pessoas a minha crença, como se os deuses precisassem de crença. Nós precisamos da crença, porque duvidamos de nossos sentidos. Nossa mente desacostumou ao instinto, que presencia por trás do vento forte a manifestação de deuses tais que não vê razão para duvidar. Mas nossa mente passou a exigir provas, como se houvesse provas para tudo.

Eupharios: Mas Sócrates, o que temes é o mal entendido ou a fofoca? Achas que foi sempre assim?

Sócrates: Não temo nada meu caro, só me ocorre pensar que o tempo prega peças e projeta de nós o que não fomos. Além disso, parece-me que quando chegamos à tona de nós mesmos o que quer que façamos já não corresponde exatamente o que somos. Pelo menos para aqueles que são. Mas, que educação a minha, chegastes e já fomos filosofando... Pedirei à Xantipa que traga aquele vinho de Corinto que tu gostas e aí me contarás da tua viagem à Cós e de tua passagem por Cumas...

 

II

Eupharios: Tu o sabes que sofro de gota há algum tempo, e que as dores que venho sentindo nos pés e nas mãos têm aumentado na progressão dos dias. A escola de Cós ainda é muito forte, sente-se ainda a presença de Hipócrates e Lampsaco, que tu conheces, pois é meu cunhado, havia me recomendado um médico de lá, Beneiatros é seu nome.

Sócrates: De modo a que foste bem atendido?

Eupharios: Sim, o fui, na medida em que um médico consegue corresponder às expectativas de um doente.

Sócrates: Mas o que o tal do Beneiatros te passou como medicamento ou o que te disse para te deixares na incerteza?

Eupharios: Não teria do que reclamar Sócrates. Ele se portou da maneira mais justa e seus conselhos de alguma maneira se assemelham aos teus. Mas a dor nos deixa por demais insensatos, achamos que somos os únicos a sermos portadores de tais males e que deveríamos ter exclusividade no amor dos outros, principalmente dos médicos. Mas ele começou justamente por mostrar-me a universalidade da dor...

Sócrates: Parece-me que ele fazia isso não por lhe menosprezar, mas para te indicar a compaixão, pois quantos, de fato, no mesmo momento que tu, estariam a passar por outras dores, às vezes semelhantes a tua, às vezes em tudo distintas, mas de qualquer maneira dor? Acho que ao mostrar-lhe esse universo da dor, ele queria te mostrar ainda mais o universo da cura, mostrando-lhe que muitos outros passam e tantos outros já passaram pela dor e se curaram. Não é o que te parece?

Eupharios: Sim, é o que me parece; nada mais distante da atitude dele que o desdém. A todos recebe indistintamente, de escravos a generais, e a todos escuta. Mas não procura agradar a ninguém. Diz que, acima de todos os outros, o médico precisa trabalhar com a verdade: o retórico pode às vezes ser tomado pela pulsão da palavra e incorrer em erro, o filósofo muitas vezes é levado às águas da especulação, mas o médico precisa da verdade, a verdade é seu antídoto, pois só ela o poderá guiar.

Sócrates: Curioso esse Beneiatros, parece-me que sabe ainda mais do que revela. Mas de qual verdade ele fala?

Eupharios: Sócrates, de acordo com as palavras dele, só há uma verdade, a verdade é uma mãe de muitos braços. Mas em particular se refere à verdade do corpo.

Sócrates: Mas seria assim o corpo possuidor de uma verdade?

Eupharios: Sim meu caro Sócrates. A verdade do corpo seria seu primo motor, sua condição original e que como tal, seguia o regime da natureza.

Sócrates: Não seria antes a alma que, perdida ou doente, deixaria suas marcas no corpo, que é como que sua roupa, assim como os sapatos que usamos têm a forma de nossos pés?

Eupharios: Para Beneiatros, o corpo não é o traje da alma, ambos são uma só coisa, vistas em tempos diferentes, o tempo da alma e o tempo do corpo, que não são sempre idênticos, tal como o visto se antecipa, muitas vezes,ao que é escutado, e também porque nossas paixões turvam o instinto pervertendo-o, fazendo-nos adoecer, alterando o regime da natureza e os tempos do homem.

Sócrates: A verdade do corpo seria então...

Eupharios: Sua conformidade ao regime da natureza. Na sua prima natura, o corpo segue seus desígnios e seus desígnios se amoldam ao meio. Já conversastes com algum bárbaro do norte? Quando vêm à Atenas no verão sempre nos perguntam como agüentamos o calor e nós perguntaríamos a mesma coisa a ele se fôssemos morar em lugares de neves eternas, porque nossos corpos estão acostumados a essa que foi sua primeira condição. Ademais nossos rins só toleram líquidos, não digerimos pedras e sempre o organismo procura buscar o equilíbrio.

