ISSN 2182-147X  . EDITOR | TRIPLOV . Contacto: revista@triplov.com . Dir. Maria Estela Guedes . PORTUGAL .
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Revista TriploV de Artes, RELIGIÕES & Ciências . Ns . Nº 58. maio-junho 2016 . Índice
   
Encontro com a Bíblia | Casa das Monjas Dominicanas do Lumiar | 21.05.2016

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ANA PINTO

 

Poemas para o Encontro

 

dos livros Crisol e Os selos da rosa e um inédito

O OUTRO LADO DA PORTA

 

 

 

Se começaste pelas fontes do mel:

agora amola a faca -

porque te seca a garganta e dos dedos lerdos

pouco te resta senão a náusea;

melhor seria cortar a água com a língua

depois de abrasada e pura e pura;

encher o tanque com o algodão das mulheres

correntes e correntes de orvalho e uma cana de ar:

amola a faca – crava-a na febre e na escrita

porque a terra se racha, alumia,

invade discos, as polpas

das mulheres com nardos e lírios nos cabelos

 

E no meio o encantador de serpentes escreve,

e no meio do meio dois ladrões,

e ao centro a minha língua seca – e já não há mel na terra

nem ordenhas, nem unguentos leitosos:

fiquei aqui do outro lado da porta

a arrancar os lacres

com os olhos enevoados pela música

a laranja sanguínea na coroa

 

Saltam ecos como bagas desfeitas pela boca

saltam pedras como golpes da língua - a faca,

essa, cravei-a funda na rosa 

porque todos os mortos me quiseram vida 

 

SAFRA

 

 

Mestre, que dado verso entre relâmpago?

São dados sobre tua veste

ou são as sortes sobre teu corpo

assim diamante outro o verso

mais antigo, à garganta?

 

Também te vi do lago, a água era doce, era,

os peixes, como divididos e acesos:

a sangue e a voz e a miolo:

tripla adição,

e do que resulta

dos três bebi: do odre a salga -

resquícios da talha 

 

O verbo relincha ao sol forte,

o velho sinete metálico

abre rolos, espalha sementes -

bela safra esta que deixaste na cabeça dos poetas

que vêem luz sob condensações de pó – 

 

Serão malditos os deste estigma

ou é apenas a sucessão da memória?

- Se te ergues és a vara, se te deitas és o verme:

e nós: deitamo-nos na linha a despejar a taça

como se morrêssemos na terra toda

JOSÉ DO EGIPTO

 

 

 

Chegámos nus ao ermo de areias e de ouro
onde leitos azuis se dividiam - meia bacia de lua 
de múltiplos reis, poliedros deuses,
e o engano no resgate à profecia

Um punho, uma pulseira de sete ventos agitei,  
sete astros entornei ao vidro verde,
teu corpo lançado às sortes, inocente,
a lágrima - um peso na taça pura

Só a mãe enxuga raios com seus pés poderosos:
parte o tempo –
sete anos são aventurosos,
outros sete, devastação

Gemas lavam os olhos, o manto ala-se
através do orvalho da visão:
à sementeira junta, ao pão da fome

tornam mendigos, magos e irmãos -
correm as barcas sobre dunas nos tacões da noite:

Uns são reis - outros vão.

 

DA VIDE

 

 

Outros dirão da palavra
o mergulho amniótico 
como se nessa ablução encontrassem
o seu próprio início - mas a chama
move o bico para além
das galerias de vidro espacial – antes
a lâmina
sobre a pele reconhecia a sua origem

O ferro oxida rios no coração da terra
o sangue doura a sucessão dos caminhos
da vide
E como se da língua um nome
fosse o tamanho do homem,
um tronco torcido e o estigma da poda
também ele se levanta - um busto de pétalas soldadas
na caruma, da primeira inflorescência

o grito ardente de seiva viva

 

A vida é um mistério maior do que a morte - 
o tempo caminha pelas casas minerais do corpo
as câmaras são vermelhas até ao decesso
da estação
e uma esponja fulgente - ou uma rosa 
de órgãos rubros ergue-se pelas mãos
e cria o seu próprio sol
 

 

