Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016

Claudio Jorge Willer (São Paulo, 2 de dezembro de 1940) é um poeta, ensaísta, crítico e tradutor brasileiro. Como poeta, distingue-se pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Ao lado de Sergio Lima e Roberto Piva, é um dos únicos poetas brasileiros a receber menção do periódico francês La Bréche - Actión Surrealisté, dirigida por André Breton em fevereiro de 1965. Como crítico e ensaísta, escreveu em vários periódicos brasileiros: nos diários Jornal da Tarde, Jornal do Brasil (caderno Idéias), Folha de S. Paulo,O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, nas revistas Isto É e Cult e em publicações da imprensa alternativa e independente: jornal Versus, revista Singular e Plural, jornal O Escritor da UBE, Linguagem Viva, Muito Mais, Página Central, Reserva Cultural (cinema) e outras.
CLAUDIO WILLER

A poesia total de Fernando Naporano

 



Mesmo com tiragem reduzida e circulação restrita, o recente Agonia dos pássaros, lançado em 2014, teve uma recepção marcada por leitores entusiasmados, apreciações muito favoráveis e um prêmio importante. Assim foi rompido o prolongado ineditismo da poesia de Naporano, até então conhecido – igualmente por uma minoria informada – pela atuação pública no campo da música, como crítico, intérprete e criador. Foram lançadas as primeiras luzes sobre uma obra substanciosa e complexa, composta por milhares de páginas escritas ao longo de algumas décadas.

Este novo volume, Os anjos não sabem morrer, será mais um passo na direção do reconhecimento, da percepção do alcance de sua contribuição. A relação com Agonia dos pássaros, e também com etapas precedentes de sua criação, é ao mesmo tempo de continuidade e superação. No livro precedente, a tônica é agonia e lamento pela perda, através, no dizer de Caio Liudvik em resenha publicada no Guia do jornal Folha de São Paulo, de “versos impulsionados por um afeto primordial de saudade”; algo que “não apela para sentimentalismos estereotipados na maneira contundente e enxuta como transfigura a dor pessoal em lamento e revolta metafísica da condição humana em nossos desertos, dias desabitados, fortaleza da solidão”.

Desta vez, também apresentando poesia à beira do abismo, registro de experiências-limite, há exaltação, vivência do sublime. Pode-se dizer que, se no livro anterior pesou o desconforto da imanência traduzido em litanias da perda e da morte, agora adiciona-se uma transcendência. Ou um movimento ascendente que, simultaneamente, retoma e transforma, de modo muito elaborado, uma tópica tradicional: aquela da viagem iniciativa. Porém multiplicada, resultando em um mapa de inúmeros roteiros e dimensões. Para dar conta deles, é mobilizado um vertiginoso conjunto de meios de expressão poética. Transita desde a linguagem direta, a transcrição da fala no modo mais coloquial, até criptogramas como “Argh, Hydra. Northenmost, Desolation Row”, título de um dos poemas, e sinais que valem por símbolos.

De modo à paradoxal primeira vista, Os anjos não sabem morrer é um livro de descida ao inferno e confronto com a morte; e ao mesmo tempo da celebração do encontro amoroso. É como se na Comédia de Dante, à qual há evidentes alusões, Beatriz viesse encontrar o poeta no inferno, e não ao final da trajetória. Ou como se os círculos infernais e celestiais – “A exaltada brancura do exílio” – se constituíssem em unidade; povoada, porém, mais que pela diversidade, pela multiplicidade.

Assim, sendo absolutamente original, rigorosamente pessoal, Os anjos não sabem morrer adiciona-se e acrescenta algo a uma tradição. Viagens ao reino dos mortos na poesia e nas iniciações são uma descida que resulta em ganho da sabedoria, da iluminação através de uma transformação. Assim foi com Dante, cujos réprobos eram videntes, capazes de anunciar acontecimentos futuros; e antes, com Orfeu, patrono dos poetas, e com os xamãs, que viajam aos subterrâneos e morrem simbolicamente antes de adquirirem sua linguagem pessoal, matriz da poesia; bem como, mais tarde, com William Blake, Rimbaud e todos aqueles que tiveram iluminações no inferno.

