A vida informatizada
apresenta todas as vantagens que se pode
imaginar. Os programas computorizados cuidam
da satisfação dos nossos desejos, nas suas
menores minudências. Tentam também com que
nos cruzemos apenas com as pessoas com quem
temos afinidade. Por isso, é essencial que
todas as nossas acções possam entrar na base
de dados universal.
Por curiosidade
consultava o top ten das afinidades.
Gostaria de saber com quem tinha mais
afinidades num dado momento. Andava, algures
na Cidade, a minha alma gémea e a bolsa de
perfis próximos poderia fornecer alguma
pista sobre o assunto. Não pensem que
procurava alguém com sofreguidão, como disse
tratava-se de simples curiosidade
inconsequente. A maior parte das vezes os
perfis entravam e saíam do top sem que
tentasse algo para criar uma ligação com
eles.
Imaginava também que
eu próprio poderia integrar tops de outros
cidadãos. Seria uma irmandade volúvel mas
que garantia a existência de alguém como
nós. A ideia de congelar as relações humanas
parecia-me algo pobre: encontrar alguém que
nos agrade e ficar preso a esse sentimento,
que em tempos foi verdade, assumia para mim
contornos francamente aterradores.
Falo-vos por ter um
amigo, alguém com quem tive grande afinidade
em termos informáticos mas que se revelou
tratar-se de uma pessoa bem diferente. Não
gostava tanto dos suportes computorizados
quanto eu e passou a andar atrás de mim.
Sempre que arranjava algum passatempo ou
algo que fazer ele queria vir sempre comigo.
Gostava de conversar ao vivo e não através
de computadores. Uma vez parecia mesmo que
estava à espera que eu o convidasse para
subir ao meu apartamento.
As casas em
Narcisópolis são para uma só pessoa. Todos
vivem sozinhos. Realmente como se poderia
conciliar as diferentes formas de ser num
espaço tão exíguo como um quarto, uma sala,
uma cozinha? Os computadores pessoais
tratavam de tornar o espaço mais aprazível
ao gosto de cada dono: quer em termos de
mobília e decoração, quer ainda no que
concerne a cheiros, músicas e luminosidades.
Tocaram à campainha.
Devia ser ele.
- És tu?
- Sim… vamos
passear?
- Vai chatear outro,
estou farto de te aturar (grito pelo
intercomunicador).
Os nossos
computadores individuais não podiam deixar
ninguém ferir-se, nem tão-pouco permitiam
zangas. Ele ouviu o seguinte:
- Agora não posso,
que pena, gostaria mesmo estar contigo…
Talvez amanhã…
Foi-se embora,
adivinho, sem suspeitar de nada… Nos dias
seguintes a nossa afinidade baixará na base
informática e ele interessar-se-á por outra
pessoa. Pelo menos assim o espero.