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ANA PINTO
Poemas
para o Encontro
dos livros
Crisol
e Os selos da
rosa e um
inédito
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O OUTRO LADO DA
PORTA
Se começaste pelas
fontes do mel:
agora amola a faca -
porque te seca a
garganta e dos dedos lerdos
pouco te resta senão a
náusea;
melhor seria cortar a
água com a língua
depois de abrasada e
pura e pura;
encher o tanque com o
algodão das mulheres
correntes e correntes de
orvalho e uma cana de ar:
amola a faca – crava-a
na febre e na escrita
porque a terra se racha,
alumia,
invade discos, as polpas
das mulheres com nardos
e lírios nos cabelos
E no meio o encantador
de serpentes escreve,
e no meio do meio dois
ladrões,
e ao centro a minha
língua seca – e já não há mel na terra
nem ordenhas, nem
unguentos leitosos:
fiquei aqui do outro
lado da porta
a arrancar os lacres
com os olhos enevoados
pela música
a laranja sanguínea na
coroa
Saltam ecos como bagas
desfeitas pela boca
saltam pedras como
golpes da língua - a faca,
essa, cravei-a funda na
rosa
porque todos os mortos
me quiseram vida
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SAFRA
Mestre, que dado verso
entre relâmpago?
São dados sobre tua
veste
ou são as sortes sobre
teu corpo
assim diamante outro o
verso
mais antigo, à garganta?
Também te vi do lago, a
água era doce, era,
os peixes, como
divididos e acesos:
a sangue e a voz e a
miolo:
tripla adição,
e do que resulta
dos três bebi: do odre a
salga -
resquícios da talha
O verbo relincha ao sol
forte,
o velho sinete metálico
abre rolos, espalha
sementes -
bela safra esta que
deixaste na cabeça dos poetas
que vêem luz sob
condensações de pó –
Serão malditos os deste
estigma
ou é apenas a sucessão
da memória?
- Se te ergues és a
vara, se te deitas és o verme:
e nós: deitamo-nos na
linha a despejar a taça
como se morrêssemos na
terra toda
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JOSÉ DO EGIPTO
Chegámos nus
ao ermo de areias e de ouro
onde leitos azuis se
dividiam - meia bacia de lua
de múltiplos reis,
poliedros deuses,
e o engano no resgate
à profecia
Um punho, uma
pulseira de sete ventos agitei,
sete astros entornei
ao vidro verde,
teu corpo lançado às
sortes, inocente,
a lágrima - um peso
na taça pura
Só a mãe enxuga raios
com seus pés poderosos:
parte o tempo –
sete anos são
aventurosos,
outros sete,
devastação
Gemas lavam os olhos,
o manto ala-se
através do orvalho da
visão:
à sementeira junta,
ao pão da fome
tornam mendigos,
magos e irmãos -
correm as barcas
sobre dunas nos tacões da noite:
Uns são reis - outros
vão.
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DA VIDE
Outros dirão
da palavra
o mergulho amniótico
como se nessa ablução
encontrassem
o seu próprio início
- mas a chama
move o bico para além
das galerias de vidro
espacial – antes
a lâmina
sobre a pele
reconhecia a sua origem
O ferro oxida rios no
coração da terra
o sangue doura a
sucessão dos caminhos
da vide
E como se da língua
um nome
fosse o tamanho do
homem,
um tronco torcido e o
estigma da poda
também ele se levanta
- um busto de pétalas soldadas
na caruma, da
primeira inflorescência
o grito ardente de
seiva viva
A vida é um mistério
maior do que a morte -
o tempo caminha pelas
casas minerais do corpo
as câmaras são
vermelhas até ao decesso
da estação
e uma esponja
fulgente - ou uma rosa
de órgãos rubros
ergue-se pelas mãos
e cria o seu próprio
sol
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O PÃO
Anjos passam pelas covas
dos que sonham
deixam-lhes o alimento
dos pássaros -
alguém me atirou uma
corda:
já não podia mais ouvir
gritar os meus sonhos
Levaram-me às areias
eu, a transpirar a visão
e o pó e a sede,
dos sonhos dos outros -
sabia:
tinha sonhado a terra
toda,
feixes espigas aos
molhos
dentro de sonhos
às vezes estrelas caem
Sírius não entra pelo
arco da noite -
os sonhos das crianças
não podem ser ditos,
são uma febre, uma
doença, despedaçam
Sonhava o pão, miolo
acabado,
os sonhos comem-se
também
e troca-se o ouro, a
prata, a vida, o gado,
os cálixs, o que houver
e digo que já li este
livro, era um livro
com searas por dentro, a
rosa do sol,
vi irmãos de sonho
que vinham buscar sacos
e sacos de grão
Vinham buscar pão -
e o pão era eu.
