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João Pereira de Matos
(Lisboa, 1973).
Publicou A
Machina Circunspecular,
Fumar Mata (ilustração,
Requiem par'Imortais,
Ônfalo, Ciência Vaga,
Cancioneiro d'Érebo,
Scherzi,
Visões do Vazio em um Livro
Autógrafo e Ossa et
Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários
números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante,
Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura. |
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JOÃO
PEREIRA DE MATOS
Meu caro Bóris
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Meu Caro
Bóris
Ter a
esperança da sã-rotina em sustento de porvir; e,
também por isso, um rosto, uma identidade;
talvez que s'estanque tant'errância; excidir a
não-adveniência do tempo, este flutuar-parado em
rio de coisa-nenhuma só para depois se
precipitar incontrolado e onde não encontra
leito: transborda, levando-me inerte na
enxurrada.
Não quero nem
careço de muito, não há necessidade de fulgor e
pompa; apenas algo - o que já é pedir tanto, eu
sei, que não desmereça este parco lapso aqui
sobre o orbe que nos é dado durar.
Que fará de
mim a vida? Enquanto permanecer opaca, fecunda
de plúrimos infernos, não sabe o vivente o
porquê d’estar vivo. Só quando se vêem os
caminhos, algo de luz, s’entende que há, que
pode haver, venturoso destino. Uma agremiação de
forças e tê-las a nosso comando no
quotidiano-laboratório. Já se sabe que a vida é
perda mas há coisas que não convém perder e se
todos em algum momento ou sempre são carecidos
de vindicação, o resgate esse só com a última
exalação se cumpre, ou é de vida-gorada o
balanço final. E por isso pergunto: serei, mesmo
decaído, dos eleitos que sabem de sua virtude
neste mundo cego-de-sombras?
Sempre foi,
caro amigo, de estocástica, tentativa tenção a
minha vida; quanto fiz e foi muito, devo-o a
essa abscôndita divindade que tanto ilude os
homens, que me quis agraciar, a espaços mas
contínua, o furor de meus empreendimentos,
quanto por vezes de salvar quem parecia perdido,
quanto de ofertar alento aos desesperados e
assim dizer não àquela ceifeira que chega a
todos; e se o respeito, admiração de muitos o
soube suportar mesmo sabendo que por qualquer
tempo e façanha não os há que não dependam de
forças superiores ao vulgo ainda que a arte e o
saber sempre se dilatando acudam quando é mais
necessário.
Mas ora que a
elusiva Fortuna me abandonou, que no deve &
haver das coisas do porvir apenas tenebras se
antecipem, estou só em espéculo de mim mesmo;
minado por doença malsã, oh, tão cansado
d’existência e falho de forças, decaído no seio
dos irmãos, expulso da ditosa leveza de me saber
acarinhado pela ingrata comunidade sei que
decidir careço um fim condigno, consentâneo com
o que fui e sou, próprio de um último acto de
vida e fulgor…
Que sabeis da
grandeza? Solver as antinomias da existência com
a persistência tenaz de um perdigueiro, assim
buscando com ânimo imarcescível - antes da
tragédia tinha a meu comando todo o alor e,
paciente como ninguém na espera, sabia capturar
o momento - fui de encontrar a solução esquiva.
Quantos, mais impacientes e no entanto não tão
sonhadores s'encerraram no círculo estrito de
sua própria errância, por vezes próximos da
resposta mas por assim fechados ainda distantes
e cegos? Como tudo então fluía, um mundo mais
risonho, claramente delimitado, solar e vivo.
Podia aí habitar, de fôlego pleno, ladinamente
prosseguindo minha meritória faina - e tantos,
ditosamente, usufruíram de tais sucessos.