O PÃO

 

 

Anjos passam pelas covas

dos que sonham

deixam-lhes o alimento dos pássaros - 

alguém me atirou uma corda:

já não podia mais ouvir gritar os meus sonhos

 

Levaram-me às areias

eu, a transpirar a visão e o pó e a sede,

dos sonhos dos outros - sabia:

tinha sonhado a terra toda,

feixes espigas aos molhos

dentro de sonhos

às vezes estrelas caem

Sírius não entra pelo arco da noite -

os sonhos das crianças não podem ser ditos,

são uma febre, uma doença, despedaçam

 

Sonhava o pão, miolo acabado,

os sonhos comem-se também

e troca-se o ouro, a prata, a vida, o gado,

os cálixs, o que houver

e digo que já li este livro, era um livro 

com searas por dentro, a rosa do sol,

vi irmãos de sonho

que vinham buscar sacos e sacos de grão

 

Vinham buscar pão - 

e o pão era eu.

DECANTO-ME

 

 

Falta-me o ar, sou uma baga
num receptáculo hermético.
Caí da vara da videira – dá-me essa
luz fechada, uma rajada de treva,
um fio de erva.  
E que me devaste o mistério todo branco;
o tumulto onde se acendem astros
em mim,  
no submerso, no fragmento do brilho

Vivo o selo desta maceração,
o estigma da energia que me cai sobre
amálgamas desfeitas
Os rios sobem purpúreos
à febre alta,
as mãos queimam-se no fermento


Sou a água que se desfez ferida,

sal da terra borbulhando em espumas e cascas

de mosto. Uma palavra redonda, um aroma,

uma esfera no derrame

 

Perdi o oxigénio num mundo de leveduras:
morro-me, adoço-me,
entro nos cálices, bebo-me nas artérias –
Decanto-me
.

 

O CAPITEL

 

 

 

O tempo habita-me o corpo. Sorvo água das ágatas,
formo-me em pão, a taça - um luxo no sangue.
Correm-me feixes de água dos dedos, água eléctrica.
Na cúspide, sou uma estrela, um elo, arremessado
ao declive do fosso.

O leite do pão crepita nas chamas do deserto
em bordões cobras, de acesos cristais - 
Vejo-me ao espelho alto. Sou uma pedra tingida
à matéria ígnea. Um sinal.
Dei água aos poços, fiz crescer figueiras secas.
Derrubei mel à sede, estanquei as malhas aos peixes,
Calei os templos. Escrevi memórias em vozes,
abri a porta ao fariseu deslumbrado, que rodou
a esfera do túmulo - Salvei a morte.

Senti amor e ofereci sangue.
Hoje ceio num lugar subterrâneo.
Instruo uma palavra, uma palavra de silêncio

 

VERITAS ET LUX

 

 

A paisagem alucina o homem cobra,

o bastão de luz com o verbo bordado

à língua presa. O sal cai acre da secura

ao monte azul - trabalhei à plaina e à goiva as vozes,

o talhe, do ranger da bancada a rostos lívidos.

Caíram montes, arrastaram-se as pedras

que atingiram a ladainha dos sábios -

fiquei com esta dor alumiando

as braçadas tensas

esta dor que derruba a hora estancada 

O mundo a fender-se na minha ferida –

 

Eu, que acariciei a seda da acácia,

que debruei a coluna, que lavrei os selos,

eu, que pressenti a passada do leão verde

pela cova, que lancei areia aos olhos do demo

com as mãos palpitantes no ermo dos astros.

Eu, que escrevi o meu sangue em todas as areias

com a sede do óleo depois do mergulho

nas palavras arteriais -

Levanto-me na solidão dos ecos,

levanto-me pelo cristal do mago,

na fagulha, no fuso magnético do bastão, no ouro,

a todas as tempestades de insectos, a todos os ventos

a todas as pragas e assolações.

A solidão levanta-se do meu corpo.

 

- Quem coligiu esta porta à porta negra do lado

brilhante, senão eu?

- Quem lavrou um lírio no mármore para que ele

fosse o meu espelho?

- Quem me vestiu roupa dum só talhe e quem me deu

a chave entrelaçada

e me fez rosa da minha própria morte?

