Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice


Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
ADELTO GONÇALVES

Uma visão polifônica do primeiro Saramago   

I

No prólogo que escreveu para O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941), Jorge Luis Borges (1899-1986) refere-se à “escrita de notas sobre livros imaginários”, a uma época em que já havia publicado o conto “A aproximação a Almotásim” (1935), que constitui um pseudo-ensaio ou uma resenha ou recensão de um suposto livro publicado em Bombaim três anos antes. Para “enganar” seus leitores e futuros estudiosos de sua obra, dotara o livro imaginário de um editor real e um prefácio que teria sido escrito por um escritor real, mas tanto o autor como o livro, seu enredo e detalhes de alguns capítulos eram de sua inteira invenção.

Mais de 70 anos depois, o professor Francisco Maciel Silveira, se não foi tão longe, lançou um livro, Exercícios de caligrafia literária: Saramago Quase (Curitiba, Editora CRV, 2012), que segue nessas pegadas, pelo menos em parte, ao reunir ensaios que parecem ficções e que seriam de diferentes autores, todos preocupados em desvendar a obra ficcional e o teatro da primeira fase de José Saramago (1922-2010) como autor. Em outras palavras: o ensaísta recorre ao conceito de polifonia utilizado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) no estudo da obra de Fiodor Dostoievski (1821-1881) para reunir vozes e pontos de vistas conflitantes a respeito da obra saramaguiana.

São ensaios que analisam o universo ficcional de Saramago em seu período de formação (1947-1980), até aqui bem pouco estudado, que vai de Terra do pecado, romance publicado em 1947, a Que farei com este livro?, peça de teatro, e Levantado do chão, romance, ambos publicados em 1980. Nesse período, como se sabe, o autor publicou ainda O ano de 1993, prosa poética, de 1975, Manual de pintura e caligrafia, romance, de 1977, Objecto Quase, contos, de 1978, e A noite, peça de teatro, de 1979.

Para tanto, Maciel imaginou ensaístas fictícios para que cada um se ocupasse de um determinado livro saramaguiano daquele período. Por exemplo, Manuel Pelourinho, diplomata, faz a crítica de Terra do Pecado, título que por sugestão do editor substituiria o anterior, A viúva, dado originalmente pelo autor, utilizando uma linguagem polida, sempre preocupada em não ferir susceptibilidades, como um bom profissional da área de Relações Exteriores, “de punho de rendas e luvas de pelica”, como disse o próprio Maciel em entrevista a Daniela Guedes, publicada no site www.artedeescrever.com.br.

O ano de 1993 é discutido por Apolo Constantinos Jr., que seria astrônomo e antropólogo, enquanto F. Kohm, microempresário e latinista ocupa-se de Manual de pintura e caligrafia. Já José Roberto Jauss Iser, jornalista enófilo e gourmet, interpreta Objecto Quase, enquanto Ângelo Ruzzante de Pádua, encenador e crítico teatral, discorre sobre A noite, peça teatral, e Legenda Vaz Est e Samir Savon, doutores em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), estudam a fundo Que farei com este livro?, destacando o diálogo intertextual de Saramago com suas fontes. Por fim, Romeu Raneman da Silva, médico homeopata, analisa o hermético romance Levantado do chão.

Como pode perceber o leitor, há aqui, para além dos nomes dos ensaístas fictícios, uma explícita ironia com suas profissões e modo de ver o mundo (e não só o mundo saramaguiano) e tentar reproduzi-lo em palavras. O sobrenome Jauss Iser, logo se percebe, trata-se de uma homenagem à famosa Estética da Recepção ou Teoria da Recepção, que propõe uma reformulação da historiografia literária e da interpretação textual. Como se sabe, o alemão Wolfgang Iser (1926-2007), professor de Literatura Comparada na Universidade de Konstanz, na Alemanha, e seu colega Hans Robert Jauss (1921-1997), igualmente alemão e professor na Universidade de Heidelberg, são os maiores expoentes da Teoria da Recepção, que fundamenta suas bases na própria crítica literária alemã.

