Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



Nicolau Saião (Portugal). 
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”,
“Escrita e o seu contrário”.       
 
NICOLAU SAIÃO

In illo tempore... regiano
 
 

IN ILLO TEMPORE…REGIANO 

   Fui, durante 14 anos, o funcionário responsável pelo Centro de Estudos da Casa-Museu José Régio, em Portalegre.

  Aposentei-me faz neste dia 18 de Fevereiro dez anos certos.

   O que foi a minha permanência, feliz, naquele espaço encantador podem lê-lo, se assim o quiserem ou puderem, no nº31 da revista Ler, em texto dado a lume por deferência de Francisco José Viegas; ou no nº3 do Boletim do Centro de Estudos Regianos de Vila do Conde, transcrito pela mão de Eugénio Lisboa. 

  Em recordação desse tempo e dessa data, envio-vos em anexo dois bloquinhos, prosa e poema, postos sob a égide do nobre Autor de "Davam grandes passeios aos Domingos".

 

   Fica o abraço, cordial e de estima do vosso

   ns

 

 

1. Régio, como proposta e exemplo 

Friedrich Holderlin, o grande poeta alemão cujo fado penoso o fez mergulhar nas brumas do espírito cerca de quarenta anos, disse num dos seus poemas "Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo". Esta frase pode aplicar-se, com inteira propriedade, a Régio e à sua obra.

Com efeito, toda a escrita do autor de "Davam grandes passeios aos domingos" é uma intensa celebração da vida ainda que por intermédio, até, de ritmos que apontariam para a nostalgia das moradas celestes. Os grandes autores, os autores nobres na completa acepção da palavra, é sempre para a vida e os seus prestígios, maiores ou menores, que norteiam o seu verbo, os seus amores e desamores, a íntima razão iluminada que os venha a salvar e permita também aos que os leiam a travessia de tempos ou lugares onde a ignomínia permanece ou tenta permanecer.

Basta ler os seus poemas, mesmo aqueles onde brilha a tristeza ou a dúvida, a sua prosa crítica, os seus romances e novelas, o seu teatro, para entender isto: em Régio, nenhuma ponta de cinismo ou de futilidade, de inflexões espúrias filhas das modas de arrabalde ou de megalópole vêm empanar o fulgor tanto do seu pensamento como do seu lirismo. Aquilo que articulou, com maior ou menor trajecto, tem sempre o selo da autenticidade, mesmo autocrítica, da fruição vital, mesmo dolorida - essa chancela vigorosa e certeira que possibilita às obras e aos homens que resistam ao decair dos anos e à erosão das épocas.

O desespero, por vezes, visitava-o e eis que lhe respondia - com o pundonor de Poeta - com a "Toada de Portalegre". Era a dor de ter perdido alguém que o pungia - e eis as páginas vibrantes de drama e de força poética de "A velha casa", onde se sente perpassar o vulto, discreto mas significativo, como nas maiores dores, de uma filha rememorada. Perturba-o o acordo/desacordo entre ele e Deus, entre ele e o símbolo do Homem encarnado e terreno cuja origem é de matriz divina? Eis os poemas que dessa luta resultam, sejam os de "Filho do Homem" como os outros onde se debateu com a grande equação metafísica.

"Quem pensou o mais fundo ama o mais vivo"... Sem dúvida e o infausto Holderlin, filho das musas e das parcas viu longe e alto. E repare-se que José Régio, mesmo tentado pela corda dos desesperados, jamais cedeu - mesmo apenas conceptualmente - ao abandono da cena. Digno, perscrutador, atento, de escrita vigiada e sem os arroubos fáceis de gente menor, sorveu até ao fim, "no gosto de mais um dia" a existência salubre dos criadores verdadeiros.

 

2. Relance sobre a pintura de Régio 

Desenhar era, para Régio, uma naturalidade. Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que cultivara desde muito novo – quando ele e seu irmão Julio (como Joaquim Pacheco Neves assinala no seu livro Os desenhos de Régio) pintavam lado a lado nesse tempo de Natal colorido pelos prestígios da memória.

Independentemente de ser uma naturalidade era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz andar atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é que era um bom desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom – só se a maior atenção dada às letras e aos seus duros caminhos de concretização (para encher a célebre página branca é preciso muito esforço, muito suor, para além do talento, o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa qualificação, aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um indivíduo como Régio não há hobbies deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a gravidade sagrada da vida e da mirada que sobre ela lança um ser de excepção como Régio foi.

 Assentemos portanto que nele o interesse pela pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua rica vida de relação com os mistérios da arte entendida por extenso. Depois, se nos debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção) verificaremos que não andava longe do que se fazia naquele tempo: um figurativismo lírico em tons ora mansos ora adustos jogando com as cores complementares.

 A visitação da figura humana é uma das constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado ou profano. E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica traçada a linha que absolutamente separa o profano do sagrado? Pergunta que já a propósito de obras de diversos pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por exemplo, ou em Chagall ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que uma figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa) e a figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação, noutro místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.

Régio revela-se inteiramente nessas silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões de êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação, de medo, de alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita frescura de um rosto, de um olhar, de um movimento, de uma feição secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da unanimidade das origens?”.

Na sua singeleza, há que ver os desenhos de Régio como os irmãos daqueles que Julio executava. Não é difícil, não é mesmo possível, não se ver nos de Régio a versão como num espelho trágico daquilo que em Julio é calma e lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo metafórico, carregado de significados poéticos e de serenidade duramente conquistada. Julio (Saúl Dias), que tenho como um dos maiores poetas do século vinte português (a minha participação na homenagem que lhe foi feita em livro organizado por Valter Hugo Mãe não foi um act gratuit da minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim uma atitude de puro apreço) foi igualmente o protagonista central duma incursão da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório da pintura portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais instantes, que lhe carregavam o quotidiano de tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu percurso de diferente recorte. Mas o que fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios se tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado, enriquecido, metamorfoseado.

E isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer

 

nicolau saião

 
 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
Página Principal
Índice por Autores
Série Anterior
 
www.triplov.com
Apenas Livros Editora
Revista InComunidade
Agulha
Revista de Cultura
Triplov Blog
www.triplov.com