- Quem me bebeu nos poços, quem se embriagou

no meu vinho, quem me negou, quem teve medo?

 

Os versos escreveram-se em anagramas

decorados pela língua do mundo -

Ninguém me vendeu, ninguém me traiu

Cumpri-me -  

Nenhum anjo se sentou no meu túmulo  

 

O POÇO

 

Tudo é redondo no sal, o erro 
da visão trémula e a velocidade do ar
a travar portas ao sol. Pela fuga ao outeiro 
a cinza
é delicada nas piras: morre-se na luz
leves no enxofre
Tudo é desígnio, oxigénio:
atravesso dois mundos
com o corpo da treva a ofuscar-me
a garganta, os pés na ardência
do pó - tudo é cinza e pó
Quero o dízimo do poço,
uma bainha de renda salina,
a água elementar – a bilha
à cintura ou a talha
enchê-la de palavras levíssimas,
ferver o esquecimento.

Estendo-me nas folhas 
- o livro em que me li frente à sede

e correm-me ramos, rios cinábrios
pelos tubos dos braços
No poço tudo se move - Sou o poço
reflexo das rosas de sal, em baixo, em cima
Digo água, tinjo-me vinho 
um feixe de sílabas arcaicas
uma flor cansada na testa
Digo água e não morro desta morte
Digo água e mosto -
O sangue atravessa o mundo

FIGUEIRA

 

 

Cortaremos os figos à lâmina
até que tomem forma de cálice
nas mãos
e se abram em pequenas sementes de ametista
cheias com mel por dentro.
Depois o sorvo, a ardência na garganta -
Conheceremos o fruto. Comeremos os figos
como o primeiro homem, a primeira mulher.


Das parras verdes
saberemos seus rios de seiva de leite,  
o segredo, a escrita antiga traçada
pela língua ónix da serpente à folha
de pergaminho

A luz abre a porta, por feixes espada, pelas gemas
do deserto
Ao solstício, o viço chega à palavra –

Nomes, baptizam-se nos rios,
números, à geometria celeste

Comeremos da figueira a seda
e o sangue
dos figos circuncidados e límpidos,
o mel todo preso ao meio - com a lâmina na mão,

enquanto a palavra espirala
e dança. Nua.  
Em seus véus de cristal
.

PESSACH

 

 

Sacrifiquem as palavras, as palavras inocentes.
Abram-nas nas suas costuras fundamentais
com um golpe certeiro de água luminosa,
um rasgão de luz até ao coração.
Escolham uma lâmina de prata para as vísceras
refulgentes, letra a letra -
Façam-no sobre o mármore
para que o fogo corra puro 
e aspirjam o sangue
nas quatro paredes do mundo
para que se transmude em canto

Pintem-nas nos perfis nas portas,
as palavras,  
porque há noites assombrosamente belas
em suas canções inocentes - 
os cânticos das casas, os toques ázimos das mãos
o pão redondo do verbo

 

Recolham da ceifa antiga
nutram-se da carne e do fogo com que brincavam 

as mãos das crianças nos pastos baixos.

Há casas que são tendas lançadas
no meio do deserto - as crianças conhecem o caminho
das pombas, as línguas novas das pombas,  
com pequenas folhas de lava a arder no bico
Por isso fazem uma roda com as palavras
a bater as asas e a atear diamantes - cantam
alto, muito alto as palavras magníficas e purificadas
pelas chamas,
depois pelas águas,
que incendeiam as cabeças
das rosas brancas

 

A FERIDA 

 

 

Há uma linha ininterrupta que vai do mar ao coração.
Um fino sulco por onde passam peixes vermelhos
com guelras tristes de oiro e fogo nos olhos.
Não sabem das vontades dos homens e flutuam em cardumes
pela veia  
Os homens elevam o peito e as mãos à ferida
por onde passam os peixes e pensam
que é uma haste a florir

Os peixes encontram um estranho fogo com forma
de nuvem em brasa
e perdem-se lá dentro.  
Os homens perdem-se também, e matam-se lentamente
no fogo
Então uma flor desabrocha por entre as cinzas,
e os peixes voltam para o mar e os homens amam
 