Para intensificar o conflito, Maciel ainda tratou de inventar, ao final de cada ensaio, a seção “Cartas à redação: foro e desaforo do leitor” em que leitores igualmente imaginários interagem e discutem as formulações críticas aventadas pelos ensaístas fictícios.

II

Dos relatos de Objecto Quase, Jauss Iser diz apreciar, sobretudo, “Cadeira”, que conta o trabalho de conspiração de um voraz e subversivo caruncho a roer o madeirame da cadeira em que diariamente assentava-se o ditador António de Oliveira Salazar (1889-1968), antigo professor na Universidade de Coimbra, que exerceu o mando com mão de ferro em Portugal por quase meio século.

Obviamente, trata-se de uma alegoria, que procura reconstituir os últimos anos do patriarca celibatário (porque casado com a pátria, como dizia o discurso fascista da época) até a sua derrubada, que antecede em seis anos o fim da ditadura que leva o seu nome. Para o fictício Jauss Iser, o conto pode ser definido como “autópsia de uma queda” (ou de uma época?), ao registrar a causa mortis do salazarismo, ou seja, o acidente vascular-cerebral que levou o ditador para a cova e colocou o seu regime diante de um corredor que só chegaria mesmo ao fim a 25 de abril de 1974 com a chamada “Revolução dos Cravos”.

Por aqui, o leitor já pode ter uma ideia do que encontrará neste livro. Recomenda-se apenas que esteja bem preparado e solidamente estruturado quanto aos conceitos literários, além de conhecer com alguma profundidade boa parte da obra saramaguiana porque, muitas vezes, não saberá se o que lê é do original saramaguiano ou inventado pelo estudioso de sua obra, tal a presença de fenômenos de intertextualidade. Com certeza, o Prêmio Nobel de 1998, o único da Literatura Portuguesa, não terá tido até agora um especialista tão conhecedor dos meandros, às vezes até enigmáticos, de sua obra.

III

Professor titular de Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde obteve os títulos de mestre, doutor e livre-docente, com trabalhos em torno da oratória sagrada dos padres António Vieira (1608-1697) e Manuel Bernardes (1644-1710) e da comediografia de António José da Silva (1705-1739), o Judeu, Francisco Maciel Silveira é crítico literário, com ensaios e resenhas publicados em periódicos do Brasil e do exterior. Poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta com mais de duas dezenas de prêmios, atua na docência, pesquisa e orientação com ênfase no Classicismo, no Barroco, no Realismo e no Teatro Português.

É autor dos livros de contos Esfinges (1978) e A caixa de Pandora: aquela que nos coube (1996) e de poemas Macho e fêmea os criou, segundo a paixão... (1983), além de outros ainda na gaveta. Nas áreas didática e ensaística, publicou ainda Português para o segundo grau (1979; 5ª ed. 1988); Aprenda a escrever (1985; 2ª ed. 1989); Padre Manuel Bernardes – Textos doutrinais (1981); Poesia clássica (1988); Literatura barroca (1987); Concerto barroco às óperas do Judeu (1992); Palimpsestos – uma história intertextual da Literatura Portuguesa (1997; 2ª ed., 2008); Fernando Pessoa(s) de um drama (1999); Ó Luís, vais de Camões? (2001; 2ª ed,. 2008); Saramago – eu-próprio o outro? (2007); Eça de Queiroz: O mandarim do Realismo português (2010); e Canteiro de obras (2011). É responsável pelo site Pinceladas em que discorre sobre a pintura alheia: http://www.pinceladas-fms.com.br


Exercícios de caligrafia literária: Saramago Quase, de Francisco Maciel Silveira. Curitiba: Editora CRV, 174 págs., 2012, R$ 42,87. Site: www.editoracrv.com.br E-mail: sac@edirtoracrv.com.br
 
 
 
 
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Maria Estela Guedes
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