Mesmo com tiragem reduzida e circulação
restrita, o recente
Agonia dos pássaros, lançado em 2014, teve uma recepção marcada por
leitores entusiasmados, apreciações muito
favoráveis e um prêmio importante. Assim foi
rompido o prolongado ineditismo da poesia de
Naporano, até então conhecido – igualmente por
uma minoria informada – pela atuação pública no
campo da música, como crítico, intérprete e
criador. Foram lançadas as primeiras luzes sobre
uma obra substanciosa e complexa, composta por
milhares de páginas escritas ao longo de algumas
décadas.
Este novo volume,
Os anjos
não sabem morrer, será mais um passo na
direção do reconhecimento, da percepção do
alcance de sua contribuição. A relação com
Agonia dos
pássaros, e também com etapas precedentes de
sua criação, é ao mesmo tempo de continuidade e
superação. No livro precedente, a tônica é
agonia e lamento pela perda, através, no dizer
de Caio Liudvik em resenha publicada no Guia do
jornal Folha de São Paulo, de “versos
impulsionados por um afeto primordial de
saudade”; algo que “não apela para
sentimentalismos estereotipados na maneira
contundente e enxuta como transfigura a dor
pessoal em lamento e revolta metafísica da
condição humana em nossos desertos, dias
desabitados, fortaleza da solidão”.
Desta vez, também apresentando poesia à beira do
abismo, registro de experiências-limite, há
exaltação, vivência do sublime. Pode-se dizer
que, se no livro anterior pesou o desconforto da
imanência traduzido em litanias da perda e da
morte, agora adiciona-se uma transcendência. Ou
um movimento ascendente que, simultaneamente,
retoma e transforma, de modo muito elaborado,
uma tópica tradicional: aquela da viagem
iniciativa. Porém multiplicada, resultando em um
mapa de inúmeros roteiros e dimensões. Para dar
conta deles, é mobilizado um vertiginoso
conjunto de meios de expressão poética. Transita
desde a linguagem direta, a transcrição da fala
no modo mais coloquial, até criptogramas como
“Argh, Hydra. Northenmost,
Desolation
Row”, título de um dos poemas, e sinais que
valem por símbolos.
De modo à paradoxal primeira vista,
Os anjos
não sabem morrer é um livro de descida ao
inferno e confronto com a morte; e ao mesmo
tempo da celebração do encontro amoroso. É como
se na
Comédia de Dante, à qual há evidentes
alusões, Beatriz viesse encontrar o poeta no
inferno, e não ao final da trajetória. Ou como
se os círculos infernais e celestiais – “A
exaltada brancura do exílio” – se constituíssem
em unidade; povoada, porém, mais que pela
diversidade, pela multiplicidade.
Assim, sendo absolutamente original,
rigorosamente pessoal,
Os anjos não sabem morrer adiciona-se e acrescenta algo a uma
tradição. Viagens ao reino dos mortos na poesia
e nas iniciações são uma descida que resulta em
ganho da sabedoria, da iluminação através de uma
transformação. Assim foi com Dante, cujos
réprobos eram videntes, capazes de anunciar
acontecimentos futuros; e antes, com Orfeu,
patrono dos poetas, e com os xamãs, que viajam
aos subterrâneos e morrem simbolicamente antes
de adquirirem sua linguagem pessoal, matriz da
poesia; bem como, mais tarde, com William Blake,
Rimbaud e todos aqueles que tiveram iluminações
no inferno.
Para dar conta dessa tensão da diversidade e da
unidade, Naporano procura a poesia total,
absoluta, tal como proposta por Mallarmé,
apropriadamente citado em epígrafe. Oculta
sentidos, a dimensão prosaica dos enunciados,
para revelar o Absoluto. Instiga o leitor,
convidando-o a ser parceiro na decifração. Além
de trazer muita simbologia tradicional,
especialmente das fontes da astrologia, cria
outros símbolos através de subentendidos e
alusões. Principalmente, combinar vocábulos de
modo a sugerir novos sentidos. Mostra que a
palavra é multidimensional ao relacioná-la com o
universo todo da língua.