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DECANTO-ME
Falta-me o
ar, sou uma baga
num receptáculo
hermético.
Caí da vara da
videira – dá-me essa
luz fechada, uma
rajada de treva,
um fio de erva.
E que me devaste o
mistério todo branco;
o tumulto onde se
acendem astros
em mim,
no submerso, no
fragmento do brilho
Vivo o selo desta
maceração,
o estigma da energia
que me cai sobre
amálgamas desfeitas
Os rios sobem
purpúreos
à febre alta,
as mãos queimam-se no
fermento
Sou a água que se
desfez ferida,
sal da terra
borbulhando em espumas e cascas
de mosto. Uma palavra
redonda, um aroma,
uma esfera no derrame
Perdi o oxigénio num
mundo de leveduras:
morro-me, adoço-me,
entro nos cálices,
bebo-me nas artérias –
Decanto-me.
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O CAPITEL
O tempo habita-me o
corpo. Sorvo água das ágatas,
formo-me em pão, a
taça - um luxo no sangue.
Correm-me feixes de
água dos dedos, água eléctrica.
Na cúspide, sou uma
estrela, um elo, arremessado
ao declive do fosso.
O leite do pão
crepita nas chamas do deserto
em bordões cobras, de
acesos cristais -
Vejo-me ao espelho
alto. Sou uma pedra tingida
à matéria ígnea. Um
sinal.
Dei água aos poços,
fiz crescer figueiras secas.
Derrubei mel à sede,
estanquei as malhas aos peixes,
Calei os templos.
Escrevi memórias em vozes,
abri a porta ao
fariseu deslumbrado, que rodou
a esfera do túmulo -
Salvei a morte.
Senti amor e ofereci
sangue.
Hoje ceio num lugar
subterrâneo.
Instruo uma palavra,
uma palavra de silêncio
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VERITAS ET
LUX
A paisagem alucina o
homem cobra,
o bastão de luz com o
verbo bordado
à língua presa. O sal
cai acre da secura
ao monte azul -
trabalhei à plaina e à goiva as vozes,
o talhe, do ranger da
bancada a rostos lívidos.
Caíram montes,
arrastaram-se as pedras
que atingiram a ladainha
dos sábios -
fiquei com esta dor
alumiando
as braçadas tensas
esta dor que derruba a
hora estancada
O mundo a fender-se na
minha ferida –
Eu, que acariciei a seda
da acácia,
que debruei a coluna,
que lavrei os selos,
eu, que pressenti a
passada do leão verde
pela cova, que lancei
areia aos olhos do demo
com as mãos palpitantes
no ermo dos astros.
Eu, que escrevi o meu
sangue em todas as areias
com a sede do óleo
depois do mergulho
nas palavras arteriais -
Levanto-me na solidão
dos ecos,
levanto-me pelo cristal
do mago,
na fagulha, no fuso
magnético do bastão, no ouro,
a todas as tempestades
de insectos, a todos os ventos
a todas as pragas e
assolações.
A solidão levanta-se do
meu corpo.
- Quem coligiu esta
porta à porta negra do lado
brilhante, senão eu?
- Quem lavrou um lírio
no mármore para que ele
fosse o meu espelho?
- Quem me vestiu roupa
dum só talhe e quem me deu
a chave entrelaçada
e me fez rosa da minha
própria morte?
- Quem me bebeu nos
poços, quem se embriagou
no meu vinho, quem me
negou, quem teve medo?