Por outro
lado, o que sabeis da queda? Desapiedada
catabásis, em teu próprio inferno, cada vez mais
fundo nessa vertigem interior que cada homem
porta consigo, ah, e que não conhece chão ou
término, virtuoso interromper-se, apesar de tudo
pois é irrecuperável o que se deixa para trás,
terra queimada de interior território, e
conhecer o fim do que s'abisma adiante é ainda
saber que há esperança mesmo que em desolado
horizonte, ruína ou talvez, ainda, fogo. Mas
quando s'estanca, a descida tudo se transmuda em
suspensão: não, já não haverá futura queda; não,
não é ainda o tempo d'ascenço. E é agora aqui
que m'encontro, gentil amigo, flutuando no tempo
das cinzas, olhando inteiro as glórias passadas
(recordação ora distante mas sempre viva, oh,
felicidade já inalcançável, porém doce em
memória e brilho), antevendo que a época da luz
passou e é em sombra que teremos de caminhar,
cabisbaixos, perto da loucura, indigência,
derrisão dessas potências negativas que bem
conhecemos, que não permitem a vida plena, mais
própria, na possibilidade possibilitante do vero
acontecer...
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Desenho de João Pereira de Matos |
Da grandeza
ao nada; à nulação da vida o lapso de um
murmúrio; irrisório sintoma, a princípio, a
concatenação de uns quantos escolhos que depois
s’agigantam, virulenta contaminação do terreno
firme da existência sã até que a viscosidade
própria de um chão agora já não solo fértil
tolha tudo.
E quanto
cansaço? Não, como disse, pelas glórias passadas
mas como tributo devido ao peso do mundo; e se
me vergo ao peso do mundo é porque este, imenso,
quando repousa nos largos ombros esmaga sem
piedade, ciente do seu vasto poder como quando
com inconsciente impulso s’aniquila um insecto
que, por momentos, nos perturbe… Para o mundo só
dura um instante e usando de mínima parcela de
sua força o minucioso labor de reconduzir o
vivente à sua real insignificância, de lhe
retirar tudo quanto preze, de o humilhar com
impessoal sanha e furor… Uma vez terminado o
ominoso trabalho gira e revolve o século como se
nada fosse, ladino e ditoso para uns, austero e
cruel para os demais que como eu incorreram na
estulta sina de tal vingança…
Dizer não
posso que não anseio pela decisão última deste
destino: a liberdade do não-ser, do já não-ser
por decesso e desse ponto impossível - ensina
doutrina antiga que a vida exclui o nada e
portanto não nos concerne tal anulação - que é o
exacto contrário da consciência instante de tudo
o que para mim é finado, alcançar a tão desejada
paz. Essa morte, contudo, não a procurarei por
tenção; deixar que sobrevenha o que para todos é
inevitável sem o lamentar é tudo o que vem ao
meu cuidado; quem no vigor da juventude é
colhido, quem de tanta esperança e negócio
antevê por mais breve o fim, quem gozando de
Primavera vem a saber que não terá Verão, esses
são dignos de pena; eu, de costas voltadas para
meu próprio devir já não quero, já não sonho, já
não direi de mim que ainda luto pela demora da
hora final; eu, pelo inverso, abençoo a minha
mortalidade; eu que outrora me senti imortal -
quantas vezes no combate desigual saí vitorioso,
quantos resgatei à tenaz gadanha, eu, que tive
ao alcance das unhas um estado de sobrevida tão
dilatada quanto o quisesse, se assim detive a
panaceia, eficiente travão da feroz morbilidade
e desse modo d'extender pelo indefinido da
vontade a breve existência debaixo do Sol.
Direi de mim
que sou sombra entre as umbradas sombras;
clausura na perene rememoração do que fui; já
sem força para sair do labirinto; nem o quero: é
agora tudo o que sou, memória em carne-viva,
respirante mas só na exacta adveniência de seu
passado e por hábito - inalar, exalar, mais um
dia...