Sócrates: Nada poderia objetar a tuas palavras, que soam aos meus ouvidos como esse vinho de Corinto em nossas línguas. Mas o vinho o pode. Porque geramos algo mais que o que a natureza havia nos dado. Colhemos o fruto, mas do fruto fazemos o vinho, como do mel o hidromel. Se nosso corpo estava preparado, em sua verdade, para digerir a água, estaria ele preparado para digerir o vinho? O que diria Beneiatros sobre isso?

Eupharios: Olha Sócrates, quando ele examinou-me perguntou-me das dores que sentia, mas perguntou também qual era minha alimentação, o que comia e como comia. Não neguei-lhe que sou um apreciador de carnes e que nunca deixo de tomar meu vinho de Corinto, ao que lhe perguntei se por acaso eram esses os motivos da minha gota. A resposta que ele me deu casa como resposta ao que me perguntastes. Primeiro ele me disse que o vinho era ainda natureza e que como tal a natureza do nosso corpo poderia digerí-lo, que enquanto homens nós sublimamos o primo motor da natureza, mas que nem por isso nos afastamos dela. O que a natureza teme, em nosso corpo, é o excesso. Assim como na sociedade nossa polis, nosso sistema de governo é ainda natureza, mas um regime despótico é como uma natureza atormentada. Por isso que não podemos esquecer os deuses, porque eles são natureza manifesta e esquecermo-nos deles é tornarmo-nos ou cairmos na paranóia.

Sócrates: Eu te pergunto Eupharios: o que é o esquecimento?

Eupharios: Por Zeus, Sócrates, esquecimento é a não lembrança.

Sócrates: E a não lembrança é não pensar em algo? Sempre que lembramos algo pensamos nesse algo?

Eupharios: Sim, me parecer que a lembrança vem ao pensamento.

Sócrates: Vem ao pensamento ou é um pensamento?

Eupharios: Parece-me que o pensamento já está lá quando a lembrança aparece. Principalmente quando a lembrança é de alguém ou algo de que gostamos.

Sócrates: Então a lembrança vem como algo de fora ao pensamento... A lembrança vem então como um sentimento? Algo que sentimos antes mesmo de pensarmos?

Eupharios: É o que me parece.

Sócrates: Mas não lembramos somente do que gostamos, mas do que...

Eupharios: ...sentimos.

Sócrates: Falastes da lembrança daqueles a quem estimamos. Acaso alguma vez esqueceste-se do teu pai, da tua mãe, ou de tua esposa e de teus filhos?

Eupharios: Por Zeus, Sócrates, claro que não.

Sócrates: Nem por um momento?

Eupharios: Nem por um momento.

Sócrates: Tens certeza?

Eupharios: Bem, quando estamos juntos não costumo pensar neles, porque eles estão ali comigo e suas presenças preenchem meu sentir. E quando estou longe, mas tomado de atribulações, também não me lembro e se por acaso a lembrança emerge, penso em outra coisa para não atormentar-me.

Sócrates: O que tu disseste é muito importante... Quando estamos próximos de alguém ou algo não lembramos do mesmo porque ele está ali, ao nos afastarmos é que sentimos a ausência, mas a mente pode provocar o esquecimento. Entendo agora Beneiatros: esquecer dos deuses é estar com o nous em desordem, porque não fora a desordem do nous, a mente paralela, sentiríamos a ausência dos deuses como sentimos a falta da água num rio que secou, porque os deuses são esses rios da natureza entre a eternidade e nós...

Eupharios: Nem sei o que dizer. Parece-me que estou a ver o próprio Beneiatros com sua barba branca e sua calma a falar-me através de ti. Ele também fala de rios.

Sócrates: O que ele fala dos rios?

Eupharios: Ah, ele diz que assim como um rio represado pelo homem não deixa de ser rio, assim também o homem cultuado, que produz vinho e epigramas, não deixa de ser natureza; ele só deixa de ser natureza quando, tomado pelas coisas materiais como fins em si mesmas, o homem esquece-se do rio dos deuses e paranóico vaga querendo corrigir o regime da natureza, no lugar de se deixar corrigir...

 

III

Sócrates: Meu caro Eupharios, o tempo que ficastes longe lembra as viagens de Odisseus, mas não fostes atrás da guerra nem de algum botim, mas de outro tesouro que é estar bem. Achastes teu tesouro?