Logo no
início, o leitor se depara com versos como
estes:
Entretanto, deixei que escorressem das horas,
de todos os relógios, as oxidações & a ferrugem
das janelas abandonadas nas praias da vida.
Há um encadeamento de imagens na declaração
equivalente àquela de Jorge de Lima em
Invenção
de Orfeu: “Despi-me
de outros bens, de glória mais modesta”.
Começa em um modo descritivo, com associações
diretas relacionadas à passagem do tempo: horas,
relógios descartados que se oxidam, como em um
quadro surrealista de Dali ou Ernst – mas seus
relógios são janelas que estão em praias; e
essas praias são a vida que passa – ou que
permanece.
A cada passo, alcança maior amplidão e vai
mostrando que cada coisa, cada elemento, é parte
de um todo. São poemas que transmitem a
impressão de poderem estender-se ao infinito.
Possuído pelo demônio da analogia, enxerga todas
as conexões possíveis:
A entidade negramarela da solidão
havia decidido beijar os brincos
da pele do meu céu de prata.
Palavras, conforme sua poética, são microcosmo
que contém ou refletem o macrocosmo, a
totalidade das coisas existentes. Daí norteá-lo
a desconfiança com relação ao sentido, à relação
estável do signo com algo específico. Transmite
ao leitor a suspeita de que em todo vocábulo
cabem mais sentidos. Um dos modos de expô-la é,
evidentemente, através das palavras-valise:
“Talvez as valises do sensacionismo / sejam os
derradeiros fuzis da vida”.; ou como nestes
versos:
Só por isso consigo
andar a pé, em algas surdas
sobre as águas do Sonho
com a garantia, valise-valia
desse ateu, todo teu
silencioso Corpo-de-Ninguém.,
Ele anda, levando a valise-valia, sobre algas ou
águas? Ambos, evidentemente. As águas – e
continentes – do sonho são o lugar onde o “ateu”
é “todo teu”, e assim todos os sentidos
convergem através das aliterações, fusões e
deslocamentos. Daí as menções e alusões a Pessoa
e Sá-Carneiro, expoentes do sensacionismo, do
projeto de alcançar a síntese de sujeito e
objeto través de um registro total como em “Ah,
Mudei-me De Mim”, com sua série de oximoros e
aliterações,
A fala do silêncio drapeja,
esteriliza os dizimados decibéis
das decepções.
O sensacionismo ou simultaneísmo de Naporano não
apenas amplia os sentidos da linguagem, porém
mostra como essa interpenetração de tudo rege o
cosmos. Sua realidade é regida por um princípio
de perpétua mutação; quanto mais real algo for,
tanto mais será outra coisa. São as “habilidades
da água” – título de um poema que vale para o
livro todo. Exercendo-as, traz versos com séries
alucinantes de sinestesias e correspondências:
Com os olhos da voz
gritei em vermelho-ave
mirei o fim do mundo
empurrando
com a respiração da fala
o último fantasma
e a sua faca.
Realizando essa poética, modo de expressar uma
cosmovisão, sucedem-se os versos de uma extrema
delicadeza, pura música verbal:
Há um arame de sol na porta
a madeira e sua ranhura em prece .
Um dos esoteristas do final do século 18,
Louis-Claude de Saint-Martin, discípulo e
continuador de Saint-Yves d’Alveydre, criador da
ordem dos “eleitos Cohen” à qual Gérard de
Nerval foi filiado, ganhou o apelido de
“filósofo desconhecido”. Era secreto. Sua obra
circulava de modo subterrâneo, em opúsculos e
edições fora do comércio. Mas todos sabiam quem
era. Exerceu uma influência colossal. Românticos
da primeira geração tiveram acesso à sua obra e
o estudaram. Foi constitutivo da produção
filosófica e poética do grupo de Jena:
estudiosos sabem que Novalis o havia estudado
antes mesmo de ler Jacob Böhme.
Penso que Fernando Naporano tende a tornar-se o
grande “poeta desconhecido” de sua geração,
deste período de final do século 20 e começo do
21. Crescendo à sombra, expandindo-se no subsolo
ao modo dos rizomas, sua poesia vai formando
leitores, contribuindo para moldar uma nova
sensibilidade. Influência subterrânea, mas que
emergirá a seu tempo, de modo vigoroso.
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