Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração, Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.
 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


O sonho de um jovem anjo

 

Implode sem o saber, pela natureza do som; livre e louco, basta um momento de distracção, um impulso de mal timbrado-rítmico e virá, seguramente, a condenação; essa é instantânea no seu primeiro momento mas perene em seus efeitos; dir-se-á total e completa porque ínfima como é apanágio das micro-percepções e assim mais capaz de projectar o penitente nos mais recuados recessos do cosmo; de resto, musicado nas estrelas está a cifra dessa completude; o radical-danado é o supremamente liberto dos homens, capaz de se dedicar integralmente ao sofrimento; capaz, ainda, de se deliciar como compete a tal ferida; enfim apto a romper quantos laços o prendam a uma variegada realidade para cumprir o seu destino único, uno, extenso, sereno, tenaz, diria, eterno; assim armado da imortalidade, da missão excelsa, dispõe de todos os elementos para se tornar um inverso-deus; calcinada a memória nem há quem o atinja; é certo que assim se condena a uma solidão única, mas por plena de ruído (as ondas sonoras desencadeadas pelo primevo murmúrio que depois, a pouco e pouco, se transmutam em urro, ululante dispersão em múltiplas direcções que, em contraponto, parecem complementar-se antes de seguirem a variação própria do algoritmo original que, estocástico como seja, já contém no seu começo toda a distopia sinfónica); a incompreensão do seu próprio devir também foi prevista; sim, quantas potestades haverá que concorreram para esse desígnio tão único que no devaneio demencial das sobrehumanas entidades é passível de vindicar o incómodo de tão maçadora mole de gente que mais depressa muda a sua adoração por determinada deidade do que abdica de sua natural perfídia?

Só um eleito para percorrer o compasso demenciado de todos os excessos faz merecer a humanidade que o viu nascer e, ainda que dela se afaste pois renunciará aos seus atributos, porta a marca genética do original impulso; é tal-qual máquina auto-pulsada mas o motor que lhe deu vida é a carne, o sangue, o húmus, a biografia própria e venal até àquele momento em que se divergiu decididamente do vulgar-vivente; prescindirá do corpo, da memória do que foi pelo prazer de um porvir de pura existência; a ponto de nem a vertigem  lhe quebrar o tédio mas sempre alimentado da substância que lhe é própria que é a da inquietude, o odor tranfigurado do ócio pois, subtil, é já imaterial; e quem sente esse vital desassossego dessa maneira radical e funda nem ânimo terá para se afligir com o espaço já não extenso, com o tempo já não seccionado, com a história que a seus pés é um singelo nó onde já nada resta acontecer; está cansado; é essa a técnica do mundo, exaurir as forças, deixar exangue o corpo ainda que desencarnado; e porque é de sua essencial essência restar insubmisso mais daninha obsessão haverá na contenda; os insectos e vermes debaixo das unhas, dentro da carne incorpórea pois a sua cifra é o silêncio; serão essas as armas para o vergar à pulsão venal, ao furor da mundanidade do mundo que, em seu afã pelo quotidiano, admitir não pode a singular destinação que o anima para além do século; ah, a prodigiosa expressão de um contentamento duro e inflexível, por um lado, pleno de beatude, por outro; pois não será a ocasião de ter um destino simultaneamente infra e sobre humano algo para celebrar com a feroz determinação de um qualquer obstinado-maníaco? Haverá, no entanto, lugar para remorso? Aquela feroz determinação de tudo compreender, escopo total-demenciado que não abandona nem mesmo o semideus, nem o íncubo, nem um homem; tal possibilidade já muitos levou à loucura, outros à cruel renúncia de sua própria identidade; subiram à montanha os sábios e aí permanecerem até ao decesso do mundo. Não trocaram uma palavra. O que pensas que te dará a franquia da existência? Liberto da escravatura do ser, de uma determinação que seja um rosto; o criminoso esconde a face, abjura dos seus deuses e de seu nome; tenta tornar-se invisível ou, pelo menos, tão discreto que passe despercebido em direcção ao esquecimento. Poderá também optar, desesperadamente, pela vindicação de seus actos, nulação da história de malfazeja biografia, repor a ordem corrompida, agora, justa e perfeita e, se tempo sobrar, só então começar uma vida.

Desenho de João Pereira de Matos
 

Que dizer então de quem está eximido de quanta moralidade? Indistinto, por superior ou diferente, do horizonte de qualquer acto, onde a bondade não encontra o destinatário e a maldição recai sobre ninguém. Aquele resíduo que nos prendia ao mundo, à chã linguagem dos homens, e eternamente engendra um nóvel e infinito conjunto de signos para expressar um estado tão diferente de finitude que se teme este texto recaia no não-sentido, por parco e falho do aparato próprio de tão estranha natureza: viver no puro tom do entreser. Aquilo que era banal e corriqueiro é, ora, estrangeiro, incompreensíveis até as corporais exigências;  

- não, não careço de nada, auto-suficiente e livre do tempo da vida e do tempo da morte, sobrevivência à corrupção e maleita, a todas as gentes que conheci. Vivo, repito, em puro tom, da mais rarefeita e subtil essência; transcendi esta carne e caí no fundo de meu abismo para, na vertigem da queda, não restar para mim senão interior percurso. Eu ainda que insular-fechado serei todo um cosmo. Pleno de matizes, é certo, uma geografia que levaria milénios a cartografar pela mais douta escola de sábios; sinfonia onírica-demencial de sons totais (é pelo tom que se afere da mensagem, o timbre celestial que ressoa no cosmo, a chã distonia de cacofónica destemperança, o ressoar de um eco sem voz; fluo por todo o espaço, quero encontrar o meu deus e ele não cede, não se dá a conhecer e se furta ao amplexo final que me daria por destino um término à minha jornada, que ultrapassando os séculos e os milénios nem por isso deixa de carecer de um fim, pois aquele que não acabe não saberá dizer onde foi o meio de sua existência, nem o caminho que assim cumpriu, vê-se só em seu deserto, dédalo todo feito de tempo).

Agora que já não tenho nem quero o mundo e o vejo lá longe, d’intenso azul, pululante dessa vida da qual não participo e que em breve se esquecerá de quem fui, paira sobre mim essa mágoa universal do ser-perene, dejecto do sempiterno, manante de fogo e cinza, em ruir d'aluimento interno, para sempre em movimento esotérico-espiralado, sempre caindo, caindo a velocidade tal que nem agitar o pulmão é de lograr e embora respirar se não exija já a meu incorpóreo corpo, dá alor e conforto a lembrança de um outrora perfumando de fror quando respirar era o mais banal da existência, quando em um mergulho de Verão se subia das profundezas para o ar pleno de Sol. 

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Maria Estela Guedes
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