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ANTÓNIO BARROS
Miguel d'Alte . Memento mori |
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M e m e n t o m o r i - ser
artista, ou o medo de ninguém
Miguel d'Alte não era uma força da
natureza. Era a própria natureza. E é nesta
condição naturae que o
artista
nele se fazia dizer.
Mas o que é um
artista? Já que
sabemos depois de Maciunas quem é o
artista.
Foi muito cedo, muito no início da
minha vida, que me apresentaram lá em casa
um artista. Era António Areal. Ainda
recordo a imagem dura no contraste entre o
rosto branco leucémico e o negro sobretudo
gigante até aos pés. Disse-me o meu pai - é
um artista e vai morrer.
Depois foi a vez de um outro
artista que diariamente entrava pela
porta grande do jardim. Era António Aragão.
Rasgava as revistas lá de casa para sacar as
palavras que colava em tábuas para fazer
textos. Eu permitia-me ficar horas a
olhar. Era o processo. Nunca o levei a
sério. Mas aprendi uma lição - nunca mostres
o processo.
Aragão acabou por ir viver com os
índios huicholes, no México. Era um sonho
antigo.
Quando lá chegou, levaram-lhe ao
"Chefe" que lhe perguntou o que sabia ele
fazer. Aragão disse que era
artista. -
Artista, então vais diariamente levar as
vacas a pastar e trazes ao pôr-do-sol.
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Miguel d'Alte não era uma força da
natureza. Era a própria natureza. E é nesta
condição
naturae que o
artista
nele se fazia dizer.
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Mas como com estes exemplos não ficou
claro para mim o que era um
artista,
fui um dia até Cerveira - à Bienal de Arte.
Fui de Comboio. Depois de longas horas
de viagem saí julgando ter chegado. Mas não.
Obrigava ainda andar a pé rompendo a
escuridão. Era noite.
Cheguei ao centro da Vila, jantei
reservado, mas depois fui a um café central
à procura dos
artistas.
Entrei. O café estava cheio de gente
rural. Barulhenta.
No contraste, em silêncio, um
solitário engabardinado bebia delicadamente
de um minúsculo copo de vidro barato. Um
copo que lhe escapava entre os dedos. No
rosto contido uns óculos de lentes redondas
tão grossas quanto o copo. Na mesa um café
já bebido.
A personagem destacava-se de todos os
outros. Pensei - será um
artista? A
esculturalidade da figura parada e triste
dizia-me que ele era um
artista.
À minha mesa perguntaram-me o que
queria tomar. Igual àquele indivíduo. Com um
bagaço? Sim!
Bebi a bica. E copiei um gole de
bagaço. Tive a sensação que ia explodir.
Álcool puro. Insuportável.
Pensei como seria possível ele
conseguir? Ou será que não era um
artista?
Admiti então.
E teria eu que tanto sofrer assim para
ser artista?
Fui esclarecido só no dia seguinte.
Apresentaram-me - este é o Miguel d'Alte.
Mas eu já tinha ganho por ele um grande
respeito. Ficámos amigos. Nunca mais bebi
bagaço.
Anos depois convidei-o a ir a Coimbra
fazer uma exposição num projeto marginal que
criei na Alta da Cidade. "Califa Tempo de
Cultura". Era um quase bar, quase casa de
família, quase oratória.
Cada dia tinha uma vocação. E
foi a partir do Dia da Pintura que surgiu
Miguel d'Alte. Os quadros ficavam um
mês na parede. Recordo a delicadeza
daquela paleta de cores tão sugadas da
terra. Sentia-se até uma humidade nos olhos.
Emocionavam-me aqueles cenários de viagem
para lugar nenhum. Uma viagem sem fim. Uma
frescura de lama.
Toda aquela paz. Sossegava-me.
Precisava agora desse cenário gerado
pela pintura de Miguel d'Alte para me
acolher a alma. E todo aquele silêncio
confortante.
Foi com Miguel d'Alte que aprendi o
que era um
artista. Depois de Areal e
Aragão.
Com D'Alte desenhei este triângulo de
definição do que é ser
artista.
Aprendi com ele.
Aprendi, de Miguel, quanto vale ser
genuíno. Mas também quanto isso custa.
Aprendi aí também o
medo. O
medo de
ninguém.
As suas pinturas são um
medo de
ninguém. Húmidas. Sinto frio. Tanto frio
por vezes quando olho para elas.
Todos os anos, em dezembro, há um dia
em que faço um esforço hercúleo para não me
lembrar dele. Do Miguel. Porque há uma
história que não vou contar.
Mas lembro-me. Lembro-me tantas vezes
do Miguel d'Alte. Vejo-o tantas vezes na
natureza. Que
reza. Nessa
oratória.
António Barros
Barcelona, 2016
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António Barros • Nasceu em 1953 -
Funchal, Ilha da Madeira.
Estudos: Facultat de Belles Arts, Universitat
de Barcelona; Universidade de Coimbra. Vive e trabalha em Coimbra.
Em "Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves", é o
director do Museu, João Fernandes, quem enuncia: "António Barros é dos
nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes
performativas em Portugal. A obra de António Barros objectualiza e
espacializa o texto, explorando novas polissemias originadas pelo
cruzamento da textualidade com uma visualidade iconoclasta e
irreverente".
De sensibilidade fluxista, a sua obra convoca não só uma arte de
situação debordiana, como ainda a Escultura Social de Joseph Beuys,
tendo também trabalhado com Wolf Vostell no Vostell Fluxus Zug, Das
Mobile Museum Kunst Akademie em Leverkusen.
Se as suas artitudes convocam o situacionismo de Guy Debord ao visitar a
poésie directe francesa, Lawrence Ferlinghetti, pioneiro do Movimento da
Beat Generation para a poesia - quando destaca a obra performativa
"Revolução" em Cogolin, 1986 -, e Julien Blaine - ao publicar "Tradição"
e "Escravos" na revista Doc(k)s -, são quem primeiro internacionaliza a
arte de António Barros.
Esta última atitude em objecto-texto, é a que em 1984 um júri -
integrando Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira,
Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Maria Velho da
Costa e Manuel Alegre -, destacou no Concurso Nacional de Poesia 10 Anos
do 25 de Abril, resultando este texto num elemento identitário do seu
percurso "visualista" - onde o objecto e a palavra sinergicamente se
insinuam.
A resiliência com que sinaliza os seus gestos de escrita [progestos],
leva-o ainda à territorialidade do objecto escultural, vindo a criar, e
para além dos seus múltiplos environments como "Algias, NostAlgias" e "Amant
Alterna Camenae", o Prémio de Estudos Fílmicos Universidade de Coimbra,
com que foram laureados Alain Resnais, Manoel Oliveira e João Bénard da
Costa.
http://barrosantonio.wordpress.com
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