1. No âmbito do projecto
pessoano mais vasto de reconstrução do
paganismo, um dos heterónimos – Ricardo Reis –
abraça explicitamente as teorias epicuristas
embora, como veremos, seja um epicurismo
peculiar, transformado ou metamorfoseado pelo
influxo pessoano numa doutrina em alguns pontos
diversa daquela que está plasmada nas fontes
epicuristas. No entanto e apesar disso, ainda é
coerente com eles.
Num texto com a epígrafe
F. Reis, sendo portanto atribuído a
Frederico Reis (1),
sintetiza-se, de modo exacto, o epicurismo
ricardiano (2):
Resume-se num
epicurismo triste toda a filosofia da obra de
Ricardo Reis. Tentaremos sintetizá-la.
Cada qual de nós
– opina o Poeta – deve viver a sua própria vida,
isolando-se dos outros e procurando apenas,
dentro de uma sobriedade individualista, o que
lhe agrada e lhe apraz. Não deve procurar
prazeres violentos, e não deve fugir às
sensações dolorosas que não sejam extremas.
Buscando o mínimo de dor ou pena (2), o homem deve procurar
sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se
do esforço e da actividade útil.
Esta doutrina,
dá-a o poeta por temporária. É enquanto os
bárbaros (os cristãos) dominam que a atitude dos
pagãos deve ser esta. Uma vez desaparecido (se
desaparecer) o império dos bárbaros, a atitude
pode então ser outra. Por ora não pode ser senão
esta.
Devemos buscar
dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da
felicidade, coisas inatingíveis porque, quanto a
liberdade, os próprios deuses – sobre que pesa o
Fado – a não têm; quanto a felicidade, não a
pode ter quem está exilado da sua fé e do meio
onde a sua alma devia viver; e quanto a calma,
quem vive na angústia complexa de hoje, quem
vive sempre na espera da morte, dificilmente
pode sentir-se calmo. A obra de Ricardo Reis,
profundamente triste, é um esforço lúcido e
disciplinado para obter uma calma qualquer.
Tudo isto se
apoia num fenómeno psicológico interessante:
numa crença real e verdadeira nos deuses da
Grécia antiga, admitindo Cristo (por vezes tido
como antagónico, não só quando desperta o
espírito cristão, porque esse é que é o inimigo
[] do paganismo) como um deus a mais, mas mais
nada – ideia esta de acordo com o paganismo e
talvez em parte inspirada pela ideia (puramente
poética) de Alberto Caeiro de que o Menino Jesus
era «o deus que faltava».
2. A reconstrução do
paganismo é a resposta ao diagnóstico de
decadência da cultura Ocidental, enferma pela
influência malsã do cristianismo. Quem o
corporiza, porque é o mestre dos outros, é
Caeiro (3)
que cumpre o ideário desta renovação não o
intelectualizando (como Reis ou António Mora)
outrossim pela vivência de uma prática poética
(ou seja, pelo influxo, de uma ideia «puramente
poética»). Os outros (heterónimos,
semi-heterónimos, Pessoa ortónimo) seguem-lhe o
exemplo mas adaptam esse objectivo geral às suas
próprias inclinações. Dão-lhe um cunho
idiossincrático e é assim que entre tal
comunidade possam por exemplo coexistir
epicurismo e estoicismo. São diferentes
aproximações que acrescentam complexidade e
densidade ao drama em gente pessoano.
Longe, aliás, de esgotar a sua propensão para o
pensamento (e sentimento) místico ou esotérico
como o amplo conhecimento da astrologia e a
proximidade com os campos rosacrucianos e de
exegese maçónica atestam, todos eles fugindo da
dogmática cristã que explícita ou implicitamente
os combateu (como é exemplo paradigmático os
anátemas que a Igreja infligiu à Maçonaria), o
que só demonstra a independência intelectual
deste autor vário que raia a iconoclastia. Assim
sendo, mesmo o ambicioso projecto de
reconstrução do paganismo é tão-só uma
configuração concreta da amplitude esotérica de
Fernando Pessoa, não a esgotando mas em
intersecção dinâmica com as outras referidas
linhas de análise.
3. Ricardo Reis professa um
«epicurismo triste».
Ora, é a natureza deste
adjectivo que faz toda a diferença. É património
comum à maioria das doutrinas com reflexos
existenciais um certo pendor
celebratório
na exacta medida em que pela prossecução delas e
no sentido em que se logre cumprí-las haverá o
necessário correlato de felicidade.
Também assim é com o
epicurismo: o cerne das concepções
ontologico-existenciais é o de afastar o medo
relativamente aos males que comummente afligem o
humano e, com isso, alcançar uma vida
mais feliz. É o olhar sobre a finitude
humana nas suas várias declinações (a doença, a
dor, a morte) ou até sobre as suas imperfeições
(a injustiça, o conflito social) mas sob uma
perspectiva redentora que permite concretizar um
ideal de vida onde o bem-estar existencial que
essa via de sabedoria proporciona é sinónimo de
um sereno contentamento ou de uma quietude
activa de uma «sobriedade individualista» na
procura da «calma» e da «tranquilidade» . Ao
introduzir o qualificativo de «triste» abre-se,
contudo, um abismo na concreta compreensão do
cerne do epicurismo. O que significa esse
abismo? Significa que há uma nova dinâmica
existencial em palco: apesar de se seguirem tais
preceitos há uma indeclinável tristeza que
acomete o sujeito, uma melancolia que vai à
essência do poético que se não distingue de uma
rigorosa hermenêutica existencial: o sujeito
pode, racionalmente, encarar de modo positivo a
finitude humana mas é o lamento por ela que
provoca a deflagração poética (cujo resultado
pode, ou não, ser um labor artístico ou, tão-só,
uma vivência específica, na vertigem dessa
contardictio in adjecto: um olhar lúcido,
racional e sereno sobre a dimensão existencial,
uma vivência hiper lúcida, dilacerada e em
lamento sobre a estetização da vida).
