ISSN 2182-147X  . EDITOR | TRIPLOV . Contacto: revista@triplov.com . Dir. Maria Estela Guedes . PORTUGAL .
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Revista TriploV de Artes, RELIGIÕES & Ciências . Ns . Nº 58. maio-junho 2016 . Índice
   

Alexandre Guarnieri (1974), carioca de Vila Isabel, é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia.  Seu mais recente livro é Corpo de Festim, ganhador do 57o Jabuti (2015).

 
ALEXANDRE GUARNIERI

 Corpo de festim
(seleção)

 

|( os órgãos internos )|

 

\ ( persegue as vértebras a massa

dos sangues coligidos / ( dentre os quais

há indício de que alguns ( mais ou menos

líquidos ) \ cada qual a seu tempo, distintos,

consolidem sacos do caldo biológico,

coagulados \ ( carnes que existem da diferença

entre si de seus tecidos / ( se especializaram

as células, em aparelhos e sistemas ) /

delas monta-se um puzzle cujas lacunas

se completam ) \ o corpo expande,

tanto quanto se destrói ( por escasso o cálcio )

no rígido osso que esfacela / ( conforme

a vida lhe habita, o conjunto luta

sob o mesmo pulso \ ( o mesmo insumo bruto

lhe insufla a labuta / ( plantada já

na samambaia dos nervos \ ( enclausura-lhe

a elástica amarra dos músculos / ( a obstrução

sob medida de uma única fornalha viva

) \ trocam fluidos entre si tantas partes

aparentemente separadas \ ( interno

o mar hemorrágico, apenas visitável numa

viagem fantástica / ( mas quando lhe autopsiam

a frio \ ( sangria & bisturis / ( se mostra,

um monstro sob as próprias ataduras \ (

o frankenstein exposto, que, apenas por medo

do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo ) \

 

>( os pulmões )<

 

 

> ( o pulmão direito )

 

dois cilindros de tecido complacente, que esvaziam /

e enchem enquanto requisitam quando inspiram ( vitais

troca e simetria ), quando expiram, vão desistindo

do vento morno, carbônico ( frações ainda do primeiro

sopro ); tropo que entra / e sai do corpo: se abrem,

brônquios dilatam / e fecham se há retração /

são páginas análogas da capa à contracapa,

como a traqueia equidistante fosse a costura central

de um livro carnívoro, único ( como o de barrio,

carnal, perecível ), repartido ao meio, insufla inscrições

que recriam seu sentido, sua delimitação de signos:

a troca – hematose – entre o dentro / o fora, à mercê

do pneumotórax; e cada expiração é uma pequena morte

contra a qual reage uma ressurreição igual, cheio /

e vazio ( sem ar: morre-se de embolia, asfixia, entretanto

se hiperventila, quando o volume de ar, interminável,

ultrapassa determinado nível ); quanto mais se move

( por vontade própria, ou a certa contínua voltagem

 

( o pulmão esquerdo ) <

 

movimentam-se, involuntários, todos os seus sistemas ),

tanto mais livre o organismo exige ( se vivo e

irrepreensível ) o seu respiro; dois módulos lobulados

capazes de dar forma ao gás incorpóreo ( bolhas ),

conformá-lo a duas fôrmas orgânicas, domesticá-lo como a

um escravo, no consecutivo jogo da captura depois de

alforriado ( no ar que vem e vai ) e vice-versa; sanfonados,

dois balões fibrosos inflam ( novelos gasosos evolam

nos alvéolos ) quando revolvem, removendo do ar

( processado desde o resfrio da terra, quiçá da atmosfera

inteira ) o oxigênio infinito que engendra, misterioso,

o indecifrável número de ciclos respiratórios ( cada qual,

uma página do livro ), cuja origem teria sido o primeiro choro

desde recém-nascido, daí a progressão irrefreada até o último

suspiro ( quando fosse lida a última página do seu livro

da vida ), interrompido para sempre o ritmo, d’algum

paciente anônimo ( crônico ) domiciliado em leito terminal.
 

mecânica dos fluidos (dois fragmentos)

 

 

/ a urina

 

é d’ ouro

   a    u r i n a,

              m e l í f l u a,

   oriunda da bexiga,

                  que antes

              de aliviá-la,

                                  i n c h a

 

 

/ a lágrima

 

a glândula a carrega                 cega

         ( como na ostra       a pérola )

                   ( como no arco  a seta )

o sal na medida certa

    ( no escuro            algo coagula )

                                               pedra

até que a concha da pálpebra

                                                 abra

é quando a gota vem à tona )

                                  ( fria e quente

                            ( simultaneamente

 

( | o crânio humano | )

 

 

compósito ósseo por sobre cujos orifícios inteiramente

desobstruídos encaixam-se os módulos dos olhos,

narinas, da boca, e ouvidos; a tampa de louça calcinada

pelo couro, ( marfim fissurado sob cabelo ) um trono

ocupa o topo desta cúpula / uma armadura de juntas,

parcialmente recoberta por ranhuras em cruz, pelas quais,

de sua furna interna ( o antro intracraniano ), escapam-lhe

tantos juízos – como se fugissem pássaros deste recep

táculo craquelado; lacrado sob a caixa manchada do

crânio humano, jaz, moldado aos miolos, à forma de uma

noz que alucina e racionaliza, o gerador unigênito – razão

pela qual congelam o cérebro de um gênio –, de cada

inédita eureka, e de todas as ideias velhas, de séculos,

de décadas, guardadas em antiquíssimas bibliotecas; sob

o palato, escondida, esteve a língua, quase retilínea ( um

único músculo, infatigável, modulou todos os dialetos ),

a dentição se encaixava, cobrindo-a, esta fila de lanças

fincadas, abaixo das maxilas, e na base da mandíbula.

 

o olho esquerdo (  )

 

 

 

nem tudo é preciso ser visto ou reconhecido / fechar

os olhos é sempre possível / enquadrar o mundo /

olhar para os lados, ou para o “passado”, são escolhas

imprevistas, ainda que se desista controlar a paisagem

consumada, não há dia em que se acorde, e os olhos não se

abram, ou que não se reconheça nada, a não ser na morte,

ou na cegueira, para as quais estas duas pelotas anatômicas

serão apenas gelatina fria, outrora oculta nos óculos

escuros, ou carcomida por formigas, às órbitas vazias.

 

/ limitrofagia /

 

 

ainda que ande muito / não percorrerá o mundo

se atravessa a ponte / abdica de um dos lados

se cala / não declara a vontade

mesmo que fale / não esgota o assunto

que infrinja a lei / será posto entre muros

se espalma o punho / não há muito

explana os braços / não voará no vazio

 

 

vive, mas entre limites / se livre, não é para sempre

quando alcança a outra margem | retroage \

se realiza o máximo fica | e se reafirma

se não fixa ( desloca / reage ) abandona a cidade

ficar / fugir falar / calar ( ação ou ócio )

sobre poucas coisas se têm escolha

morrer / viver ( sempre ou nunca ) ontem / hoje

algumas outras | só dobram os homens

 
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