II
Eupharios:
Tu o sabes que sofro de gota há algum tempo, e
que as dores que venho sentindo nos pés e nas
mãos têm aumentado na progressão dos dias. A
escola de Cós ainda é muito forte, sente-se
ainda a presença de Hipócrates e Lampsaco, que
tu conheces, pois é meu cunhado, havia me
recomendado um médico de lá, Beneiatros é seu
nome.
Sócrates:
De modo a que foste bem atendido?
Eupharios:
Sim, o fui, na medida em que um médico consegue
corresponder às expectativas de um doente.
Sócrates:
Mas o que o tal do Beneiatros te passou como
medicamento ou o que te disse para te deixares
na incerteza?
Eupharios:
Não teria do que reclamar Sócrates. Ele se
portou da maneira mais justa e seus conselhos de
alguma maneira se assemelham aos teus. Mas a dor
nos deixa por demais insensatos, achamos que
somos os únicos a sermos portadores de tais
males e que deveríamos ter exclusividade no amor
dos outros, principalmente dos médicos. Mas ele
começou justamente por mostrar-me a
universalidade da dor...
Sócrates:
Parece-me que ele fazia isso não por lhe
menosprezar, mas para te indicar a compaixão,
pois quantos, de fato, no mesmo momento que tu,
estariam a passar por outras dores, às vezes
semelhantes a tua, às vezes em tudo distintas,
mas de qualquer maneira dor? Acho que ao
mostrar-lhe esse universo da dor, ele queria te
mostrar ainda mais o universo da cura,
mostrando-lhe que muitos outros passam e tantos
outros já passaram pela dor e se curaram. Não é
o que te parece?
Eupharios:
Sim, é o que me parece; nada mais distante da
atitude dele que o desdém. A todos recebe
indistintamente, de escravos a generais, e a
todos escuta. Mas não procura agradar a ninguém.
Diz que, acima de todos os outros, o médico
precisa trabalhar com a verdade: o retórico pode
às vezes ser tomado pela pulsão da palavra e
incorrer em erro, o filósofo muitas vezes é
levado às águas da especulação, mas o médico
precisa da verdade, a verdade é seu antídoto,
pois só ela o poderá guiar.
Sócrates:
Curioso esse Beneiatros, parece-me que sabe
ainda mais do que revela. Mas de qual verdade
ele fala?
Eupharios:
Sócrates, de acordo com as palavras dele, só há
uma verdade, a verdade é uma mãe de muitos
braços. Mas em particular se refere à verdade do
corpo.
Sócrates:
Mas seria assim o corpo possuidor de uma
verdade?
Eupharios:
Sim meu caro Sócrates. A verdade do corpo seria
seu primo motor, sua condição original e que
como tal, seguia o regime da natureza.
Sócrates:
Não seria antes a alma que, perdida ou doente,
deixaria suas marcas no corpo, que é como que
sua roupa, assim como os sapatos que usamos têm
a forma de nossos pés?
Eupharios:
Para Beneiatros, o corpo não é o traje da alma,
ambos são uma só coisa, vistas em tempos
diferentes, o tempo da alma e o tempo do corpo,
que não são sempre idênticos, tal como o visto
se antecipa, muitas vezes,ao que é escutado, e
também porque nossas paixões turvam o instinto
pervertendo-o, fazendo-nos adoecer, alterando o
regime da natureza e os tempos do homem.
Sócrates:
A verdade do corpo seria então...
Eupharios:
Sua conformidade ao regime da natureza. Na sua
prima natura, o corpo segue seus desígnios e
seus desígnios se amoldam ao meio. Já
conversastes com algum bárbaro do norte? Quando
vêm à Atenas no verão sempre nos perguntam como
agüentamos o calor e nós perguntaríamos a mesma
coisa a ele se fôssemos morar em lugares de
neves eternas, porque nossos corpos estão
acostumados a essa que foi sua primeira
condição. Ademais nossos rins só toleram
líquidos, não digerimos pedras e sempre o
organismo procura buscar o equilíbrio.