Os versos escreveram-se
em anagramas
decorados pela língua do
mundo -
Ninguém me vendeu,
ninguém me traiu
Cumpri-me -
Nenhum anjo se sentou
no meu túmulo
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O POÇO
Tudo é redondo no
sal, o erro
da visão trémula e a
velocidade do ar
a travar portas ao
sol. Pela fuga ao outeiro
a cinza
é delicada nas piras:
morre-se na luz
leves no enxofre
Tudo é desígnio,
oxigénio:
atravesso dois mundos
com o corpo da treva
a ofuscar-me
a garganta, os pés na
ardência
do pó - tudo é cinza
e pó
Quero o dízimo do
poço,
uma bainha de renda
salina,
a água elementar – a
bilha
à cintura ou a talha
enchê-la de palavras
levíssimas,
ferver o
esquecimento.
Estendo-me nas
folhas
- o livro em que me
li frente à sede
e correm-me ramos,
rios cinábrios
pelos tubos dos
braços
No poço tudo se move
- Sou o poço
reflexo das rosas de
sal, em baixo, em cima
Digo água, tinjo-me
vinho
um feixe de sílabas
arcaicas
uma flor cansada na
testa
Digo água e não morro
desta morte
Digo água e mosto -
O sangue atravessa o
mundo
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FIGUEIRA
Cortaremos
os figos à lâmina
até que tomem forma
de cálice
nas mãos
e se abram em
pequenas sementes de ametista
cheias com mel por
dentro.
Depois o sorvo, a
ardência na garganta -
Conheceremos o fruto.
Comeremos os figos
como o primeiro
homem, a primeira mulher.
Das parras verdes
saberemos seus rios
de seiva de leite,
o segredo, a escrita
antiga traçada
pela língua ónix da
serpente à folha
de pergaminho
A luz abre a porta,
por feixes espada, pelas gemas
do deserto
Ao solstício, o viço
chega à palavra –
Nomes, baptizam-se
nos rios,
números, à geometria
celeste
Comeremos da figueira
a seda
e o sangue
dos figos
circuncidados e límpidos,
o mel todo preso ao
meio - com a lâmina na mão,
enquanto a palavra
espirala
e dança. Nua.
Em seus véus de
cristal.
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PESSACH
Sacrifiquem as
palavras, as palavras inocentes.
Abram-nas nas suas
costuras fundamentais
com um golpe certeiro
de água luminosa,
um rasgão de luz até
ao coração.
Escolham uma lâmina
de prata para as vísceras
refulgentes, letra a
letra -
Façam-no sobre o
mármore
para que o fogo corra
puro
e aspirjam o sangue
nas quatro paredes do
mundo
para que se transmude
em canto
Pintem-nas nos perfis
nas portas,
as palavras,
porque há noites
assombrosamente belas
em suas canções
inocentes -
os cânticos das
casas, os toques ázimos das mãos
o pão redondo do
verbo
Recolham da ceifa
antiga
nutram-se da carne e
do fogo com que brincavam
as mãos das crianças
nos pastos baixos.
Há casas que são
tendas lançadas
no meio do deserto -
as crianças conhecem o caminho
das pombas, as
línguas novas das pombas,
com pequenas folhas
de lava a arder no bico
Por isso fazem uma
roda com as palavras
a bater as asas e a
atear diamantes - cantam
alto, muito alto as
palavras magníficas e purificadas
pelas chamas,
depois pelas águas,
que incendeiam as
cabeças
das rosas brancas
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A FERIDA
Há uma linha
ininterrupta que vai do mar ao coração.
Um fino sulco por
onde passam peixes vermelhos
com guelras tristes
de oiro e fogo nos olhos.
Não sabem das
vontades dos homens e flutuam em cardumes
pela veia
Os homens elevam o
peito e as mãos à ferida
por onde passam os
peixes e pensam
que é uma haste a
florir
Os peixes encontram
um estranho fogo com forma
de nuvem em brasa
e perdem-se lá
dentro.
