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NOTAS DE LEITURA |
Paulo Moreira.
Encenador de teatro
profissional (na ACTA) e ex-professor de
Física e Química e Teatro. Publicou 2
obras em nome próprio: a novela/romance
“Maria Manuel” e o volume “Pessoa(s) em
Cena” (peças de teatro com textos de F.
Pessoa), ambos pela Redil Publicações. |
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Foto: Rui Serra
Ribeiro |
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PAULO MOREIRA
Curtir as letras
Por Maria Estela Guedes |
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O principal mérito de
Paulo Moreira estampa-se no título da sua
coletânea, Curt'os contos. Ele curte e
o leitor também, por causa dessa inclinação para
o gozo, para o entretenimento que a modernidade
subtraiu à cultura mais erudita. É fácil ver que
o entretenimento foi monopolizado pela cultura
de massa e reina sobretudo na televisão.
Um outro lado destes contos, curtos, vem
apontado até no título de um deles, logo o
terceiro, «Um escrito surrealista». A curtição
dos contos muito deve realmente à espontaneidade
(num deles há uma promessa de nada corrigir), ao
humor negro, ao deslocamento de peças de
realidade do seu lugar próprio para outro, como
num puzzle errado, à irrupção de notas
sexuais, à descoberta da língua, tão típicos do
surrealismo. A descoberta da língua tem natureza
psicanalítica, de resto a moda da Psicanálise
foi lançada pelos surrealistas. A curtição
incide na escuta das sílabas e na visão dos sons, como
acontece em Curt'os contos ou no conto sobre a
expressão «fá-lo» e suas variantes gráficas e
semânticas. O autor não tem medo de o acusarem
de falta de originalidade com um termo como
este, e este é um aspeto de outro posicionamento
que vale a pena encarecer, a ausência de
preconceitos. Antes de vermos como, anote-se que
é uma das maiores curtições da escrita o ficar à
coca destas pequenas aventuras que podem
tornar-se tão grandes que dão origem à criação
de uma Gramática secreta da língua portuguesa,
como aconteceu a António Telmo, que, para a
palavra "dar" e variantes achou mais de 50
aceções semânticas. Portanto Paulo Moreira não
dá à perna com a aventura de ler e
escrever, pelo contrário, dá-lhe
mais para o destemor, e com ele concluo esta
nota, não porém sem recuar ao seu romance
Maria Manuel, que é onde a falta de
preconceitos mais se oferece à admiração.
Maria Manuel é uma das personagens do romance
homónimo. Tem como principal característica o
ser uma pessoa do sexo masculino e do género
feminino, ou seja, um transgénero. É bom que
estes assuntos seja ventilados em todos os meios
de arte e comunicação, para desdramatizar, para
integrar as consciências num mundo de inclusão e
não de expulsão. Por razões menos importantes as
pessoas molestam-se, queixam-se de palavrões e
feridas na ortografia, com tudo isto falhando no
conhecimento da língua e da literatura e
desobedecendo ao que manda a Lei.
Em matéria de sexualidade vivemos ainda na
sacristia. Tal como em matéria de igualdade de
direitos entre homem e mulher, Homem sem
distinção de etnia e cor, etc.. De um lado temos
a Constituição e a Lei, que assentam numa visão
avançada e promovem a vida de acordo com a
Ética. A maioria das pessoas, face à concreta
realidade de homossexuais na família, por
exemplo, reage não de acordo com a Lei, sim de
acordo com a moral, e esta provém da Igreja.
Paulo Moreira invoca este tipo de problemas em
que os que se julgam mais progressistas esbarram
em preconceitos morais, sem se aperceberem de
que a Lei repudia a discriminação e, se concede
o direito de casamento entre pessoas do mesmo
sexo, é porque essas pessoas têm de ser tratadas
como qualquer outro casal. Escusado dizer que a
família é a defensora da moral, por isso não é
impunemente que o escritor ousa trazer à flor
das páginas assuntos que a moral tem por
condenáveis, por muito que a Constituição e a
Lei etc.., etc., vale a pena ler os Curt'os
contos e o romance Maria Manuel e pensar em como
é absurdo, paradoxal e retrógrado o nosso comportamento.
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Obra distinguida com
Recomendação para Publicação
por Agustina Bessa-Luís, Dinis Machado, Maria
Ondina Braga,
Fernando Dacosta e José do Carmo Francisco,
júri da 1ª Mostra Portuguesa de Artes e Ideias,
1987.
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