Eupharios: Doce é esse tesouro, ó Sócrates. Passei quase três anos fora, sendo que desses três anos, quase a maior parte do tempo passei em Cós. Cheguei quase como um suplicante e Beneiatros não aliviou de imediato minhas dores com mezinhas e tisanas. O que ele queria era que eu reencontrasse meu corpo e o regime de sua natureza. Todos os dias íamos ver o mar e sentíamos o ir e vir das ondas e ele me mostrou uma ciência muito saborosa, quase uma talassologia, que o mar escreve na areia e desenha nas ondas uma música que podemos ouvir. Era como se a música do mar fosse também a do meu corpo, ele auscultava as ondas de meu pulso e dizia o que fremia em mim. Tive um lento aprendizado de ouvir o que de fato meu corpo pedia e não àqueles impulsos que dentro da mente chegam a ser quase uma antinatureza, porque turvamos nossa água com o desmedido e não sabemos mais como seria a clepsidra de nosso ser.

Sócrates: E aprendestes a ouvir teus ritmos? Conseguistes escutar essa tua água?

Eupharios: Foi um longo aprendizado Sócrates. O que era de fato fome e o que era mero desejo? Onde acabava o repouso e começava a indolência? Beneiatros foi paciente e agiu quase como um pai. Insistia que, assim como as ondas nas praias de Cós não são iguais às de Atenas, nenhum corpo possui o mesmo ritmo, por isso não há regras gerais a serem aplicadas, não há uma dietética universal, porque cada um é um mar diferente, com seus recifes, enseadas e tempestades próprias. Tornei-me um bom ouvinte, Sócrates, e quando ouvir o mar já se tornara minha rotina, Beneiatros me dispensou e disse: agora já podes te curar.

Sócrates: Parece até que foste iniciado nos mistérios... Tuas dores passaram?

Eupharios: Não de todo, mas a cada dia que passa elas cessam. De Cós peguei um barco para Mileto e de Mileto subi até Cumas para agradecer minha cura no santuário da deusa frígia. Deixei meus votos à Grande Mãe.

Sócrates: Mas por que Cumas e não Pérgamo, que é tão conhecida por seu santuário da Grande Mãe?

Eupharios: Por razões pessoais. A família de minha mãe veio de Cumas.

Sócrates: Meu caro Eupharios, de verdade vivestes uma aventura singular. O teu Beneiatros é um legítimo herdeiro de Hipócrates. Penso que em ti o véu a que aludi, que cobre nossos atos com a distância de nós mesmos como se fôssemos já outra coisa, penso que em ti esse véu diminuiu.

Eupharios: Por que Sócrates?

Sócrates: Porque aprendestes a escutar tua natureza e parece-me que não há entre ti e teu nous um pensamento paralelo que te impeça de escutar a música do regime da natureza.

Eupharios: Ainda sonho, ó Sócrates, ainda que em meus sonhos seja cada vez mais o mesmo.

Sócrates: Mas não te parece que falar em seguir assim o regime da natureza, que voltaríamos a ser como animais, sem escolha e mesmo sem deuses?

Eupharios: Beneiatros não comia carne de nenhum animal, não por causa de algum preconceito moral, mas porque estimava a todos como irmãos. Mas dizia que irmãos nunca são iguais, o mais velho cuida do mais novo, o do meio às vezes se afasta e cada qual possui sua natureza. Nossa natureza não nos obriga a andar de quatro patas. Mesmo o amor entre os corpos, que nos outros parece pura sujeição à natureza, em nós se torna maneira de amar. Somos mais que trigo e uva, somos vinho e pão, mas vinho e pão são ainda substâncias naturais.

Sócrates: Sim meu caro Eupharios, o arado e a foice são feitos com a madeira e o ferro que a natureza nos deu. Aprendi muito contigo ó Eupharios, tanto que não mais oferecerei galos em sacrifício a Asclépio, a não serem galos vivos.

Eupharios: Não zombes de um velho homem que ainda se alimenta de tantas esperanças...

Sócrates: Não estou zombando, falo a verdade. Lembra-te do que dizia a ti quando chegaste ontem à minha casa?

Eupharios: De que o tempo prega peças em nós. Falastes antes mesmo que cruzasse a soleira da porta.

Sócrates: Era como se tu trouxesses uma resposta às minhas inquietações Eupharios. Deve ter sido um deus mesmo que te enviou, pois refleti contigo sobre o regime da natureza e entendo porque fostes ao santuário da deusa mãe em Cumas, porque é como se tivesses aprendido a escutá-la dentro de ti. Troco um galo morto por um galo vivo para Asclépio. Troco o receio das trapaças do tempo pela confiança no nous, que fazendo o que é correto e o que nos manda a liberdade, não importa o que dirá o tempo, mas o que fizemos no nosso tempo. Agora, meu amigo, convido-te a irmos até o Metroon fazermos oferendas à deusa, pois sinto as ondas e a brisa do mar me tocarem por dentro.

Eupharios: Por Zeus, Sócrates, que Xantipa venha conosco.

Sócrates: Ela virá.

Eupharios: Olha que curioso: o vinho de Corinto nem acabou.

 
 
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