Para dar conta dessa tensão da diversidade e da unidade, Naporano procura a poesia total, absoluta, tal como proposta por Mallarmé, apropriadamente citado em epígrafe. Oculta sentidos, a dimensão prosaica dos enunciados, para revelar o Absoluto. Instiga o leitor, convidando-o a ser parceiro na decifração. Além de trazer muita simbologia tradicional, especialmente das fontes da astrologia, cria outros símbolos através de subentendidos e alusões. Principalmente, combinar vocábulos de modo a sugerir novos sentidos. Mostra que a palavra é multidimensional ao relacioná-la com o universo todo da língua.

Logo no início, o leitor se depara com versos como estes:

Entretanto, deixei que escorressem das horas,

de todos os relógios, as oxidações & a ferrugem

das janelas abandonadas nas praias da vida.

Há um encadeamento de imagens na declaração equivalente àquela de Jorge de Lima em Invenção de Orfeu: Despi-me de outros bens, de glória mais modesta”. Começa em um modo descritivo, com associações diretas relacionadas à passagem do tempo: horas, relógios descartados que se oxidam, como em um quadro surrealista de Dali ou Ernst – mas seus relógios são janelas que estão em praias; e essas praias são a vida que passa – ou que permanece.

A cada passo, alcança maior amplidão e vai mostrando que cada coisa, cada elemento, é parte de um todo. São poemas que transmitem a impressão de poderem estender-se ao infinito. Possuído pelo demônio da analogia, enxerga todas as conexões possíveis:

A entidade negramarela da solidão

havia decidido beijar os brincos

da pele do meu céu de prata.

Palavras, conforme sua poética, são microcosmo que contém ou refletem o macrocosmo, a totalidade das coisas existentes. Daí norteá-lo a desconfiança com relação ao sentido, à relação estável do signo com algo específico. Transmite ao leitor a suspeita de que em todo vocábulo cabem mais sentidos. Um dos modos de expô-la é, evidentemente, através das palavras-valise: “Talvez as valises do sensacionismo / sejam os derradeiros fuzis da vida”.; ou como nestes versos:

Só por isso consigo

andar a pé, em algas surdas

sobre as águas do Sonho

 

com a garantia, valise-valia

desse ateu, todo teu

silencioso Corpo-de-Ninguém., 

Ele anda, levando a valise-valia, sobre algas ou águas? Ambos, evidentemente. As águas – e continentes – do sonho são o lugar onde o “ateu” é “todo teu”, e assim todos os sentidos convergem através das aliterações, fusões e deslocamentos. Daí as menções e alusões a Pessoa e Sá-Carneiro, expoentes do sensacionismo, do projeto de alcançar a síntese de sujeito e objeto través de um registro total como em “Ah, Mudei-me De Mim”, com sua série de oximoros e aliterações,

A fala do silêncio drapeja,

esteriliza os dizimados decibéis

das decepções.

O sensacionismo ou simultaneísmo de Naporano não apenas amplia os sentidos da linguagem, porém mostra como essa interpenetração de tudo rege o cosmos. Sua realidade é regida por um princípio de perpétua mutação; quanto mais real algo for, tanto mais será outra coisa. São as “habilidades da água” – título de um poema que vale para o livro todo. Exercendo-as, traz versos com séries alucinantes de sinestesias e correspondências:

Com os olhos da voz

gritei em vermelho-ave

mirei o fim do mundo

empurrando

com a respiração da fala

o último fantasma

 

e a sua faca.

Realizando essa poética, modo de expressar uma cosmovisão, sucedem-se os versos de uma extrema delicadeza, pura música verbal:

Há um arame de sol na porta

a madeira e sua ranhura em prece .

Um dos esoteristas do final do século 18, Louis-Claude de Saint-Martin, discípulo e continuador de Saint-Yves d’Alveydre, criador da ordem dos “eleitos Cohen” à qual Gérard de Nerval foi filiado, ganhou o apelido de “filósofo desconhecido”. Era secreto. Sua obra circulava de modo subterrâneo, em opúsculos e edições fora do comércio. Mas todos sabiam quem era. Exerceu uma influência colossal. Românticos da primeira geração tiveram acesso à sua obra e o estudaram. Foi constitutivo da produção filosófica e poética do grupo de Jena: estudiosos sabem que Novalis o havia estudado antes mesmo de ler Jacob Böhme.

Penso que Fernando Naporano tende a tornar-se o grande “poeta desconhecido” de sua geração, deste período de final do século 20 e começo do 21. Crescendo à sombra, expandindo-se no subsolo ao modo dos rizomas, sua poesia vai formando leitores, contribuindo para moldar uma nova sensibilidade. Influência subterrânea, mas que emergirá a seu tempo, de modo vigoroso.

 
 
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