4. Nesta conformidade, bem
se compreende que a reconstrução do paganismo
transcenda uma tomada de posição meramente
filosófica, é o motor e o combustível para uma
concreta actividade poética, no conjunto da rede
heteronímica ou do
drama em gente de
Pessoa.
5. Seja como for, se se
tivesse de destilar uma essência do epicurismo
dir-se-ia que longe de se buscar o prazer pelo
prazer, o que seria um mero hedonismo,
procura-se a melhor maneira de lidar com a dor
(quer em sentido físico quer em sentido
psíquico, v.g., o medo, como por exemplo
o medo da morte que é, a seu modo, uma dor
psicológica) compreendendo a subtil interacção
que há entre prazer e sofrimento. Não se deve,
assim, «procurar os prazeres violentos», e não
se deve «fugir às sensações dolorosas que não
sejam extremas». Todo o equilíbrio pressupõe uma
certa neutralidade: aceitar o que é inevitável
mas que pode ser neutralizado, se tal aceitação
proporcionar serenidade; apreciar o prazer como
algo positivo (mesmo algum prazer que possa
estar contido numa situação de dor, como numa
doença); entender que há dores que são
necessárias para se alcançar um bem-estar
ulterior (aquando de uma cura) e assim
sucessivamente. Ora, como se verá, transformar
esta demanda pela sabedoria num princípio
poético significa reflectir esteticamente no
valor do prazer e da dor no desiderato de um
equilíbrio no qual, uma vez atingido, se exsuda
uma noção de belo que, comummente aliás, se
associa àquilo que é «clássico». O belo como
proporção equilibrada, traduzindo-se numa via
poética em estreita relação com a vida. Portanto
nesta acepção, o epicurismo – transformado por
Reis – é princípio fecundo de trabalho
artístico.
6. Todavia, tudo isto é
relativo: uma doutrina temporária enquanto a
barbárie (corporizada no cristianismo) predomina
e a «calma», a «liberdade» e a «felicidade»
preconizadas pelo epicurismo não são mais do que
ilusões, inatingível utopia da condição moderna
de quem «está exilado da sua fé e do meio onde a
sua alma devia viver».
7. Dizer isto, «um
epicurismo triste», ou mesmo «profundamente
triste» que apenas busca uma «calma qualquer»
significa estetizá-lo. Desvirtuar, por um lado,
a sua estrita dimensão racional mas, por outro,
abri-lo a uma dimensão
daimónica, isto é,
de inspiração poética que como intuição racional
é vertida no caso de Pessoa, em escrita, na
figura de Ricardo Reis, e em criatividade
manante. Portanto, numa outra maneira e quiçá
até mais radical, em activa quietude de uma
«calma qualquer».
8. Note-se a dimensão que
se acrescenta, no excesso de profundidade que o
qualificativo «triste» implica. O contentamento,
puramente racional, do sábio é, de certo modo,
plano na unidimensionalidade da sua
(auto)suficiência. A compreensão
poético-emocional (certamente um dos sentidos
possíveis da noção de sentimento poético) da
vida, não sendo antitética da primeira tem,
todavia, um revestimento de coloração emocional
que não é mera apreciação subjectivo-sentimental
(por isso, talvez, de um grosseiro romantismo)
mas muito mais próximo do recorte conceptual de
uma Groundstimmung. Isto é, uma emoção
fundamental que nasce de uma fonte originária (Ursprung)
de compreensão do mundo verdadeiramente
existencial e não meramente
existensiva,
para usar aqui, de modo explícito as
contraposições da analítica
hedeggeriana
(que distingue o domínio originário e autêntico
do ser-o-aí – o
Da-sein – que é o pleno
campo ontológico do plano mediato a que chama o
meramente ôntico). Isto é utilíssimo para
fornecer o enquadramento de base que o epíteto
«triste» aposto à doutrina epicurista introduz,
ampliando-lhe afinal o escopo e alterando-lhe,
porque sutbtilizado, o sentido.
9. Mas o significado
poético deste epicurismo tem ainda outro
alcance. Pessoa atribui-o, nesta configuração, a
Ricardo Reis portanto a este interveniente da
rede heteronímica que, laboriosamente, foi
construindo e embora outros personagens tivessem
um matiz diverso na sua aproximação ao
paganismo, por vezes, de tal modo se confundem
ou são tão subtis as diferenças que
filologicamente se torna difícil atribuir por
exemplo a Reis ou a António Mora (4)
este ou aquele texto não assinado. Ou seja, este
epicurismo tem a poeticidade de uma emoção
ficta, de um perfilhar filosófico de teatro onde
cada heterónimo (ou até Pessoa, ortónimo) se
densifica por virtude da complexidade textual e
em assim da especificidade de um pensamento
filosófico e de uma tradição que segue, altera
ou rejeita. Há, assim, um aspecto instrumental
neste epicurismo poético: enriquecer Ricardo
Reis, densificando-o.
10. Uma última palavra para
agradecer ao Doutor Nuno Ribeiro e à Professora
Leonor Santa Bárbara a ajuda preciosa para a
elaboração destas breves reflexões.
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