 

SULAMITA

 

Ela entra nas câmaras do templo - 
destinada lhe foi a terra e a vinha:
Como dizer do leite que irriga
do seio,
como saber onde eleva
o peito a muralha,
assim destinada, guardada, a braça
de mel,
donde irrompe o nome da vide,  
encerrada

O sangue ferve na bainha dos homens
encharca a luta a espada,
a música subtilíssima -
Ela entra nas câmaras do templo, coroada,
a vide dorme
e as garras da noite parem
o justo tempo, a casa, o anel, a morada

 

Como dizer do ódio de irmãos
ou chamar a morte
de consanguínea,  
legitimar o que liteira adornou,
arrendou a vinha, proveito, estandarte,
para que ela surgisse
como estrela alvorada –

a pele queimada, o olho círio,
o lírio no peito


Ela entra nas câmaras do templo, Sulamita,
dança e dança, frente à arca
ao selo ao rolo,
do outro lado da cortina, seu ventre dança
dança na terra dos pais que dormem
dança na promessa de dança

possuída


Mas nas câmaras do templo
onde seu gesto se move e revolve
não é ela que dança – 

Dança um povo inteiro no corpo da Sulamita 

 

ÊXODO

 

Tu, que nasceste das águas e foste Príncipe,
Tu, que usaste o saio plissado, o fino linho dos Faraós,
cintado foste a couro e pedrarias:

dá-me o teu bordão e falarei – 
O verbo e o hino que sobe das nascentes

subterrâneas do Nilo
não se inscreve sobre papiros, porque plana

sobre o deserto como uma cortina volátil. 


Rasgo o tempo, as horas penumbrais,
em que aprendiz do templo, bebeste geometrias 
arte e mistérios – 
envolto em óleos de sândalo e suores de olíbano,
a tua idade está emparedada

nas imagens tingidas a minérios e lazúli. 

Tu, que deste as porções aos sacerdotes, assististe às salgas,
às passagens dos ritos entre os almíscares e as vísceras,
tocaste a pedra celeste do escaravelho – 

Dá-me o teu bordão e serei cobra

com a incandescência do fogo;
matarei pela lâmina o teu crescimento,  
serei a revolta do sangue no chão,
e correrei contigo, assombrada,

até às planuras e pastorarei.

Dá-me a vara, filho do centáureo, porque a sarça
também me arderá as entranhas –

farei magia perante faraós,
revolverei pragas.
Grito o grito: Sigam-me até à terra

de onde mana o leite e o mel - 
armem as tendas dos panos purpúreos,

desbastem o coração animal:
Que fumegações subam aos ares
ao verbo Único que é. 

Irei contigo com duas tábuas entre braços,
frente a relâmpagos, a minha cara luminosa
na vertigem do Sinai, para que se percorram a fogo 
e duplamente as Leis de Maet e as do Único - 
as que recitaste frente ao sacerdote egípcio,
do sonho solar de Akhenaton ao teu sonho.


Dá-me o teu bordão e na rocha
baterei dez vezes – 
Porque também a mim
se me queimam as artérias
e o coração, sempre que os homens conspurcam o oiro
e adoram a besta.

 

JOÃO BAPTISTA
(inédito)
 

 

 

Uma taça uma travessa uma trança

                      e talvez a pele na dança

de Salomé,

terrivelmente bela iluminada pela carne -

assim se movem os alados, dizem,

como ela moveu o corpo,

vermelho veludo, perfume  de nardo,

        há este fascínio no seio da dança -

                   não se sabe se dança o anjo

                   se o diabo

é a dança amorosa por ser a mais desejável,

no transbordo de seu poro jovem quente,

as ancas no fumo do equilíbrio - perigosamente

                                           acordam a beleza alada

Mas depois de tudo nem lhe sobra o desejo

 jóia esplandecente,

pano fino,

cofre de sol:

todas as vanitas são desprezadas –

porque para o condenado

a morte tem um propósito,

a morte tem sempre um propósito:

                           a ti, que a clamavas

fez-te viver para sempre.

 
 
 
 
 
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