Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



Maria Estela Guedes (Portugal, 1947).
Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista Incomunidade, em www.incomunidade.com.e colabora com Carlos Loures n'A Viagem dos Argonautas, em:
http://aviagemdosargonautas.net/
Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas
CadeRnos SuRRealistas SempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.    
Foto: José Emílio-Nelson

MARIA ESTELA GUEDES


Na I Grande Guerra: Naulila

PROJETO «SARMENTO PIMENTEL»

Publicada uma versão n' A viagem dos argonautas, em: http://aviagemdosargonautas.net/

Era ainda tenente o autor das «Memórias do Capitão», quando partiu para a França, a 16 de maio de 1917, de acordo com ofício dirigido ao comandante do Regimento de Cavalaria nº 9, conservado no seu processo individual, no Arquivo Geral do Exército, em Chelas. Passava de uma guerra a correr para uma guerra parada, nas trincheiras, arriscando-se a ficar sem cabeça se a erguesse acima delas. Essa imobilidade, acrescentada à declaração do médico militar, assinada no Porto a 6 de junho do ano anterior, segundo a qual era portador de doenças que exigiam tratamento, somada ainda à passagem de temperatura tropical para o enregelamento nos campos da Flandres, devem ter pesado muito no sofrimento do jovem tenente, que o mesmo é dizer, de todos os soldados.

Com efeito, ele partia para um frio intolerável depois de regressado do forno do sul de Angola, na orla do deserto, onde fizera a Guerra de 14 numa frente bem menos conhecida, caracterizada por campanhas de permanente mobilidade, através de regiões inóspitas, sem água de fonte ou poço em que o militar, suas tropas, cavalos e muares pudessem dessedentar-se, apesar de ricas em água, pelo menos no tempo das chuvas, dada a proximidade do Cunene. Como ele diz no relatório abaixo digitalizado, os habitantes da região iam ao rio buscar água. Um dos pontos que Sarmento Pimentel reconheceu na sua campanha militar foram as apetecíveis cataratas de Ruacaná, cintilantes no horizonte: quinhentos metros de largura tem o rio naquela descida abrupta da água, por setenta metros de altura, gerando luxuriante vegetação em torno, habitada por espécies várias, entre as quais as cinegéticas, para não se falar dos peixes, se acaso o tenente e seus acompanhantes estivessem de férias.

Estas linhas descritivas pertencem a Sarmento Pimentel, duvido no entanto que facilmente alguém as descubra. Se porventura o texto tivesse sido publicado em tempo de Censura e PIDE, com a maior das desconfianças eu veria aqui manobra dissuasora para ocultar o autor. É um relatório, que nunca vi fora do espaço de escrita onde está inserido: o livro «Naulila», de Augusto Casimiro (1922). Pelo menos o capítulo XIII é quase todo ele de Sarmento Pimentel, como de resto o autor - Augusto Casimiro autor - informa em discreta nota de rodapé. Cito a nota: «Foi êste capítulo escrito sobre os dados carinhosamente cedidos pelo meu bravo camarada, Capitão Sarmento Pimentel. Reproduzo muitos períodos seus. E aqui lhe deixo o protesto da minha amizade e admiração».  

  Não acabou o motivo de desconfiança: o capítulo XIII, intitulado "A clareira dos mortos", tem um "FIM" na página 240, imediatamente antes do índice; porém, no índice, o capítulo XIII intitula-se "Falam os de Naulila" e "A clareira dos mortos" é o título do capítulo XIV, final do livro, que não existe, já que o final é "A clareira dos mortos».

Nem todas as gralhas são erros, algumas são aves da família Corvidae, por isso não se creia insensato este apontamento. Em qualquer altura, a tratar-se de aves e não de negligência, elas soltarão os seus agoirentos pios.

Resumindo: o mais extenso e literário relato de Sarmento Pimentel sobre as ocorrências de Naulila está escondido no livro «Naulila» de Augusto Casimiro.
 

Segundo documento do Arquivo Geral do Exército, João Sarmento Pimentel «Fez parte do esquadrão de Cavalaria nº 9, comandou primeiro um pelotão deste esquadrão de vigilância na linha Otchingau - Suvar - Buct - Driept e a seguir os auxiliares boers. Executou vários reconhecimentos, mesmo no território da Damara e em regiões sublevadas, e tomou parte nos destacamentos da Dongoena, Naulila e Ngiva. Em todos os serviços se houve com inteligência, muita dedicação e valentia».  E porque tal se verificou, e já na implantação da República tinha dado estupendo sinal de si, bom aluno que fora em Coimbra de Sidónio Pais, no lote dos seus castigos e louvores figura uma medalha de prata comemorativa das operações no Sul de Angola, em 1914-1915 (O.E. nº1, 1ª série, de 18 de janeiro de 1917).

Comecemos então pelo princípio, abandonando gralhas e o discurso do Arquivo Geral do Exército, para seguirmos o nosso próprio itinerário mental. Para o fim deixamos um relatório em que ele próprio conta parte do que viveu em Naulila, no comando dos seus auxiliares boers. O estilo é muito diferente daquele que lemos em Augusto Casimiro, em absoluto conciso, uniformizado e prático, por isso o texto é breve. Também não figura em nenhuma obra de Sarmento Pimentel, distinto que é do relato constante das "Memórias do Capitão".