Nem toda a
estima, debaixo do Sol, acima da terra, o
arsenal indiviso da pura amizade faz coalescer o
que, por fatal, oprime: aqueles que permanecem
os mais dilectos entre os fiéis não podem, não
têm poder para atenuar a desgraça, remir o mal
que acomete aquele que de entre todos parecia
pairar por sobre o orbe. Umas palavras apenas em
teu favor, caríssimo, que m’acompanhas na
era-má, que a meu lado soubeste suportar quanto
opróbrio; se mais não fazes é por minha escolha;
serás fiel depositário de meu legado e é com a
prudência que a sua preservação obriga que
t’impõe afastes de mim, de minha desdita, de
tudo o que acompanha a fama funesta; essa, pior
que a mais virulenta maleita, contamina quem
comigo prive, s’alastra a tudo o que tocar,
apodrece a víscera mesma das coisas que sejam
minhas ainda que pelo mais breve momento, quase
que se fere de morte com um olhar, uma intenção
ainda que boa é qual sentença de demenciado juiz
no corroer de vida sobre quem repouse; por isso
m’eximo de qualquer contacto, irei para o
deserto se tal carecer o firme propósito de não
lançar o meu pessoal anátema por simpática
proximidade com outro ser; a solidão não é o
pior, não, o pior é restar vivo… Ainda assim,
disse-me eleito, escolhido por um destino
todo-ciência de se saber, levando a iluminação
para a cova ou vala comum, mas uma vez aquele
lapso d’epifania ocorrendo, projecta-se todo um
novo universo, distenso e aberto na sua
abertura, a luz, tanta e tão clara que a
cegueira é apaziguadora e limpa… Por isso talvez
nem lamente o sucedido, talvez seja acto de uma
peça tão mais acabada, circulação de um saber
desde sempre detido mas, caído no olvido,
carecendo de um atroz despertar; a consciência,
obrigada ao violento esforço, cede, orbita a
loucura, perverte-se ao perder o chão, dilui-se
em multidão… E resto eu, despido de quant’atavio
que todos os homens usam no século, resto eu
perante mim, carne e ossos e víscera em brasa,
pensamento desregrado não abarcando a
circunferência que durante, ah, tanto tempo,
delimitava o limite e que, por suave e doce aura
do possível era também horizonte. Não é possível
habitar um corpo que recusa seu emprego de
corpo, quando uma alma desorbitada bebe as
estrelas, uma implosão do convívio das gentes
que deixam de reconhecer o teu rosto, ou
simplesmente a tua humanidade… E tudo isso é a
doença, mais rica e prenhe de possibilidades do
que alguma vez alguém achou possível mas que por
excesso de si e de vital doação destrói qualquer
liame com o próprio porvir; imaginai: tal é o
novel estado de quem padece, tudo é subitamente
pequeno e mesquinho, já nem se conhece o próprio
rosto e ter assim tanto cosmo é a mais ditosa
das desgraças; cresce-se demasiado depressa, o
corpo apodrece pois é inútil à tua real condição
e teu domínio; nem as ideias comuns permanecem
em seu serviço, nem uma morada te poderá
albergar; serás vagabundo, privado da mais
elementar serventia da urbe que, aliás, te teme
e despreza… Em um primeiro momento, há o natural
impulso de comunicar a boa nova, a pouco e pouco
se perceberá que isso é ferido d’impossível: já
não és, propriamente, humano; ainda não és outra
coisa, como em fluxo e acelerada mutação se
haverá de percorrer dolorosamente todas as
formas sem se deter em nenhuma; nem o nome de
Síndrome de Proteu faz jus ao caleidoscópio
mórfico do mutante em mutação… Uma réstia do
antigo ser porém se preserva, uma pálida imagem
de uma identidade pois só uma identidade admite
a interminável mudança; se esta inexiste então a
condição de um doloroso fluir não pode ocorrer e
o hospedeiro é enjeitado da sua doença,
expurgado da dádiva, imune à maldição… E por
isso ainda sou, mudando e errante, miserável
entre os d’existência dejecta mas ainda eu, um
cogito hiper-lúcido excogitando naquilo que sou,
fui e serei.
Andar pelo
mundo sem saber quem sou, isso, meu caro Bóris,
não o fará o outrora grande Doutor Çapek.
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