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Alexandre Guarnieri
(1974), carioca de Vila Isabel, é poeta e
historiador da arte. Atualmente pertence ao
corpo editorial da revista eletrônica
Mallarmargens e integra (desde 2012), com o
artista plástico, músico, ator e poeta,
Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos
alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da
Palavra, 2011) é seu livro de estreia. Seu
mais recente livro é Corpo de Festim, ganhador
do 57o Jabuti (2015).
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ALEXANDRE GUARNIERI
Corpo de festim
(seleção)
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|(
os órgãos internos )|
\ (
persegue as vértebras a massa
dos
sangues coligidos / ( dentre os quais
há indício de que
alguns ( mais ou menos
líquidos
) \ cada qual a seu tempo, distintos,
consolidem sacos do caldo biológico,
coagulados \ ( carnes que existem da diferença
entre si
de seus tecidos / ( se especializaram
as
células, em aparelhos e sistemas ) /
delas
monta-se um
puzzle
cujas lacunas
se
completam ) \ o corpo expande,
tanto
quanto se destrói ( por escasso o cálcio )
no
rígido osso que esfacela / ( conforme
a vida
lhe habita, o conjunto luta
sob o
mesmo pulso \ ( o mesmo insumo bruto
lhe
insufla a labuta / ( plantada já
na
samambaia dos nervos \ ( enclausura-lhe
a
elástica amarra dos músculos / ( a obstrução
sob
medida de uma única fornalha viva
) \
trocam fluidos entre si tantas partes
aparentemente separadas \ ( interno
o mar
hemorrágico, apenas visitável numa
viagem
fantástica / ( mas quando lhe autopsiam
a frio \
(
sangria
& bisturis
/ ( se
mostra,
um
monstro sob as próprias ataduras \ (
o
frankenstein
exposto,
que, apenas por medo
do
escuro, só morto poderiam demonstrá-lo ) \
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>( os
pulmões )<
> ( o
pulmão direito )
dois
cilindros de tecido complacente, que esvaziam /
e enchem
enquanto requisitam quando inspiram ( vitais
troca e
simetria ), quando expiram, vão desistindo
do vento
morno, carbônico ( frações ainda do primeiro
sopro );
tropo que entra / e sai do corpo: se abrem,
brônquios dilatam / e fecham se há retração /
são
páginas análogas da capa à contracapa,
como a
traqueia equidistante fosse a costura central
de um
livro carnívoro, único ( como o de
barrio,
carnal,
perecível ), repartido ao meio, insufla
inscrições
que
recriam seu sentido, sua delimitação de signos:
a troca
– hematose – entre o dentro / o fora, à mercê
do
pneumotórax; e cada expiração é uma pequena
morte
contra a
qual reage uma ressurreição igual, cheio /
e vazio
( sem ar: morre-se de embolia, asfixia,
entretanto
se
hiperventila, quando o volume de ar,
interminável,
ultrapassa determinado nível ); quanto mais se
move
( por
vontade própria, ou a certa contínua voltagem
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( o
pulmão esquerdo ) <
movimentam-se, involuntários, todos os seus
sistemas ),
tanto
mais livre o organismo exige ( se vivo e
irrepreensível ) o seu respiro; dois módulos
lobulados
capazes
de dar forma ao gás incorpóreo ( bolhas ),
conformá-lo a duas fôrmas orgânicas,
domesticá-lo como a
um
escravo, no consecutivo jogo da captura depois
de
alforriado ( no ar que vem e vai ) e vice-versa;
sanfonados,
dois
balões fibrosos inflam ( novelos gasosos evolam
nos
alvéolos ) quando revolvem, removendo do ar
(
processado desde o resfrio da
terra,
quiçá da atmosfera
inteira
) o oxigênio infinito que engendra, misterioso,
o
indecifrável número de ciclos respiratórios (
cada qual,
uma
página do livro ), cuja origem teria sido o
primeiro choro
desde
recém-nascido, daí a progressão irrefreada até o
último
suspiro
( quando fosse lida a última página do seu
livro
da vida
), interrompido para sempre o ritmo, d’algum
paciente
anônimo ( crônico ) domiciliado em leito
terminal. |
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mecânica
dos fluidos
(dois
fragmentos)
/ a
urina
é d’
ouro
a
u r i n a,
m e l í f l u a,
oriunda
da bexiga,
que antes
de aliviá-la,
i n c h a
/ a
lágrima
a glândula a carrega
cega
( como na ostra
a pérola )
( como no arco a seta )
o sal na
medida certa
(
no escuro
algo coagula )
pedra
até que
a concha da pálpebra
abra
é quando
a gota vem à tona )
( fria e quente
( simultaneamente
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( | o
crânio humano | )
compósito ósseo por sobre cujos orifícios
inteiramente
desobstruídos encaixam-se os módulos dos olhos,
narinas,
da boca, e ouvidos; a tampa de louça calcinada
pelo
couro, ( marfim fissurado sob cabelo ) um trono
ocupa o
topo desta cúpula / uma armadura de juntas,
parcialmente recoberta por ranhuras em cruz,
pelas quais,
de sua
furna interna ( o antro intracraniano ),
escapam-lhe
tantos
juízos – como se fugissem pássaros deste recep
táculo
craquelado; lacrado sob a caixa manchada do
crânio
humano, jaz, moldado aos miolos, à forma de uma
noz que
alucina e racionaliza, o gerador unigênito –
razão
pela
qual congelam o cérebro de um gênio –, de cada
inédita
eureka,
e de todas as ideias velhas, de séculos,
de
décadas, guardadas em antiquíssimas bibliotecas;
sob
o
palato, escondida, esteve a língua, quase
retilínea ( um
único
músculo, infatigável, modulou todos os dialetos
),
a
dentição se encaixava, cobrindo-a, esta fila de
lanças
fincadas, abaixo das maxilas, e na base da
mandíbula.
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o olho esquerdo ( )
nem tudo
é preciso ser visto ou reconhecido / fechar
os olhos
é sempre possível / enquadrar o mundo /
olhar
para os lados, ou para o “passado”, são escolhas
imprevistas, ainda que se desista controlar a
paisagem
consumada, não há dia em que se acorde, e os
olhos não se
abram,
ou que não se reconheça nada, a não ser na
morte,
ou na
cegueira, para as quais estas duas pelotas
anatômicas
serão
apenas gelatina fria, outrora oculta nos óculos
escuros,
ou carcomida por formigas, às órbitas vazias.
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/
limitrofagia /
ainda
que ande muito / não percorrerá o mundo
se
atravessa a ponte / abdica de um dos lados
se cala
/ não declara a vontade
mesmo
que fale / não esgota o assunto
que
infrinja a lei / será posto entre muros
se
espalma o punho / não há muito
explana
os braços / não voará no vazio
vive,
mas entre limites / se livre, não é para sempre
quando
alcança a outra margem | retroage \
se
realiza o máximo fica | e se reafirma
se não
fixa ( desloca / reage ) abandona a cidade
ficar /
fugir falar / calar ( ação ou ócio )
sobre
poucas coisas se têm escolha
morrer /
viver ( sempre ou nunca ) ontem / hoje
algumas
outras | só dobram os homens
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