O exército alemão, seduzido, a meus olhos, pelo manancial do Cunene nas cataratas de Ruacaná, na fronteira de Angola com territórios então sob bandeira alemã, áridos, e lembremo-nos de que a flora da região é coroada pela Welwitschia mirabilis, espécie do deserto de Moçâmedes, que agora é Namibe, os “boches”, em léxico de soldado, puseram-se a caminhar para norte causando massacres e razias. A desculpa para a invasão de território português,  tão fascinante que merece ser estudada num projeto sobre as realidades e os mitos da cartografia portuguesa, é a de que a linha de fronteira atravessada não estava definida politicamente, isto é, vamos simplificar, não havia mapas, e não havia porque decerto aquela região não fora contemplada nas cimeiras de partilha de África pelas potências europeias. E tanto as cartas não existiam que vemos Sarmento Pimentel a desenhar as das regiões cujo reconhecimento lhe fora atribuído em missão militar.

“Naulila” é sintética designação de Augusto Casimiro dos problemas da invasão alemã no Sul de Angola. O autor foi um dos correligionários de Sarmento Pimentel na Seara Nova, que aliás dá chancela à edição do livro. A Seara Nova não foi apenas uma revista, ela instituiu-se como corpo político, hoje dar-se-lhe-ia o nome de lobby, e nessa condição chegou a fornecer elementos para governo, entre os quais Sarmento Pimentel. 

Naulila foi um tremendo desastre e uma vergonha para Portugal. Por vários motivos, um deles este, insuportável pelos militares: um oficial barbeava-se em frente do espelho, em cuecas, quando foi abatido pelos alemães. Mais geral motivo para humilhação foi a despreparação do nosso Exército, habituado a pelejar contra povos sublevados de África que pouco mais teriam que arcos e flechas. Na expectativa de batalhas afins, os portugueses foram apanhados de surpresa com um exército armado com o que de mais sofisticado existia na época e verificou-se um autêntico massacre, pontuado por pavorosas cenas, como a narrada por Sarmento Pimentel da sua chegada a Naulila: os corpos dos soldados, mal enterrados, tinham sido desenterrados pelo vento, e mais não adianto.

Sarmento Pimentel não participou destes confrontos atrozes com os alemães, chegou depois deles. Ele participou numa segunda leva militar, sob o comando do General Pereira d’Eça, e foi incumbido, na qualidade de Comandante dos Auxiliares Boers, de sucessivas missões de reconhecimento, mesmo em território da Damara, isto é, do sudoeste africano ocupado pela Alemanha e em regiões sublevadas. Além disso, já o sabemos, tomou parte nos destacamentos de Dongoena, Naulila e Ngiva. As ordens recebidas para reocupação das posições exigiam medidas drásticas, difíceis hoje de comentar, ao menos por mim, mesmo com o argumento de que certas populações indígenas continuavam insubmissas. Pelos relatórios do então alferes Sarmento Pimentel, integrados pelo General Pereira d’Eça no seu próprio relatório, «Campanha do Sul de Angola em 1915», vemos que ele cumpriu ordens como a de “Cair sôbre a Dongoena, razeando a região entre o forte da Dongoena e o Humbe”. Chegaram a abater seiscentos numa dessas razias.

Angola foi uma provação duríssima, com etapas em que o alferes, para chegar mais depressa ao destino, avançou sozinho a corta-mato pelo interior de um sertão que pela primeira vez seria mapeado, para chegar roto, sujo, esfomeado, desidratado, pois a água do cantil onde já ia!, irreconhecível pelos camaradas, que tiveram de lhe arranjar umas calças e uma camisa das deles. Irreconhecível não so pela aparência e comprida barba como por o julgarem morto, dado o atraso em relação à data em que era esperado. De novo se põe o problema da inexistente cartografia, pois os militares estavam a cometer erros na avaliação das distâncias. Se pensavam que o alferes Sarmento Pimentel ia percorrer cinquenta quilómetros, a verdade é que a distância era muito superior, donde o tempo de marcha foi tal que deu aso às piores suposições. Mas ele chegou ao posto, apesar de em condições miseráveis. E o que tinham os camaradas na cantina para lhe dar de comer? Julgo que me esqueci.

Mal chega à metrópole, doente, deprimido, de rastos, é aliciado pelo general Gomes da Costa e lá vai ele para a Flandres, com antigos companheiros, entre eles um médico militar com quem intentará uma revolta anos mais tarde, à qual chamei “A revolta dos bibliotecários”, por ter à frente intelectuais que trabalhavam na Biblioteca Nacional: Jaime Cortesão. Mas para mim já chega de guerra, passo agora a palavra ao alferes de Cavalaria nº 9, Sarmento Pimentel, ele mesmo nos dirá o que viu e passou no reconhecimento de Naulila.

 
 
 
Reconhecimento efetuado pelo alferes Sarmento Pimentel
Digitalização de algumas páginas do "relatório grande" do General Pereira d'Eça, Campanha do Sul de Angola em 1915. Lisboa, Imprensa Nacional, 1921
 
AUGUSTO CASIMIRO
Naulila
Seara Nova, Anuário do Brasil
LISBOA
1922 
 


 
 
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