Os homens perdem-se
também, e matam-se lentamente
no fogo
Então uma flor
desabrocha por entre as cinzas,
e os peixes voltam
para o mar e os homens amam
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SULAMITA
Ela entra nas câmaras
do templo -
destinada lhe foi a
terra e a vinha:
Como dizer do leite
que irriga
do seio,
como saber onde eleva
o peito a muralha,
assim destinada,
guardada, a braça
de mel,
donde irrompe o nome
da vide,
encerrada
O sangue ferve na
bainha dos homens
encharca a luta a
espada,
a música subtilíssima
-
Ela entra nas câmaras
do templo, coroada,
a vide dorme
e as garras da noite
parem
o justo tempo, a
casa, o anel, a morada
Como dizer do ódio de
irmãos
ou chamar a morte
de consanguínea,
legitimar o que
liteira adornou,
arrendou a vinha,
proveito, estandarte,
para que ela surgisse
como estrela alvorada
–
a pele queimada, o
olho círio,
o lírio no peito
Ela entra nas câmaras
do templo, Sulamita,
dança e dança, frente
à arca
ao selo ao rolo,
do outro lado da
cortina, seu ventre dança
dança na terra dos
pais que dormem
dança
na promessa de dança
possuída
Mas nas câmaras do
templo
onde seu gesto se
move e revolve
não é ela que dança –
Dança um povo inteiro
no corpo da Sulamita
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ÊXODO
Tu, que nasceste das
águas e foste Príncipe,
Tu, que usaste o saio
plissado, o fino linho dos Faraós,
cintado foste a couro
e pedrarias:
dá-me o teu bordão e
falarei –
O verbo e o hino que
sobe das nascentes
subterrâneas do Nilo
não se inscreve sobre
papiros, porque plana
sobre o deserto
como uma cortina
volátil.
Rasgo o tempo, as
horas penumbrais,
em que aprendiz do
templo, bebeste geometrias
arte e mistérios –
envolto em óleos de
sândalo e suores de olíbano,
a tua idade está
emparedada
nas imagens tingidas
a minérios e lazúli.
Tu, que deste as
porções aos sacerdotes, assististe às salgas,
às passagens dos
ritos entre os almíscares e as vísceras,
tocaste a pedra
celeste do escaravelho –
Dá-me o teu bordão e
serei cobra
com a incandescência
do fogo;
matarei pela lâmina o
teu crescimento,
serei a revolta do
sangue no chão,
e correrei contigo,
assombrada,
até às planuras e
pastorarei.
Dá-me a vara, filho
do centáureo, porque a sarça
também me arderá as
entranhas –
farei magia perante
faraós,
revolverei pragas.
Grito o grito:
Sigam-me até à terra
de onde mana o leite
e o mel -
armem as tendas dos
panos purpúreos,
desbastem o coração
animal:
Que fumegações subam
aos ares
ao verbo Único que
é.
Irei contigo com duas
tábuas entre braços,
frente a relâmpagos,
a minha cara luminosa
na vertigem do Sinai,
para que se percorram a fogo
e duplamente as Leis
de Maet e as do Único -
as que recitaste
frente ao sacerdote egípcio,
do sonho solar de
Akhenaton ao teu sonho.
Dá-me o teu bordão e
na rocha
baterei dez vezes –
Porque também a mim
se me queimam as
artérias
e o coração, sempre
que os homens conspurcam o oiro
e adoram a besta.
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JOÃO BAPTISTA
(inédito)
Uma taça uma travessa
uma trança
e talvez a pele na dança
de Salomé,
terrivelmente bela
iluminada pela carne -
assim se movem os
alados, dizem,
como ela moveu o corpo,
vermelho veludo, perfume
de nardo,
há este fascínio no seio da dança -
não se sabe se dança o anjo
se o diabo
é a dança amorosa por
ser a mais desejável,
no transbordo de seu
poro jovem quente,
as ancas no fumo do
equilíbrio - perigosamente
acordam a beleza alada
Mas depois de tudo nem
lhe sobra o desejo
jóia esplandecente,
pano fino,
cofre de sol:
todas as
vanitas
são desprezadas –
porque para o condenado
a morte tem um
propósito,
a morte tem sempre um
propósito:
a ti, que a clamavas
fez-te viver para
sempre.
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sítios aliados
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