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João Pereira de Matos
(Lisboa, 1973).
Publicou A
Machina Circunspecular,
Fumar Mata (ilustração,
Requiem par'Imortais,
Ônfalo, Ciência Vaga,
Cancioneiro d'Érebo,
Scherzi,
Visões do Vazio em um Livro
Autógrafo e Ossa et
Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários
números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante,
Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura. |
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JOÃO PEREIRA
DE MATOS
O
sonho de um jovem anjo
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Implode sem o saber,
pela natureza do som; livre e louco, basta um
momento de distracção, um impulso de mal
timbrado-rítmico e virá, seguramente, a
condenação; essa é instantânea no seu primeiro
momento mas perene em seus efeitos; dir-se-á
total e completa porque ínfima como é apanágio
das micro-percepções e assim mais capaz de
projectar o penitente nos mais recuados recessos
do cosmo; de resto, musicado nas estrelas está a
cifra dessa completude; o radical-danado é o
supremamente liberto dos homens, capaz de se
dedicar integralmente ao sofrimento; capaz,
ainda, de se deliciar como compete a tal ferida;
enfim apto a romper quantos laços o prendam a
uma variegada realidade para cumprir o seu
destino único, uno, extenso, sereno, tenaz,
diria, eterno; assim armado da imortalidade, da
missão excelsa, dispõe de todos os elementos
para se tornar um inverso-deus; calcinada a
memória nem há quem o atinja; é certo que assim
se condena a uma solidão única, mas por plena de
ruído (as ondas sonoras desencadeadas pelo
primevo murmúrio que depois, a pouco e pouco, se
transmutam em urro, ululante dispersão em
múltiplas direcções que, em contraponto, parecem
complementar-se antes de seguirem a variação
própria do algoritmo original que, estocástico
como seja, já contém no seu começo toda a
distopia sinfónica); a incompreensão do seu
próprio devir também foi prevista; sim, quantas
potestades haverá que concorreram para esse
desígnio tão único que no devaneio demencial das
sobrehumanas entidades é passível de vindicar o
incómodo de tão maçadora mole de gente que mais
depressa muda a sua adoração por determinada
deidade do que abdica de sua natural perfídia?
Só um eleito para percorrer o compasso
demenciado de todos os excessos faz merecer a
humanidade que o viu nascer e, ainda que dela se
afaste pois renunciará aos seus atributos, porta
a marca genética do original impulso; é tal-qual
máquina auto-pulsada mas o motor que lhe deu
vida é a carne, o sangue, o húmus, a biografia
própria e venal até àquele momento em que se
divergiu decididamente do vulgar-vivente;
prescindirá do corpo, da memória do que foi pelo
prazer de um porvir de pura existência; a ponto
de nem a vertigem
lhe quebrar o
tédio mas sempre alimentado da substância que
lhe é própria que é a da inquietude, o odor
tranfigurado do ócio pois, subtil, é já
imaterial; e quem sente esse vital desassossego
dessa maneira radical e funda nem ânimo terá
para se afligir com o espaço já não extenso, com
o tempo já não seccionado, com a história que a
seus pés é um singelo nó onde já nada resta
acontecer; está cansado; é essa a técnica do
mundo, exaurir as forças, deixar exangue o corpo
ainda que desencarnado; e porque é de sua
essencial essência restar insubmisso mais
daninha obsessão haverá na contenda; os insectos
e vermes debaixo das unhas, dentro da carne
incorpórea pois a sua cifra é o silêncio; serão
essas as armas para o vergar à pulsão venal, ao
furor da mundanidade do mundo que, em seu afã
pelo quotidiano, admitir não pode a singular
destinação que o anima para além do século; ah,
a prodigiosa expressão de um contentamento duro
e inflexível, por um lado, pleno de beatude, por
outro; pois não será a ocasião de ter um destino
simultaneamente infra e sobre humano algo para
celebrar com a feroz determinação de um qualquer
obstinado-maníaco? Haverá, no entanto, lugar
para remorso? Aquela feroz determinação de tudo
compreender, escopo total-demenciado que não
abandona nem mesmo o semideus, nem o íncubo, nem
um homem; tal possibilidade já muitos levou à
loucura, outros à cruel renúncia de sua própria
identidade; subiram à montanha os sábios e aí
permanecerem até ao decesso do mundo. Não
trocaram uma palavra. O que pensas que te dará a
franquia da existência? Liberto da escravatura
do ser, de uma determinação que seja um rosto; o
criminoso esconde a face, abjura dos seus deuses
e de seu nome; tenta tornar-se invisível ou,
pelo menos, tão discreto que passe despercebido
em direcção ao esquecimento. Poderá também
optar, desesperadamente, pela vindicação de seus
actos, nulação da história de malfazeja
biografia, repor a ordem corrompida, agora,
justa e perfeita e, se tempo sobrar, só então
começar uma vida.
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Desenho de João
Pereira de Matos |
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Que dizer então de quem
está eximido de quanta moralidade? Indistinto,
por superior ou diferente, do horizonte de
qualquer acto, onde a bondade não encontra o
destinatário e a maldição recai sobre ninguém.
Aquele resíduo que nos prendia ao mundo, à chã
linguagem dos homens, e eternamente engendra um
nóvel e infinito conjunto de signos para
expressar um estado tão diferente de finitude
que se teme este texto recaia no não-sentido,
por parco e falho do aparato próprio de tão
estranha natureza: viver no puro tom do
entreser. Aquilo que era banal e corriqueiro é,
ora, estrangeiro, incompreensíveis até as
corporais exigências;
- não, não careço de
nada, auto-suficiente e livre do tempo da vida e
do tempo da morte, sobrevivência à corrupção e
maleita, a todas as gentes que conheci. Vivo,
repito, em puro tom, da mais rarefeita e subtil
essência; transcendi esta carne e caí no fundo
de meu abismo para, na vertigem da queda, não
restar para mim senão interior percurso. Eu
ainda que insular-fechado serei todo um cosmo.
Pleno de matizes, é certo, uma geografia que
levaria milénios a cartografar pela mais douta
escola de sábios; sinfonia onírica-demencial de
sons totais (é pelo tom que se afere da
mensagem, o timbre celestial que ressoa no
cosmo, a chã distonia de cacofónica
destemperança, o ressoar de um eco sem voz; fluo
por todo o espaço, quero encontrar o meu deus e
ele não cede, não se dá a conhecer e se furta ao
amplexo final que me daria por destino um
término à minha jornada, que ultrapassando os
séculos e os milénios nem por isso deixa de
carecer de um fim, pois aquele que não acabe não
saberá dizer onde foi o meio de sua existência,
nem o caminho que assim cumpriu, vê-se só em seu
deserto, dédalo todo feito de tempo).
Agora que já não tenho nem quero o mundo e o
vejo lá longe, d’intenso azul, pululante dessa
vida da qual não participo e que em breve se
esquecerá de quem fui, paira sobre mim essa
mágoa universal do ser-perene, dejecto do
sempiterno, manante de fogo e cinza, em ruir
d'aluimento interno, para sempre em movimento
esotérico-espiralado, sempre caindo, caindo a
velocidade tal que nem agitar o pulmão é de
lograr e embora respirar se não exija já a meu
incorpóreo corpo, dá alor e conforto a lembrança
de um outrora perfumando de
fror
quando respirar era o mais banal da existência,
quando em um mergulho de Verão se subia das
profundezas para o ar pleno de Sol.
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