Sócrates:
Nada poderia objetar a tuas palavras, que soam
aos meus ouvidos como esse vinho de Corinto em
nossas línguas. Mas o vinho o pode. Porque
geramos algo mais que o que a natureza havia nos
dado. Colhemos o fruto, mas do fruto fazemos o
vinho, como do mel o hidromel. Se nosso corpo
estava preparado, em sua verdade, para digerir a
água, estaria ele preparado para digerir o
vinho? O que diria Beneiatros sobre isso?
Eupharios:
Olha Sócrates, quando ele examinou-me
perguntou-me das dores que sentia, mas perguntou
também qual era minha alimentação, o que comia e
como comia. Não neguei-lhe que sou um apreciador
de carnes e que nunca deixo de tomar meu vinho
de Corinto, ao que lhe perguntei se por acaso
eram esses os motivos da minha gota. A resposta
que ele me deu casa como resposta ao que me
perguntastes. Primeiro ele me disse que o vinho
era ainda natureza e que como tal a natureza do
nosso corpo poderia digerí-lo, que enquanto
homens nós sublimamos o primo motor da natureza,
mas que nem por isso nos afastamos dela. O que a
natureza teme, em nosso corpo, é o excesso.
Assim como na sociedade nossa polis, nosso
sistema de governo é ainda natureza, mas um
regime despótico é como uma natureza
atormentada. Por isso que não podemos esquecer
os deuses, porque eles são natureza manifesta e
esquecermo-nos deles é tornarmo-nos ou cairmos
na paranóia.
Sócrates:
Eu te pergunto Eupharios: o que é o
esquecimento?
Eupharios:
Por Zeus, Sócrates, esquecimento é a não
lembrança.
Sócrates:
E a não lembrança é não pensar em algo? Sempre
que lembramos algo pensamos nesse algo?
Eupharios:
Sim, me parecer que a lembrança vem ao
pensamento.
Sócrates:
Vem ao pensamento ou é um pensamento?
Eupharios:
Parece-me que o pensamento já está lá quando a
lembrança aparece. Principalmente quando a
lembrança é de alguém ou algo de que gostamos.
Sócrates:
Então a lembrança vem como algo de fora ao
pensamento... A lembrança vem então como um
sentimento? Algo que sentimos antes mesmo de
pensarmos?
Eupharios:
É o que me parece.
Sócrates:
Mas não lembramos somente do que gostamos, mas
do que...
Eupharios:
...sentimos.
Sócrates:
Falastes da lembrança daqueles a quem estimamos.
Acaso alguma vez esqueceste-se do teu pai, da
tua mãe, ou de tua esposa e de teus filhos?
Eupharios:
Por Zeus, Sócrates, claro que não.
Sócrates:
Nem por um momento?
Eupharios:
Nem por um momento.
Sócrates:
Tens certeza?
Eupharios:
Bem, quando estamos juntos não costumo pensar
neles, porque eles estão ali comigo e suas
presenças preenchem meu sentir. E quando estou
longe, mas tomado de atribulações, também não me
lembro e se por acaso a lembrança emerge, penso
em outra coisa para não atormentar-me.
Sócrates:
O que tu disseste é muito importante... Quando
estamos próximos de alguém ou algo não lembramos
do mesmo porque ele está ali, ao nos afastarmos
é que sentimos a ausência, mas a mente pode
provocar o esquecimento. Entendo agora
Beneiatros: esquecer dos deuses é estar com o
nous em desordem, porque não fora a desordem do
nous, a mente paralela, sentiríamos a ausência
dos deuses como sentimos a falta da água num rio
que secou, porque os deuses são esses rios da
natureza entre a eternidade e nós...
Eupharios:
Nem sei o que dizer. Parece-me que estou a ver o
próprio Beneiatros com sua barba branca e sua
calma a falar-me através de ti. Ele também fala
de rios.
Sócrates:
O que ele fala dos rios?
Eupharios:
Ah, ele
diz que assim como um rio represado pelo homem
não deixa de ser rio, assim também o homem
cultuado, que produz vinho e epigramas, não
deixa de ser natureza; ele só deixa de ser
natureza quando, tomado pelas coisas materiais
como fins em si mesmas, o homem esquece-se do
rio dos deuses e paranóico vaga querendo
corrigir o regime da natureza, no lugar de se
deixar corrigir...
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